1968, a Ressaca do Flower Power


Por Ronaldo Rodrigues
Colecionador

Há 40 anos atrás, o mundo vivia atribulado de uma maneira toda peculiar (não que hoje tenha deixado de estar em uma conjuntura repleta de tensões). Ao longo de todo ano, em diferentes meios de comunicação, os acontecimentos políticos, sociais e culturais de 1968 foram debatidos, comentados ou simplesmente relembrados em diferentes graus de profundidade. Um dos fatores que o tornou tão peculiar foi a atuação da juventude, demonstrando, em diferentes ocasiões e de diferentes maneiras, suas aspirações e desilusões.

O rock e a contracultura, como veículos da juventude que eram, ao mesmo tempo em que serviram para endossar o discurso jovem (consciente ou inconscientemente) não passaram incólumes ao ambiente tenso das repressões, dos protestos e da quebra de paradigmas. A arte imitando a vida e a vida imitando a arte.


1967 foi o estopim da cultura psicodélica, que saia da esquina Haight-Ashbury para influenciar com suas cores e texturas todos os tipos de arte – a música, o cinema, as artes plásticas, pintura, poesia ... O ideário paz e amor, o movimento hippie (com seus sonhos pacifistas e naturalistas) e as novas experiências com as drogas alucinógenas contagiaram a juventude com uma eufórica letargia. Quem não embarcou naquela viagem ficou no limbo da história.

No rock, artistas das mais diferentes vertentes absorveram (em diferentes doses) aquele mar de possibilidades – dos tradicionais blueseiros norte-americanos aos folk-singers, dos mods aos surfistas, do pessoal das garagens aos músicos de jazz. Beatles, Rolling Stones, The Who, Cream, Beach Boys, Yardbirds, Bob Dylan, Donovan, Guess Who, Johnny Winter … todos tiveram seu momento de psicodelia. Psicodelia na sonoridade e no visual de seus figurinos e capas de discos.


Frente aos acontecimentos que foram ocorrendo, como a Primavera de Praga e os levantes estudantis em Paris, o flower power começou (infelizmente) a virar uma piada de mau gosto no meio dos gases lacrimogênios, cacetetes, prisões e torturas. E o rock refletiu o momento. As cores de “Sgt. Pepper’s” deram passagem para o despojamento de um disco com capa toda branca e somente com o nome “The Beatles” (o qual ficou conhecido como “Álbum Branco”). O cenário surrealista de “Their Satanic Majestic Request” foi substituído por um banheiro imundo em “Beggar’s Banquet”. “Wheels of Fire” do Cream, com capa cinza e branca, foi uma resposta sóbria para o disco anterior, “Disraeli Gears”. Canções como “Born to be Wild”, “É Proibido Proibir”, “Street Fighting Man”, “Remember a Day”, “Revolution” e várias outras menos conhecidas, retrataram a seu modo aquele momento amargo e ambíguo com muito peso e lisergia.


Musicalmente, 1968 não representou uma ruptura para as direções que o rock vinha tomando desde o ano anterior. Significou, no entanto, uma radicalização das experiências sonoras e aquisição de novas influências, e também serviu para recolocar alguns grupos de volta em seus nichos de origem após a tragada de psicodelia dada em 67. É fato que, para algumas bandas, a onda psicodélica foi o limiar para uma nova etapa (sendo o Moody Blues um dos exemplos mais representativos). Janis Joplin largou mão do fuzz ácido do Big Brother & Holding Co. e caiu de volta no aconchego de seu berço – o rhythm & blues. Jimi Hendrix apareceu ainda mais refinado e experimental com seu lançamento de 68, o disco "Eletric Ladyland", mostrando pitadas de jazz e incrementando sua usina sonora com teclados, percussão e sopros.

Os Beatles continuaram trancafiados no estúdio destilando sua genialidade em novos vôos. Jeff Beck, pós-Yardbirds, lançou uma das pedras fundamentais do hard rock com o álbum “Truth”, abrindo o caminho no qual o Led Zeppelin e várias outras bandas fariam sucesso. O Cream mostrou maturidade e muita musicalidade em seu derradeiro registro de estúdio. Os Rolling Stones, a exemplo de Janis Joplin, viram que a psicodelia não era sua praia e voltaram para o blues, sem mais delongas.


Mas quem garantiu mesmo a sobrevivência de toda a cultura psicodélica foram os nomes menos conhecidos, especialmente nos EUA. Em 1968, enquanto boa parte das grandes grupos abandonavam aquela tendência, muitas bandas pipocavam pela ensolarada América dispostas a usufruir daquela fonte. Na Inglaterra, a psicodelia já começava a produzir as sementes do que viria a ser o rock progressivo – Pink Floyd, Soft Machine, Jethro Tull, King Crimson, Yes, Moody Blues e Procol Harum. Nos EUA, o rock psicodélico sentia-se mais completo em si mesmo, adquirindo a forma de uma escola sonora que perdurou até 1970 (mais ou menos), guiada por altos volumes de guitarra fuzz, órgãos Farfisa e muita selvageria!

68 foi um ano de grande marcos sonoros que contribuíram muito para a evolução do rock – Blue Cheer com o pesadíssimo “Vincebpus Eruptum”; Creedence Clearwater Revival e sua talentosa estréia; Eletric Prunes com o ousado e genial “Mass in F Minor”; o rock mesclado ao jazz do Spirit; a estréia do Steppenwolf; Iron Butterfly no auge de seu sucesso; o blues de Canned Heat, Paul Butterfield e Johnny Winter; Jefferson Airplane, Love, Doors e Quicksilver Messenger Service indo longe na viagem sonora; It’s a Beatiful Day e Sweetwater inovando na psicodelia; as “Super Sessions” de Al Kooper e companhia; a trupe tropicalista no Brasil e muitos e muitos outros grupos underground a dentro.


Na terra da Rainha, a devoção ao blues era cada vez mais amplificada – Free, Groundhogs, Savoy Brown, Ten Years After, Fleetwood Mac. Aconteceram também Terry Reid, Joe Cocker com a ajuda de seus amigos, a ópera rock “S. F. Sorrow” do Pretty Things, o segundo disco do Traffic (mais pé no chão e mais maravilhoso que o primeiro), a estréia de Fairport Convention com muita psicodelia e vários e vários outros citados acima e não citados também. Isso porque só estamos falando de rock. Ainda teria muita coisa boa a citar sobre jazz e blues.

A imaginação no poder, e com poder, foi a locomotiva que elevou o rock ao status de arte e que também o manteve com os pés fincados em sua aura rebelde e contestadora naqueles igualmente rebeldes e contestadores dias. Generalizações à parte, nem todo mundo estava ligado às bombas que explodiam nas matas vietnamitas ou no famoso ato institucional de nossa pátria, por exemplo. A alienação também foi sufocante e trouxe o fim para muitos ideais; a indústria do show bis já marchava em direção ao mercado da juventude. Mas esbarrou de frente com uma classe artística ligeiramente mais consciente e com maior desejo de liberdade.


Relação de algumas canções emblemáticas de 1968, na humilde opinião desse escritor:

American Blues – If I Were a Carpenter
Blue Cheer – Summertime Blues
Cream – Desert Cities of the Heart
Deep Purple – And the Address
Free – I’m a Mover
Gun – Race with the Devil
Jeff Beck Group – Beck’s Bolero
Steppenwolf – Born to be Wild
The Other Half - Feathered Fish
Creedence Clearwater Revival – Walk on the Water
Jimi Hendrix Experience – Have You Ever Been (To Eletric Ladyland)
Love – A House is not a Motel
Joe Cocker – With a Little Help From My Friends
Traffic – Cryin’ to be Heard
Rolling Stones – Street Fighting Man
Beatles – Happiness is a warm gun
Pink Floyd – Let There be More Light
Soft Machine - Why Are We Sleeping?
Eletric Prunes – Kyrie Eleison
HP Lovecraft – It’s About Time
Iron Butterfly – In a Gaada-da-Vida
Mutantes – Panis et Circenses
Quicksilver Messenger Service – The Fool
Jethro Tull – Boureé
Fairport Convention – Time Will Show the Wiser
Billy Nichols – Would you Believe?



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