Hardão 70: Sir Lord Baltimore


Por Marcos A. M. Cruz
Colecionador

Existem certas coincidências e correlações que, por mais bizarras que possam parecer, acontecem vez por outra. Uma delas rolou comigo por volta dos dez anos de idade, época em que morava numa cidadezinha chamada Paty do Alferes, próximo à Miguel Pereira, interior do Estado do Rio. Perto de casa havia uma senhora, Dona Elza, que morava só com algumas dezenas de gatos, e numa ocasião estávamos eu e minha mãe na casa dela, que nos mostrou um monte de fotos, algumas junto a personalidades tais como Carmem Miranda (Dona Elza havia sido atriz de teatro), outras com pessoas que aparentavam não ser de nosso país, devido à elegância - e não eram mesmo, pois quando jovem ela viajara mundo afora.

Uma das fotos me chamou a atenção por mostrar um cavalheiro com direito à fraque, cartola e bengala. Não foi necessário perguntar quem era, pois a Dona Elza se antecipou e, meio suspirante, disse que se tratava do "senhor fulano de tal" (logicamente não lembro o nome), um legítimo Lorde de Oklahoma!Quando fomos embora, comentei com a mamãe sobre a tal foto, e ela, confessando estar surpresa, perguntou-me: "Você percebeu?". "Percebi o que?", respondi. "Ué, que ele foi uma grande paixão da Dona Elza!", disse mamãe. "Paixão???", pensei espantado. Era criança, não havia sacado a coisa, podia ser metido a esperto e inteligente (eu era mesmo, CDF de marca maior), mas não tinha ainda malícia para notar certas coisas, foi necessário que a mamãe me despertasse para o suspiro da Dona Elza.

"Não mãe, tô falando que tem alguma coisa errada, pois os lordes são ingleses, e não americanos", disse-lhe, me referindo ao fato óbvio de Oklahoma ficar nos Estados Unidos. Mamãe se limitou a dar de ombros, estava mais fascinada pela história que envolvia um romance do que pela suposta idiossincracia geográfica que eu apontara.

Anos mais tarde, numa de minhas garimpagens vinílicas, dou de cara com uma capa e arregalo os olhos, pensando em voz alta: "Ué, que raios será isto? Um Lorde em Baltimore?", tendo o vendedor respondido, por achar que eu lhe fizera uma pergunta: "Sir Lordão? Isto aí é hardão dubão, pode levar que não tem erro não", sem se dar conta da rima bizonha que havia feito. Claro que, após negociar um prazinho no cheque, voltei para casa feliz e contente com o disquinho na sacola, ao mesmo tempo em que relembrava aquele episódio na casa da Dona Elza e pensava como na vida existem ligações pitorescas entre situações disparatadas.

Antes do Sir Lord Baltimore, o guitarrista Louis Dambra, assinando como Louis Caine, tocou no Koala, banda que lançou um disco em 1968, curiosamente distribuído nos EUA como sendo originário da Austrália! Aparentemente se tratava de uma estratégia da gravadora (Capitol Records) para promover o grupo de Nova York, que praticava uma espécie de "punk de garagem", típico do final dos anos sessenta (é o que dizem, nunca ouvi este disco).

Notaram que eu falei Nova York? Pois é, ao contrário do que possa parecer, o trio formado pelo já citado Louis Dambra, juntamente com Gary Justin no baixo e John Garner na bateria e vocal, na realidade é originário do Brooklin, e não de Baltimore ou região. Muito estranho, concordam comigo?

Pois é, isto torna ainda mais curioso o fato de terem adotado este nome - talvez tenha alguma relação com Sir George Calvert, conhecido como The First Lord Baltimore (seu filho e neto foram, respectivamente, segundo e terceiro Lord Baltimore), nobre britânico que fundou Maryland, grande incentivador da colonização dos Estados Unidos, tido como o primeiro a estabelecer os princípios de liberdade civil e religiosa que posteriormente serviriam de inspiração para a própria Constituição Americana. Tão pensando o que? Hardão 70 também é cultura ... Caso se confirme esta hipótese, até pelo fato da capa trazer o desenho estilizado de um navio (alusão aos colonizadores?), faltaria alguém explicar o porque da banda ter escolhido este nome.

O trio consegue despertar atenção de Mike Appel e Jim Cretecos, que já haviam angariado uma certa fama com The Partridge Family (no Brasil conhecidos como A Família Dó-Ré-Mi), e recomendam o grupo para Dee Anthony, na época trabalhando como executivo para a gravadora Mercury Records, com a qual assinam contrato. Appel e Cretecos posteriormente trabalhariam com Bruce Springesteen, e Anthony seria um dos responsáveis pela ascensão de Peter Frampton.


Sob a produção de Appel e Cretecos, juntamente com o lendário Eddie Kramer (engenheiro de som e produtor de confiança de Jimi Hendrix, dentre outros), gravam um álbum, alternando-se entre o Electric Lady Studios de Nova Iorque e o Vantone Studios de New Jersey. Lançado no final de 1970 (algumas fontes dizem que teria sido em fevereiro de 1971), Kingdom Come trazia uma sonoridade bastante pesada para a época, graças aos riffs e solos de Dambra, a marcação precisa do baixo de Justin e o trabalho de bateria e vocais agressivos de Garner, a ponto de ser considerado por alguns como o primeiro álbum de heavy metal da história!

Pode não ter sido de fato primeiro do gênero a ser gravado, mas provavelmente foi o primeiro a ser chamado como tal. Acontece que, apesar de normalmente se atribuir a primazia ao uso da expressão (surgida na década de quarenta como apelido para um catalisador da reação atômica do urânio, e posteriormente usado pelo escritor William S. Burroughs em seus livros) para a clássica canção "Born to be Wild" do Steppenwolf, lançada em 1968, na realidade o "trovão de metal pesado" relatado na letra se trata do ronco de uma Harley, e não de uma determinada vertente do rock. 


Por outro lado, se formos considerar somente a associação do termo com a música, o pioneiro foi um grupo chamado Hapshash & The Coloured Coat, que lançou em 1967 um disco chamado Featuring the Human Host and the Heavy Metal Kids.

Existem muitas teorias, algumas dizendo que o primeiro a fazer uso da expressão para descrever um gênero musical teria sido o lendário crítico musical americano Lester Bangs (aquele retratado no filme Quase Famosos) num texto de 1970, outras que um jornalista teria usado para relatar um show do Blue Oyster Cult para um jornal de Nova York em 1971, e até quem afirme que já em 1968 alguém se referira ao MC5 usando o termo. 


Porém, comprovado mesmo é o texto de autoria de outro crítico musical chamado Mike Saunders, publicado originalmente na edição de maio de 1971 da Creem (publicação americana sobre música), onde ele, que passaria a ser conhecido posteriormente como "Metal Mike", ao resenhar o Kingdom Come chama o Sir Lord Baltimore de heavy metal - curiosamente, nesta mesma edição da revista surgiria a expressão punk rock, ou seja, embora seja difícil de ser admitido por alguns, com base nisto podemos dizer que ambos os gêneros são literalmente irmãos gêmeos.

Em 19 e 20 de fevereiro de 1971 o Sir Lord Baltimore toca no lendário Fillmore East, juntamente com o J. Geils Band e o Black Sabbath; entretanto, ao que parece, eles desagradam imensamente o dono do local, Bill Graham, que literalmente expulsa a banda do palco, alegando que sua apresentação era horrível ("hordas de adolescentes gritando tresloucadamente e uma barulheira infernal no palco" teria comentado Graham, não exatamente com estas palavras).


Não vou chegar ao ponto de dizer que o segundo álbum, intitulado somente Sir Lord Baltimore, seja horrível, mas comparado ao primeiro realmente deixa bastante a desejar, pois ao invés do peso do anterior, neste eles resolveram investir numa sonoridade mais rebuscada, quase progressiva, embora - na minha opinião - sem muita inspiração. Mas vale lembrar que nesta ocasião eles já haviam rompido com Appel e Cretecos, e em seu lugar estava o produtor John Linde, que assim como a dupla, também é co-autor de todas as faixas, portanto pode ser que ele é quem tenha sido o responsável pela mudança de direcionamento musical. Por outro lado, neste disco, que foi o canto de cisne da banda, eles contam com um quarto integrante, Joey Dambra, irmão de Louis, tecladista e também guitarrista, que ainda por cima ajuda em alguns vocais.

Não se sabe o que aconteceu com Louis Dambra e Gary Justin; o irmão de Louis, Joey, foi para uma banda chamada Community Apple, e depois participaria do 44th Street Fairies, grupo composto por ninguém menos que John Lennon, além de May Pang, Lori Burton e Joey, que se tornaria famoso por atuar como backing vocal na canção "No. 9 Dream", que Lennon lançaria no álbum Walls and Bridges (1974). Ao que consta, foi só isto que fizeram.


Já John Garner supostamente toca no auto-intitulado álbum do Bloddy Mary, de 1974, embora seu nome não conste nos créditos, e anos mais tarde iria tocar junto a Vince Martell (Vanilla Fudge, tendo posteriormente ingressado no The Lizards, que já lançou seis bons CDs (sendo dois ao vivo), numa praia um pouco mais bluesy.

Engana-se quem acha que o Sir Lord Baltimore nunca foi lançado no Brasil. A compilação Crazy, Baby, Crazy!!, editada em 1971, traz a faixa "Hard Rain Fallin'", juntamente com temas do Lucifer´s Friend, Blue Cheer, Colosseum, Juicy Lucy, Warhorse, May Blitz e várias outras bandas. Seria um disco maravilhoso, não fosse o fato de NENHUMA música estar completa, todas possuem cerca de dois minutos de duração apenas!  Na realidade, este álbum faz parte de uma coleção trazendo nomes como Groove, Baby, Groove!!, Cool, Baby, Cool!!, Brasa, Bicho, Brasa!! e outros, contendo faixas de artistas de tudo quanto é vertente, desde Beatles até Ella Fitzgerald, passando por Claudette Soares, Paul Mauriat, Cacique de Ramos(!), etc. Um dos volumes (Beat, Baby, Beat!!) mistura Cactus, MC5, Shotgun Ltd e Wilson Pickett!


Os dois álbuns do Sir Lord Baltimore foram relançados em CD em formato 2X1 pela Polygram, além de existirem em edições piratas européias, que eu desaconselho, pois foram extraídas de velhos LPs - para se ter idéia, existe uma prensagem do
Kingdom Come que chega a trazer um pulo numa faixa! O único senão deste 2X1 é que traz as músicas totalmente fora de ordem, de acordo com o produtor, com objetivo de "propiciar uma melhor audição". Eis a sequência correta, caso o leitor queira montar os álbuns conforme foram editados originalmente:

Kingdom Come (1970)
Lado A: "Master Heartache"/ "Hard Rain Fallin'"/ "Lady of Fire"/ "Lake Isle of Innersfree" e "Pumped Up"

Lado B: "Kingdom Come"/ "I Got a Woman"/ "Hell Hound"/ "Helium Head (I Got a Love)" e "Ain't Got Hung On You".

Sir Lord Baltimore (1971)
Lado A: "Man From Manhattan" e "Where Are We Going".

Lado B: "Chicago Lives"/ "Loe and Behold"/ "Woman Tamer" e "Caesar LXXI".

Desde junho de 2003 está rolando um boato que dá conta do retorno das atividades do Sir Lord  Baltimore, que contaria com John Garner e Louis Dambra, juntamente com algum outro baixista, pois Gary Justin não teria topado fazer parte da reunião. Não é a primeira vez que isto ocorre, já em 1976 foi noticiado que o grupo iria gravar um novo disco, que até hoje não apareceu, portanto é difícil saber se é verdade ou não. Particularmente fico com um pé atrás em relação a essas coisas, podem me chamar de retrógrado e conservador, mas prefiro ficar com meu bolachão do
Kingdom Come, ao mesmo tempo em que contemplo a capa e tento entender como pode um lorde ser americano e mesmo assim ser tão imponente e majestoso.

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Comentários

  1. Marco,

    Já ouvi críticos mesquinhos criticarem essa banda na capa de revistas segmentadas nas décadas de 60 e 70 aqui no Brasil, caso ela fossa a capa da revista.Por um acaso essa banda é mal vista no cenário do rock ??Abraços.

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  2. Fábio, na boa cara, relaxa ... o que o Régis disse é que não dá pra por capa de revista com o Sir Lord Baltimore, o que eu concordo, porque não vende. Captain Beyond é uma coisa, SLD é outra. Tô te achando muito ressentido, esquece isso.

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