Castiga! - Canned Heat: os anos dourados dos reis do boogie


Por Marco Antonio Gonçalves
Colecionador

E o Canned Heat? Que banda sensacional! Uma agremiação idolatrada pelos hippies e que em plena onda psicodélica californiana propagava o seu mais profundo amor pelo blues. Fundada em 1965 por Bob Hite e Alan Wilson – dois obsessivos colecionadores de discos de blues e admiradores inveterados do estilo -, esta trupe de Los Angeles ganhou fama mundial depois das incendiárias participações nos festivais de Monterey e Woodstock no final dos anos 60.

Blueseira de alta combustão, seu nome foi retirado de uma velha canção escrita por Tommy Johnson, em 1928, chamada “Canned Heat Blues”. A letra falava sobre um alcoólatra desesperado que, em meio à Lei Seca, misturava sterno (um gel combustível feito de álcool desnaturado e utilizado para aquecer alimentos) à sua bebida, visando atingir o efeito etílico desejado. Designação propícia para a inflamável combinação de blues, rock, boogie e psicodelia que seria deflagrada pela banda americana a partir de sua configuração.

Desde o seu surgimento, o combo passou por várias alterações no seu line-up, sempre empunhando a bandeira do blues e tendo como referenciais os grandes inovadores do gênero, como John Lee Hooker, Muddy Waters, Howlin’ Wolf, Elmore James, B.B. King, Albert King e Buddy Guy. Mesmo com a morte de três de seus membros originais, o Canned Heat permanece na ativa em pleno século 21, agora sob a liderança do baterista mexicano Adolfo “Fito” de La Parra, um dos integrantes da formação clássica.

Do quinteto que marcou a fase tradicional, apenas “Fito” de La Parra e o baixista Larry Taylor sobreviveram aos abusos dos anos sessenta e setenta. Alan Wilson partiu para outro plano, ainda em 1970, após ingerir uma dose letal de barbitúricos. De temperamento depressivo, as evidências indicam um aparente suicídio, mas é um assunto que sempre gerou controvérsias. O frontman Bob Hite morreu em 1981, depois de uma apresentação em Los Angeles, vítima de um ataque cardíaco, acelerado pelo seu intenso consumo de drogas. Em 1997 foi a vez do guitarrista Henry Vestine, que ao final de uma turnê européia morreu de insuficiência cardíaca e respiratória em um hotel de Paris.

Tragédias à parte, a blueseira altamente contagiante praticada pelo Canned Heat ultrapassou décadas e pode ser apreciada no compasso dos mais de trinta álbuns lançados a partir de 1967. Como sou um bolha camarada, selecionei para o blog os primeiros discos do grupo, englobando o período com a formação clássica. Portanto, acendam a chama do blues e sigam o percurso desta banda que é, indisfarçavelmente, uma das prediletas da casa.


A estréia discográfica do Canned Heat veio em grande estilo, um mês após a sua aparição no Monterey Pop Festival, um evento realizado entre os dias 16 e 18 de junho de 1967, recheado de atrações sensacionais: Big Brother and the Holding Company, Country Joe and the Fish, Al Kooper, Animals, Electric Flag, Quicksilver Messenger Service, Steve Miller Band, Moby Grape, Byrds, Jefferson Airplane, Booker T. & the M.G.s, Otis Redding, Ravi Shankar, Blues Project, Buffalo Springfield, The Who, Jimi Hendrix Experience, Grateful Dead, Butterfield Blues Band, The Mamas & the Papas ... Fico imaginando a alegria que seria assistir essa turma no auge de suas carreiras. Sorte de quem estava lá! 

Buenas, devaneios à parte, o auto-intitulado debut do Canned Heat é um registro fabuloso e apresenta uma das principais características da trupe: o resgate cultural e histórico do blues, através de inovadoras versões para velhos clássicos do estilo. Sob o comando do frontman Bob Hite (vocal, gaita) e do polivalente Alan Wilson (guitarra, piano, harmônica, vocais), a banda transita na essência do blues rural do Delta do Mississippi e dispara até o blues urbano de Chicago e Detroit, mandando ver no cruzamento explosivo do blues rock com el boogie terrible.

Completam o quinteto o guitarrista Henry Vestine (ex-membro do Mothers of Invention e que fora despedido por Zappa por causa do uso contínuo de drogas), o baixista Larry Taylor (ex-Moondogs e que já havia sido músico de apoio para Jerry Lee Lewis, Chuck Berry e os Monkees) e o baterista Frank Cook (que vinha de experiências jazzísticas, tocando ao lado de nomes como o baixista Charlie Haden e o trompetista Chet Baker).

Destrinchando as raízes do blues, o álbum traz versões envenenadas para os clássicos “Rollin’ and Tumblin” (Muddy Waters), “Dust My Broom” (Robert Johnson/Elmore James), “Evil is Going On” (Willie Dixon) e "Help Me” (Sonny Boy Williamson II), entre outros temas tradicionais. A dupla de guitarristas Henry Vestine e Alan Wilson transborda perfeita harmonia, combinando slide e solos distorcidos embriagantes. Wilson aproveita a deixa para demonstrar todo o seu domínio na harmônica, provando porque se tornou, ao longo da história, um dos grandes nomes do instrumento. Escutem “Goin’ Down Slow” (St. Louis Jimmy Oden) e comprovem. Quem também está tinindo é Bob Hite, que toma de assalto o ambiente sonoro com sua voz rasgada e cheia de energia, cantando a maioria das canções.

Outros faixas de destaque são as famigeradas “Catfish Blues” (Robert Petway) e “Bullfrog Blues” (William Harris), em adaptações contendo improvisos e inovações rítmicas bem interessantes, o que valorizou o trabalho e fez com que o álbum fosse recebido de braços abertos até mesmo pelos mais conservadores e puristas do blues da época. Tenho o vinil original inglês, mono, lançado pelo selo Liberty. Não vendo, não troco e não empresto. É de estimação!

Detalhe: a polêmica capa mostra o quinteto ao redor de uma mesa, consumindo um coquetel à base de sterno. Como já foi dito, sterno é um combustível em gel feito de álcool desnaturado. Sua composição química envolve basicamente etanol, metanol, água e um óxido anfotérico gelificante. Uma solução que, se for dissolvida em água, torna-se uma bebida altamente perigosa. Consumida pela população mais pobre, esteve associada à várias mortes na América em décadas passadas, a maioria por causa do envenenamento por metanol. Depois dessa, vou tomar uma dose de Jack Daniel’s e já volto.


O segundo álbum do grupo foi lançado em janeiro de 1968 e posso dizer, sem medo de errar, que é um de seus melhores registros. Boogie with Canned Heat marca a estréia do baterista mexicano Adolfo de La Parra (ex-integrante de várias bandas do rock mexicano, desenvolveu trabalhos ao lado de nomes do r&b como T-Bone Walker, Ben E. King, Etta James e The Platters. Também fez parte do Bluesberry Jam, o embrião do Pacific Gas & Electric) substituindo Frank Cook, dando início àquela que é considerada a formação clássica da banda.

É o disco de maior sucesso comercial do grupo e que o colocou nas paradas de sucesso, por conta do hit “On the Road Again” - um tema adaptado por Alan Wilson a partir de uma canção de mesmo nome, gravada em 1953 pelo bluesman Floyd Jones. Um dos maiores clássicos da banda, consagrando Wilson que, com sua harmônica mágica, despeja vibratos e efeitos hipnóticos chapantes. Sua voz de falsete, exalando um agudo frágil e peculiar, conduz a música que, aliada à sonoridade psicodélica que a envolve, fez a cabeça dos hippies e malucos espalhados pelos festivais da época.

Outros destaques são “Evil Woman” (com um riff de guitarra poderoso, baixo carregado e uma levada próxima do hard rock), “My Crime” (blueseira sensacional, com letra lembrando o incidente ocorrido em Denver, em agosto de 67, quando a banda foi detida pela polícia local por porte de maconha), “Turpentine Moan” (com o slide correndo solto e participação do pianista Sunnyland Slim) e “Amphetamine Annie” (um blues entorpecente, com letra inspirada numa conhecida que morreu de overdose de estimulantes. Tornou-se um tema antidrogas incensado pelos fãs, por mais incrível que isso possa parecer).

Outra pérola é a versão de doze minutos de “Fried Hockey Boogie”, creditada ao baixista Larry Taylor, mas que na verdade é uma derivação do clássico “Boogie Chillen” de John Lee Hooker. Um “boogie experimental”, abrindo espaço para as improvisações, com os membros desenvolvendo as suas habilidades nos instrumentos. A semelhança com o clássico “La Grange” do ZZ Top é evidente e essa “coincidência” quase levou o Canned Heat a processar o trio texano por plágio. Chama o Pepe Legal!

No geral, uma obra indispensável para os amantes do blues e que traz a assinatura da trupe na maioria das faixas, diferentemente do primeiro álbum, só com composições alheias. Mas o que impressiona é o vigor do núcleo Hite/Wilson/Vestine/Taylor/Fito, que demonstra muita afinidade e consistência, com performances individuais arrebatadoras. Henry Vestine, por exemplo, traduz toda a sua competência nas seis cordas em faixas como “World in a Jug” e na instrumental “Marie Laveau”, solando com muita propriedade. Depois deste trabalho sensacional, não foi preciso muito tempo para que fossem aclamados na América como os Reis do Boogie

Ainda em 1968, depois da participação no New Pop Festival no mês de setembro, partiram para a sua primeira turnê européia. Vários shows, exposição em capas de revista, execução maciça nas rádios e aparições nos programas Top of Pops da TV Britânica e Beat Club da TV ARD da Alemanha. Foi o pulo do gato para que “On the Road Again” alcançasse o topo das paradas na Inglaterra, Alemanha e em praticamente toda a Europa. Além do vinil original, tenho o CD que saiu em 1999 pelo selo francês Magic Records, com seis faixas bônus.

Neste álbum, a ficha técnica traz pela primeira vez os apelidos incorporados aos nomes dos músicos - alguns criados pelos produtores Skip Taylor e John Hartmann. Alan “Blind Owl” Wilson já havia adotado a alcunha de “Coruja Cega” que ganhou do músico John Fahey, em 1965, numa referência aos óculos de lentes grossas que usava para compensar sua baixa visão. O carismático Bob “The Bear” Hite, “O Urso”, também já carregava consigo este apelido, possivelmente inspirado em nomes como o de Howlin Wolf e, claro, por ser um bluesman de grandes proporções. Seguiram-se a eles Henry “Sunflower” Vestine (“O Girassol”), Larry “The Mole” Taylor (“O Toupeira”) e Adolfo “Fito” de La Parra. Mais adiante, Harvey “The Snake” Mandel (“O Cobra”) também ganharia o seu codinome ao integrar a banda. Animal! 


Em outubro de 1968 saiu o álbum duplo Living the Blues, incluindo um dos grandes sucessos do Heat, “Goin’ Up the Country”, uma derivação da canção “Bulldozer Blues” do bluesman Henry Thomas, do final dos anos 20. Alan Wilson manteve a melodia da canção original, reescreveu a letra e jogou uma mensagem de liberdade que virou febre, atingindo o 1° lugar nas paradas de sucesso em 25 países ao redor do mundo. No ano seguinte, a bela composição lavaria a alma dos hippies presentes no Festival de Woodstock, se transformando numa espécie de hino dessas comunidades. A fama fez com que se tornasse, de forma oficiosa, a música tema do documentário dirigido por Michael Wadleigh sobre o lendário festival. Apenas essa música já valeria o disco, mas não é só. 

Living the Blues tem produção de Skip Taylor em conjunto com a própria banda, e apresenta material extraído de gravações em estúdio e ao vivo. O primeiro disco (gravado nos estúdios da I.D. Sound Recorders) apresenta um repertório excelente e altamente pegajoso, contendo alguns "chicletes” que vão conquistar os apreciadores do velho blues na primeira orelhada. Um bom exemplo é o clássico “Walking By Myself” (Jimmy Rogers), de ritmo altamente contagiante e com a participação especial de Mr John Mayall no piano. Um dos meus blues prediletos em todos os tempos!

“Pony Blues”, “My Mistake” e “One Kind Favor” se destacam pela condução rítmica perfeita, em meio à excelentes frases guitarrísticas a cargo de Vestine, em plena forma criativa. “Sandy’s Blues” é de uma malemolência blueseira tamanha que só se espreguiçando pra quebrar o feitiço. Um blues deliciosamente conduzido pelo vocal arrastado de Hite, num ritmo cadenciado, com direito a arranjos metaleiros de Miles Grayson e participação do pianista Joe Sample. “Boogie Music” tem uma levada freak, com arranjos de metais a cargo de Dr John, que também toca pianinho e chama Charlie Patton (guitarra) e Henry Sims (violino) para participar da festa enlatada.

“Parthenogenesis” encerra o primeiro disco, domesticando o ouvinte para o que está por vir no segundo play. Sugere uma espécie de “suíte experimental de caráter blueseiro”, subdividida em nove partes, com direito a colagens, experimentações, distorções e efeitos eletrônicos. Destacam-se “Nebulosity” (com participação do guitarrista John Fahey), “Bear Wires” (mais uma vez com a sombra de John Mayall no piano), “Rollin’ and Tumblin” (num instrumental dominado pela harmônica de Wilson), “Snooky Flowers” (onde Fito debulha na batera, tendo a companhia de Larry Taylor nas congas) e “Sunflower Power” (com experimentações dopantes vindas da guitarra de Vestine).

O segundo disco é uma apresentação ao vivo no Kaleidoscope, uma casa de espetáculos localizada em Hollywood, Califórnia. A faixa “Refried Boogie”, com seu riff inconfundível, ocupa os dois lados do vinil. Resultado: 41 minutos de pura jam, com viagens instrumentais, solos, improvisos e experimentações de fazer caspa de hippie virar mandiopã. Doideiras certeiras à parte, este segundo disco é mais indicado para os fãs de carteirinha da banda. Meu caso.


Hallelujah, lançado em julho de 1969, é o último álbum com a formação que marcou época e conquistou o coração dos fãs: Bob Hite (vocal, gaita), Alan Wilson (guitarra, piano, gaita, vocal), Larry Taylor (baixo), Henry Vestine (guitarra) e “Fito” de La Parra (bateria). Se não fez o mesmo sucesso que os registros anteriores, e nem mesmo emplacou um grande hit, com certeza não foi por falta de qualidade. Gosto muito deste que foi o meu primeiro álbum da banda, adquirido no começo dos anos oitenta numa edição nacional que anunciava na capa – belíssima, por sinal – o boogie lunático de “Poor Moon” como faixa bônus.

Item indispensável, traz o bom e velho blues rock acelerado pela pegada nervosa da banda, que trabalha arranjos envenenados, mergulhados em oceanos de psicodelia. A cada onda sonora, são revelados compassos alternados, mudanças no andamento, distorções, levadas tortas e dissonantes, mostrando as tendências do grupo. A cozinha comandada por “Fito” e Taylor está em máxima sintonia, criando uma unidade sonora perfeita, com os dois tocando muito. Alan Wilson brilha mais uma vez, empregando belos arpejos de gaita e abrindo novas fronteiras para o instrumento. Sua gaita extremamente distorcida marca presença na maioria das faixas.

Outro fator importante é o equilíbrio fantástico entre Hite e Wilson que dividem os vocais irmanamente, cada qual com suas características. O primeiro é um poço de energia, com sua voz áspera e poderosa expelindo um evidente sentido de humor nas interpretações. O segundo exala um timbre de voz agudo e débil, num misto de fragilidade e timidez, como mostram as essênciais “Change My Ways”, “Time Was” ou “Do Not Enter”. Um falsete fantasmagórico que lembra o de Skip James, um bluesman do Delta Blues.

Contando com convidados especiais como Mark Naftalin e Ernest Lane (piano), Mike Pacheco (bongos e congas), Elliot Ingber, Javier Baitz e Skip Diamond (vocais de apoio), o LP exibe um apanhado de belas composições, num passeio revigorante pelas vias do blues, do boogie woogie e do rock’n’roll. 

“Same All Over” inaugura as festividades, trazendo o vocal cortante de Hite aliado aos animados vocais de apoio, incendiando as estruturas do blues. “Canned Heat” é tão inebriante quanto um galão de bebida barata, com Hite passeando com sua voz rasgada em meio à malha sonora deflagrada pela trupe. Henry Vestine se destaca não só neste, mas em outros temas, destilando solos encharcados de efeitos e distorções ensurdecedoras (“Get Off My Back” e “Down in the Gutter, But Free” estão aí para comprovar o que eu digo).

“Time Was” é tão boa que seria capaz de escutá-la cem vezes seguidas, sem reclamar. Aquele vocal agudo e desencanado de Wilson, a cozinha quebrando tudo e criando brechas para o mergulho da guitarra de Vestine, são tentativas perfeitas para desconstruir um blues com dignidade. “I’m Her Man” (com participação de Mark Naftalin nos teclados) é um boogie no melhor estilo Canned Heat, com harmônica e guitarras no comando das ações. 

“Sic ‘Em Pigs”, escrita por Booker T. White e Bob Hite, tem uma sonoridade estranha, efeitos sonoros grotescos e muita tiração de sarro pra cima dos policiais. Tem ainda “Big Fat” de Fats Domino, composição dos anos cinquenta adaptada por Bob Hite para os padrões do Canned Heat, num boogie com guitarras pesadas e harmônica possante, aqui tocada pelo amigo “Urso”. Que grande disco!


Vale aqui uma nota: em 1969 a banda gravou também o álbum Live At Topanga Corral. Diferentemente do que o título sugere, as gravações foram, na verdade, realizadas durante um concerto no Kaleidoscope Club. Obrigados por contrato a liberarem um disco para a gravadora Liberty, o grupo e o produtor Skip Taylor inventaram essa história, dizendo que as gravações foram feitas entre 66 e 67 em Topanga Corral. O disco saiu em 1971 e foi reeditado depois com o título Live At The Kaleidoscope, 1969. Era o Heat estreando uma nova categoria para a música: o “contrabando blues”. Castiga!

Poucos dias após o lançamento de Hallelujah, tensões entre Larry Taylor e Henry Vestine culminaram com a saída momentânea do guitarrista. Vestine só retornaria à banda no final de 1970 (o entra e sai continuaria nas décadas seguintes) para gravar o fabuloso álbum duplo Hooker ‘n Heat, parceria do Canned Heat com a lenda do blues John Lee Hooker. Sobre este disco obrigatório eu falo em outra ocasião. 

Voltando a julho de 69, em meio a apresentações no Filmore West, o grupo recruta o talentoso guitarrista Harvey Mandel, um músico de Chicago que já havia trabalhado com Charlie Musselwhite, Freddie Roulette e John Mayall. Seu disco de estréia, Cristo Redentor, lançado em 1968, havia revelado aos mortais uma das sete maravilhas do mundo. Com o novo guitarrista, a banda se apresentou no Fillmore West, em San Francisco, no final de julho, e partiu para aquele que seria o maior festival de rock de todos os tempos: o lendário Woodstock.

Realizado em uma fazenda em Bethel, Nova York, entre os dias 15 e 17 de agosto de 1969, atraiu mais de 500 mil pessoas nos três dias de eventos. Além do Canned Heat, marcaram presença alguns dos grandes nomes da música da época: The Incredible String Band, Keef Hartley Band, Santana, Mountain, Janis Joplin, Grateful Dead, Creedence Clearwater Revival, Sly & the Family Stone, The Who, Jefferson Airplane, Joe Cocker, Country Joe and the Fish, Ten Years After, The Band, Blood, Sweat & Tears, Johnny Winter, Crosby, Stills, Nash & Young, Paul Butterfield Blues Band, Jimi Hendrix, entre outros. No mínimo, sensacional.


Future Blues foi gravado depois da participação no Festival de Woodstock e lançado em 1970. Outro disco de estimação, contendo canções antológicas, onde o Heat continua o seu exercício na busca de inovações rítmicas, desafiando as fronteiras do velho blues. O quinteto - renovado com a presença do exímio guitarrista Harvey Mandel - aposta numa virada de posicionamento, fugindo de temas tradicionais e impondo um discurso em prol de questões ambientais, como a fragilidade ecológica da Terra, a poluição e o desmatamento nas florestas (a foto e o texto da capa interna comprovam essa teoria). Obra de Mr Al Wilson, um ambientalista convicto que, como muitos dos seus pares, amava a natureza.

A polêmica capa demonstrava o descontentamento do grupo com a política praticada pelo governo americano. Mostra o quinteto trajando roupas de astronautas, hasteando na lua uma bandeira norte-americana de cabeça para baixo. A imagem provocativa simulava a pose registrada por marines americanos no cume do Monte Suribachi, logo após a vitória contra os japoneses na Batalha de Iwo Jima, durante a Segunda Guerra Mundial. Abram alas para o blues subversivo do Canned Heat!

O grande destaque da bolacha fica por conta do lançamento oficial de “Let’s Work Together”, composição de Wilbert Harrison, ligeiramente modificada pela turma da costa oeste americana. Um blues com tinturas psicodélicas que fez a cabeça de muita gente, tornando-se possivelmente o maior sucesso da banda. Tanto que alcançou rapidamente o primeiro lugar nas paradas de sucesso em toda a Europa, Austrália e Nova Zelândia. Mas não pense que o disco se resume a “Let’s Work Together”. O cardápio oferece outras guloseimas ... 

Um tema relevante é a irresistível “Skat”, um boogie com andamento jazzístico, quebradeira de batera e linha de baixo sensacional. Marca de forma definitiva o estilo vocal esquisitão de Wilson, tendo ainda a participação especial de Dr John no piano, criando um ambiente digno dos saloons do velho oeste. Tem a bluseira cavernosa de “London Blues” - em novas performances matadoras de Harvey Mandel e Dr John - embalada pelo canto entorpecente de Wilson.

Outros destaques são as faixas “Sugar Bee” (um blues/boogie temperado pela harmônica de Wilson e a voz ríspida de Hite), “That’s All Right, Mama” (tema de Arthur “Big Boy” Crudup repaginado num arranjo melancólico, com as bem-vindas investidas de Harvey Mandel na guitarra), a profética “My Time Ain’t Long”, “Future Blues” (de ritmo contagiante) e a sensacional “So Sad (The World’s in a Tangle)”, uma das minhas músicas preferidas da banda. Discaço que traz produção conjunta de Skip Taylor e do Canned Heat.


Neste período, um longo giro pela Europa culminou com o lançamento do álbum Canned Heat ‘70 Concert - Live In Europe. Quando voltaram da turnê, um exausto Larry Taylor deixou o grupo para se juntar aos Bluesbreakers de John Mayall, seguido depois por Harvey Mandel. O baixista só retornaria ao conjuntoem meados dos anos oitenta.

Desafortunadamente, foram os últimos discos do Canned Heat com a participação de Alan Wilson. O músico, que sempre passou por fortes crises de depressão, andava profundamente frustrado nos últimos tempos por causa de seus péssimos relacionamentos pessoais e da falta de popularidade com as mulheres - ao contrário dos outros membros do grupo. Como se não bastasse, sua depressão piorou bastante devido a sua crescente preocupação em torno das questões ambientais, principalmente com o desmatamento descontrolado das florestas americanas e em outras ao redor do mundo.

Segundo relatos, ele já havia tentado o suicídio algumas vezes e, em seus últimos dias, passava por um tratamento em um hospital psiquiátrico. Liberado pelos médicos, ficou sob os cuidados de Bob Hite. No dia 03 de setembro de 1970, na véspera do embarque da banda para um festival em Berlim, Wilson foi encontrado morto em uma colina em Topanga Canyon, nos arredores da casa de Hite. Causa da morte: uma overdose de calmantes. Estava com 27 anos de idade. Seu falecimento prematuro ocorreu poucos dias antes da morte de outras duas lendas do rock: Jimi Hendrix e Janis Joplin. Era o fim da época de ouro do grupo.


Como falei dos primeiros discos, não poderia deixar de citar o álbum Vintage. É nele que estão registradas as primeiras gravações do Canned Heat. Isso faz com que voltemos a 1965, quando a casa de Bob Hite, em Topanga Canyon, era um ponto de encontro de colecionadores de discos e apreciadores do bom e velho blues. A idéia de se criar uma banda tomou forma quando este pessoal alienado por música começou a ensaiar pra valer.

A formação embrionária era composta por Bob Hite (vocal), Al Wilson (violão e gaita), Stu Brotman (baixo), Mike Perlowin (guitarra) e Keith Sawyer (bateria). Perlowin e Sawyer logo foram substituídos por Kenny Edwards e Ron Holmes. Mais adiante, Henry Vestine (guitarra) e Frank Cook (bateria) assumiram os seus postos. Com este line-up gravaram em 1966 este primeiro álbum, que só seria liberado em 1970 através do selo Janus Records. 

Produzido por Johnny Otis, o play traz dez blueseiras do arco da velha, incluindo duas versões - com e sem harmônica - de “Rollin’ and Tumblin” (Muddy Waters), “Spoonful” (Willie Dixon), “Bullfrog Blues” (William Harris), “Got My Mojo Working” (Preston Foster) e “Dimples” (Jimmy Bracken / John Lee Hooker), entre outras. Álbum gravado, era a vez do baixista Brotman deixar o grupo e ceder a vaga para Mark Andes. Mas foi em Larry Taylor (irmão do baterista dos Ventures, Mel Taylor) que o Canned Heat encontrou o baixista que procurava. Com o quinteto Hite, Wilson, Vestine, Taylor e Cook começam a gravar para a Liberty e, em abril de 1967, lançam o compacto com dois singles: “Rollin’ and Tumblin” no lado A e “Bullfrog Blues” no lado B. Era a senha para adentrar a esfera musical dos anos sessenta em grande estilo. O resto é só história.


Em quatro décadas de existência, muitos músicos passaram pelas fileiras do Canned Heat, entre eles Joel Scott Hill (guitarra), Richard Hite (baixo), Ed Beyer (teclados), Gene Taylor (teclados), Mike Halby (vocal e guitarra), James Thornbury (guitarra) e Junior Watson (guitarra). No dia 23 de novembro de 2008, uma nova baixa: o cantor, gaitista e guitarrista Robert Lucas, que integrou uma das últimas formações da banda, morreu em Long Beach, Califórnia, aparentemente de uma overdose de drogas. Pelo jeito, é uma triste sina que persegue o grupo.

Mesmo sem a mágica dos tempos de Wilson, ou sem o vigor e o carisma da época de Hite, a banda permanece na ativa sob a liderança de “Fito” de La Parra, tendo realizado vários shows na América do Norte em 2008. Além do batera “Fito”, a formação atual conta com Barry Levenson (guitarra), Greg Kage (baixo) e Dale Spalding (guitarra, harmônica e vocal). Entre várias compilações e gravações raras lançadas nos últimos anos, alguns álbuns de estúdio também foram produzidos. Os dois últimos foram
Boogie 2000 (1999) e Friends in the Can (2003). Tá valendo, já que o mais importante é manter a chama do blues acesa.

Comentários

  1. Justa homenagem a essa banda de blues e rock muito pouco ou quase nada divulgada na imprensa brasileira. Matéria bem abrangente. Parabéns ao Marco Antonio e ao Collectors.

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  2. Valeu Bob. Continue acompanhando o blog!

    Abraço.

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