Castiga!: Na frequência do Som Imaginário


Por Marco Antonio Gonçalves
Colecionador

O Som Imaginário foi uma das mais importantes bandas do cenário musical brasileiro da década de setenta e ficou conhecida não só por ser o núcleo que acompanhava Milton Nascimento em seus shows e travessias pelo Brasil, como também por abrigar o músico Wagner Tiso antes de sua bem sucedida carreira solo. 

Dominado por músicos mineiros e cariocas, o grupo foi formado no Rio de Janeiro em 1970 e teve curta duração, gravando apenas três discos: Som Imaginário (1970), Som Imaginário ou A Nova Estrela (1971) e Matança do Porco (1973), todos lançados pela gravadora Odeon.

Enquanto permaneceu na ativa, a trupe esteve ao lado não só de Milton – estreando o show Milton Nascimento… Ah! E o Som Imaginário em 1970 e participando de discos importantes como Milton (1970), Milagre dos Peixes (1973), Milagre dos Peixes Ao Vivo (1974) e o histórico Clube da Esquina (1972) – mas também como banda de apoio em álbuns e shows de Gal Costa, Taiguara, Sueli Costa e Carlinhos Vergueiro, entre outros.

Em sua rápida trajetória, a banda alterou continuadamente seu line-up, mas sempre contou com grandes instrumentistas. Além de Wagner Tiso, passaram pelas fileiras do Som Imaginário nomes como Zé Rodrix, Tavito, Laudir de Oliveira, Toninho Horta, Nivaldo Ornelas, Naná Vasconcelos e Marco Antônio Araújo. Alguns dos seus integrantes, como o baixista Luiz Alves, já tocavam com Tiso na noite carioca. Outros membros essenciais como o batera Robertinho Silva e o guitarrista Frederyko, o Fredera, vieram do combo Impacto 8 do trombonista Raul de Souza, que fazia uma mescla de jazz, soul, funk e samba.

Os dois primeiros álbuns do Som Imaginário seguem uma linha mais próxima do rock psicodélico, mostrando uma estética sonora pra lá de libertária. Nota-se também influências de música pop e Beatles, naturalmente. O Matança do Porco já é mais direcionado ao rock progressivo, ao erudito e ao jazz. Simplesmente um marco da música instrumental brasileira. Sintonize a frequência desta turma anárquica e faça boa viagem.


O homônimo disco de estréia do Som Imaginário bebia da fonte do rock psicodélico, mas pinçava elementos do rock progressivo, folk e MPB, mostrando um bom-humor nas letras e total criatividade nos arranjos. Uma estrutura sonora incrementada com guitarras wah-wah, órgão sessentista, percussão matadora e o vocal de Zé Rodrix aparecendo na maior parte das músicas. O poderoso agrupamento era uma verdadeira academia da imaginação sonora: Wagner Tiso (piano e órgão), Tavito (violão), Luiz Alves (baixo), Robertinho Silva (bateria), Frederyko (guitarra), Naná Vasconcelos (percussão) e Zé Rodrix (órgão, percussão, voz e flautas).

O elepê abre com a faixa “Morse”, um tema com riffs marcantes e a latinidade característica de Rodrix em ação. “Super God” sugere um ritmo flamenco, mas descamba mesmo pra lisergia pura, com vocal distorcido, guitarras ácidas e experimentos sonoros. “Tema dos Deuses”, de Milton Nascimento, tem participação do próprio nos vocais, num vôo mais progressivo, com breve escala no Clube da Esquina. Altas doses psicodélicas e climão paz e amor nas faixas “Make Believe Waltz”, “Sábado” e na anárquica “Nepal", hipongas pacas.


A primeira versão de “Feira Moderna” (de Fernando Brant, Beto Guedes e Lô Borges) aparece aqui, com letra original e que depois seria modificada na versão de Beto Guedes, contida no disco Amor de Índio, de 1978. “Hey Man” é outro ponto alto do disco, com uma levada contagiante e letra alfinetando o regime militar, no embalo da Copa de 70. O disco fecha com a bela “Poison”, composição de Rodrix em parceria com o cultuado músico Marco Antônio Araújo (que só lançaria seu primeiro álbum, Influências, dez anos mais tarde e que morreria em 1986, em decorrência de um aneurisma cerebral).

Um disco obscuro que já mostrava a competência desta turma de cabeludos, que pregava a paz e o amor livre e acreditava em um mundo melhor. A melhor definição do ideal do Som Imaginário está nas palavras de Milton Nascimento: “Um grupo com liberdade de pensamento político, e também sob o efeito de alguma magia, com tendência a rebeldia”. Obra fundamental da discografia nacional e que foi impressa com três capas diferentes. Bolhas de carteirinha possuem as três edições na maior felicidade!


O segundo e auto-intitulado trabalho do grupo foi lançado em 1971 e também é conhecido pelo título A Nova Estrela. Aqui a trupe já não contava com a participação do irreverente Zé Rodrix, que saiu para formar o trio Sá, Rodrix & Guarabyra, definindo aquilo que viria a ser chamado de rock rural.

Ainda sob a discreta liderança de Wagner Tiso, quem ganha espaço para desenvolver suas idéias anárquicas é Frederyko, que compõe vários temas, canta na maioria das músicas e faz, mais uma vez, um ótimo trabalho nos solos de guitarra. Além de Fredera e Wagner Tiso, completavam a formação os músicos Tavito (violão e guitarra), Luiz Alves (baixo) e Robertinho Silva (bateria).

Mantendo as diretrizes sonoras do álbum anterior, o grupo passeia por estilos que vão do rock psicodélico ao progressivo, flertando com a MPB, o folk e a música latina. O resultado é uma nova leva de belas vocalizações e melodias bem agradáveis, com destaque para as bem-humoradas “Cenouras”, “Gogó” e “Salvação pela Macrobiótica”.

A canção “Ascenso” é outra jóia rara, com letra e arranjos brilhantes, cantada com muito sentimento por Frederyko. “Uê” também manda muito bem: “Dê meu anel, meu colar / Meus parentes vão chegar / Amanhã de manhã / Vão saber que as flores são de papel / Que o dia é de papel / E nada”. Uma levada contagiante absorvida pela atmosfera flower power. Só escutando para entender.

Dos três discos este é o que menos me agrada no conjunto da obra, mas é também o que tem uma das minhas músicas preferidas do grupo, a subversiva “A Nova Estrela”. Composta por Wagner Tiso e Fredera, dava uma pista do som que seria desenvolvido no terceiro e último trabalho da banda, o progressivo Matança do Porco. A música rendeu um curta dirigido por André José Adler, que acabou representando o Brasil no Festival de Cinema de Berlim. Neste mesmo ano, o Som Imaginário acompanhou Gal Costa em seus shows pelo Brasil, tendo novamente a presença do percussionista Naná Vasconcelos em algumas das apresentações.

A trupe também participou de vários shows alternativos, como o Festival de Verão de Guarapari, realizado em fevereiro de 1971, no Espírito Santo, e anunciado como a versão brasileira do lendário Woodstock. Apesar das participações do Som Imaginário, Milton Nascimento e Novos Baianos, entre outros, o evento foi um estrondoso fracasso, prejudicado por uma série de fatores como a falta de planejamento dos organizadores e a infra-estrutura precária do local. 

Para piorar, a Polícia Militar vetou a presença dos hippies no festival. Resultado: ao invés das 40 mil pessoas esperadas, o “espetáculo” atraiu apenas 4 mil espectadores. Foi este também o festival em que Tony Tornado deu o famoso mosh sobre a platéia, caindo em cima de uma espectadora e quase a deixando paraplégica. Mas vamos tratar de amenidades ... Paz e amor, bicho!


Mas a obra-prima do Som Imaginário é mesmo este terceiro e último trabalho, o fantástico Matança do Porco, lançado em 1973. Mais líder do que nunca, o tecladista, arranjador e maestro Wagner Tiso assina a maioria dos temas e desenvolve uma sonoridade que marcaria também o seu trabalho solo. Um disco conceitual que apresenta um instrumental fascinante, fundindo jazz, rock progressivo, música erudita e MPB.

O line-up era composto pelos seguintes músicos: Wagner Tiso (Hammond, piano acústico e elétrico), Tavito (violão), Luiz Alves (baixo) e Robertinho Silva (bateria). O álbum conta ainda com as participações especiais de Milton Nascimento, Danilo Caymmi e dos Golden Boys. Frederyko, o grande Fredera, já havia saído da banda quando o LP foi lançado, mas os vestígios de que participou das gravações do “abate suíno” são evidentes ao se escutar os brilhantes solos de guitarra desenvolvidos no álbum. Arranjos sinfônicos muito bem elaborados, abrindo terreno para a banda fazer misérias.

Faixas como “Armina” (que combina guitarra fuzz e piano clássico de forma esplêndida), “A 3” (com Tiso criando frases no melhor estilo Kerry Minnear, do Gentle Giant), “A N° 2” (progressiva ao extremo, com um timbre de órgão sensacional e uma construção harmônica de arrepiar) ou “Mar Azul” (que agrega elementos do samba jazz e traz Danilo Caymmi nos arpejos de flauta) mostram uma banda bem entrosada e com músicos no auge de suas habilidades.

O maior destaque do disco está na faixa-título: um tema de onze minutos que divide-se em três movimentos, onde se sobressaem as vocalizações deslumbrantes de Milton Nascimento, os agudos da guitarra de Fredera e os fraseados bem bolados de Tiso. Divinamente sublime, “A Matança do Porco” foi composta por Wagner Tiso para o filme
Os Deuses e Os Mortos, de Ruy Guerra, que concorreu às premiações do Festival de Berlim, em 1971.

Depois deste disco, o grupo prosseguiu sua jornada por pouco tempo, promovendo novas alterações em sua formação. Robertinho Silva saiu para a entrada do baterista Paulinho Braga. Luiz Alves foi substituído pelo baixista Noveli. Tavito preferiu trabalhar sua carreira solo e cedeu lugar ao grande Toninho Horta. O saxofonista Nivaldo Ornelas, que já havia participado da banda em 1970, também foi reagrupado.

Com esse conjunto, gravaram o álbum
Milagre dos Peixes – Ao Vivo, creditado a Milton Nascimento e ao Som Imaginário, em 1974. Frederyko ainda retornaria à banda, antes do seu fim precoce, em meados de 1976. Menos mal que o intercâmbio entre os músicos continuou nos anos seguintes. Não é difícil encontrar alguns deles participando de discos de Wagner Tiso ou Milton Nascimento, por exemplo. Fredera, Tavito, Toninho Horta, Nivaldo Ornelas e a maioria de seus integrantes também gravaram seus registros individuais. Mas o certo é que O Som Imaginário, como banda, nunca mais gravou qualquer outro material, infelizmente!


Para quem se interessou em adquirir esses discos, a EMI lançou em 1997 uma caixa luxuosa contendo os três CDs da banda. Como não foram produzidas muitas cópias, o box simplesmente desapareceu das lojas rapidamente e hoje é um produto difícil de ser encontrado. Em 2003 a EMI soltou no mercado vários títulos remasterizados, no rastro das comemorações de 100 anos de Odeon no Brasil. Um dos relançamentos foi justamente o
Matança do Porco que, provavelmente, ainda deve estar em catálogo. Básico!

Comentários

  1. Bandaça! O Som Imaginário foi talvez o que o Brasil gerou de melhor na década de 70!
    Meus trabalhos preferidos tb são o primeiro e o Matança do Porco, apesar do segundo disco ser ótimo!
    Ainda não conheço esse Milagre dos Peixes - Ao Vivo, nem os demais discos em que eles atuaram, mas vou atrás.
    Parabéns pela matéria.

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