Discos Fundamentais: The Who - Tommy (1969)


Por Régis Tadeu
Colecionador e Jornalista
Matéria publicada originalmente na edição #158 da revista Cover Guitarra

O mundo em que vivemos não se cansa de nos quebrar a todos, mas alguns costumam ficar mais fortes exatamente nos pontos quebrados. É preciso ter tal pensamento em mente ao encarar a experiência de ouvir um disco como Tommy. Não, um simples "disco" não dá a real dimensão do que se ouve aqui. O termo correto seria "obra-prima", um trabalho musical que está no mesmo nível de importância de Sgt Peppers Lonely Hearts Club Band e Pet Sounds.

Considerada como a primeira ópera-rock a ser composta - embora tal rótulo demonstre uma certa imprecisão (o mais correto seria uma "cantata roqueira") -, Tommy simplesmente inspirou 80% do rock e do pop feito a partir de 1969 (data de seu lançamento oficial), principalmente na maneira como a guitarra passou a ser encarada como instrumento principal dentro de uma composição. Ao cunhar uma série de acordes não menos que perfeitos para cada uma das músicas, Pete Townshend nadou na corrente contrária do então nascente virtuosismo de caras como Jimi Hendrix e Jeff Beck. Solos? Muito raros, apenas quando tal elemento era imprescindível para a canção. O que importava mesmo era a força harmônica e melódica dos acordes.

A partir do instante em que a belíssima "Overture" começava a soar, pontuada por violões e guitarras executando acordes escolhidos a dedo e trompas magníficas, era impossível não ser transportado ao mundo do garoto que ficou cego, surdo e mudo depois de presenciar o assassinato do pai pela mãe e o amante, e que mais tarde se tornou um campeão de fliperama e acabou virando uma espécie de Messias quando adulto - uma história que, na verdade, era uma parábola sobre a opressão e o abuso infantil como fatores primordiais nos descaminhos de um ser humano em busca de sua própria verdade. A tensão presente em "Sparks" chegava a ser claustrofóbica, desaguando na surpreendente inclusão de "Eyesight to the Blind" (do bluesman Sonny Boy Williamson), aqui totalmente rearranjada para que a letra ficasse inserida dentro do padrão sonoro do álbum, com Townshend trabalhando suas guitarras com a mesma abordagem que um compositor erudito ao empregar toda uma seção de cordas em uma obra, que por sua vez se encadeava com a magistral "Christmas", esta recheada com acordes poderosíssimos. Os mais de dez minutos de "Underture" mostravam como violões e o contrabaixo de John Entwistle poderiam se unir e formar uma massa sonora poderosíssima, tensa e psicótica.

Funcionando como uma sucessão de árias e passagens instrumentais, Tommy explicitava a maneira como Townshend já vinha estruturando harmonicamente suas canções - vide "1921", "Acid Queen" e "Amazing Journey" -, em que a sutileza da base feita com violões encontrava surpreendente harmonia na poderisíssima bateria de Keith Moon e nos riffs envenenadíssimos do guitarrista. A condensação de momentos-chave da obra em "Go to the Mirror!" reflete justamente um momento de catarse, que acaba acontecendo em canções emblemáticas da obra, como as espetaculares "Pinball Wizard", "I´m Free" e "Christmas".

Embora já tivesse lançado um disco conceitual dois anos antes (Who Sell Out) e Townshend já tivesse dado seus primeiros passos roqueiro/operísticos em "A Quick One (While He´s Away)", nada sugeria o impacto que Tommy causou em todos. Sem soar pomposo em nenhum instante, Tommy não apenas foi o responsável pela popularização do The Who em todos os países do mundo ocidental, mas também elevou o rock a um patamar de excelência literária (é, é isso mesmo que você leu!) que só encontra paralelo musical na poesia de Bob Dylan.

Além disso, este disco ensinou que um guitarrista tem que ser um bom compositor. Sem essa qualidade, tocar o instrumento se torna apenas um ato mecânico.


Faixas:
A1 Overture 5:21
A2 It's a Boy 0:38
A3 1921 2:49
A4 Amazing Journey 3:24
A5 Sparks 3:46
A6 Eyesight to the Blind (The Hawker) 2:13

B1 Christmas 4:34
B2 Cousin Kevin 4:07
B3 The Acid Queen 3:34
B4 Underture 10:09

C1 Do You Think It's Alright? 0:24
C2 Fiddle About 1:29
C3 Pinball Wizard 3:01
C4 There's a Doctor 0:24
C5 Go to the Mirror! 3:49
C6 Tommy Can You Hear Me? 1:36
C7 Smash the Mirror 1:35
C8 Sensation 2:27

D1 Miracle Cure 0:12
D2 Sally Simpson 4:12
D3 I'm Free 2:40
D4 Welcome 4:34
D5 Tommy's Holiday Camp 0:57
D6 We're Not Gonna Take It 7:08

Comentários

  1. Não gosto do Sérgio Tadeu, mas o Tommy é demais!

    Abraço

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  2. Daniel, você pode não gostar do Régis, mas tem que concordar que os textos dele - como esse, por sinal - são muito bons, verdadeiras jóias na imprensa musical brasileira.

    Abração, e valeu pela audiência.

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  3. Um disco disparadamente fantástico. Acho que só perde pro Quadrophenia em termos de musicalidade, mas não em importância

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