"Kind of Blue": o álbum mais místico do jazz completa 50 anos


Por Bruno Vitorino
Músico e Pesquisador
Clube de Jazz

No início da tarde de 02 de março de 1959 Jimmy Cobb chegava cedo ao lendário 30th Street Studio da Columbia Records para montar calmamente sua bateria e escolher, junto com os engenheiros de som, o melhor lugar para captação de seu instrumento. Aguardava os demais músicos envolvidos na primeira sessão que aconteceria em breve como se fosse apenas mais um dia de trabalho em toda a sua banalidade.

Enquanto terminava de preparar a bateria, iam chegando os demais músicos escalados: John Coltrane, Julian "Cannonball" Adderley, Paul Chambers, Wynton Kelly, Bill Evans e o líder Miles Davis. Penduraram seus casacos, armaram suas estantes para apoiar as partituras, verificaram seus instrumentos, tomaram suas posições dentro da sala de gravação, distribuindo banquetas e cadeiras para todos ficarem confortáveis. Aguardavam o sinal da cabine técnica, após uma breve conversa sobre a estrutura das composições, a ordem dos solistas e o que não fazer durante a música, para darem início à gravação do álbum mais místico da história do jazz: Kind of Blue.

Apostando na concepção musical de que menos é mais,
Kind of Blue é considerado pelos fãs, críticos especializados e músicos em geral a obra-prima de Miles Davis. Acompanhado da nata do jazz à época, ele foi na contramão do hard bop, que se apoiava num complexo encadeamento harmônico e nas melodias frenéticas, conclusivas e cheias de notas, reafirmando o blues e o gospel. Davis ancorou-se no modalismo. O resultado proporcionava uma música aberta baseada em escalas (modos), que ampliavam as possibilidades melódicas dos improvisadores, de poucos acordes e com temas flutuantes, combinando notas longas e silêncios.

Miles estava no ápice de sua verve criativa. Em 1959 liderava o grupo mais quente de Nova York, que fazia apresentações antológicas nos clubes da cidade para uma platéia repleta de figuras ilustres, como Marlon Brando e Elizabeth Taylor. O sucesso de público e crítica alcançado em
Porgy and Bess (1958), bem como nos outros três discos anteriores para a Columbia – ‘Round About Midnight (1967), Miles Ahead (1957) e Milestones (1958) – alavancaram o trompetista à categoria de astro tanto do meio musical quanto no universo das celebridades. O nome Miles Davis passou a ser sinônimo de requinte (status social) e refino musical (círculo jazzístico). Por isso, a gravadora lhe pressionava para que entrasse em estúdio novamente.

Contudo, antes de mergulhar nas sessões que gerariam
Kind of Blue, há necessidade de se fazer uma digressão para contextualizar a Columbia Records neste recorte histórico. No começo da década (1950), a gravadora, ainda em desvantagem em relação às outras companhias, procurava grandes ícones para compor seu quadro de artistas. Impulsionada pelos avanços tecnológicos e pelo crescimento econômico do pós-guerra, a indústria fonográfica desfrutou um crescimento sem precedentes, e a Columbia também queria sua parte. Por isso, se um olhar mais próximo for dedicado à empresa, perceber-se como ela se esforçava para agregar nomes de peso ao seu rol de artistas.

O jazz não ficou de fora, pois o mesmo não é apenas uma forma de música, mas também uma forma de fazer lucros. Partindo desse pressuposto, a Columbia utilizava também para o gênero a combinação de artistas consagrados com grandes campanhas publicitárias. O intuito era atrair o consumidor médio, transformando o estilo em um produto tão vendável quanto a musica pop feita à época, bem como proporcionar ao aficionado variedade suficiente de títulos para mantê-lo sempre comprando.

A Columbia oferecia a Miles Davis o aparelho institucional necessário (estúdio e equipamentos excelentes, engenheiros de som experientes, produtores com formação musical, eficiente seção de marketing), dando também plena liberdade ao seu gênio criativo (constante busca por novos paradigmas musicais, lirismo melódico infindável, capacidade de se rodear dos melhores músicos e deles extrair o melhor). O resultado dessa relação mostrou-se extremamente lucrativa para a gravadora e para o trompetista. Com
Kind of Blue não seria diferente.


As sessões que se desenrolariam representaram um audacioso passo à frente para Miles. O trompetista estava consolidando sua auto-suficiência em estúdio, ou seja, a Columbia lhe permitira desta vez dirigir todo o projeto, desde a composição até o comando da banda e a gravação. Os arranjos foram definidos no dia da gravação, para que a música fosse captada em seu estado mais espontâneo.

"Freddie Freeloader" é um blues de 12 compassos em andamento moderado, cheio de swing, em homenagem a um excêntrico barman da Filadélfia. Provavelmente, por sua estrutura blues muito familiar a todos os integrantes do sexteto, foi a primeira composição a ser gravada - apesar de se tornar a segunda faixa do disco. É também a única música onde o piano de Wynton Kelly pode ser ouvido, porque, segundo Miles,
Kind of Blue foi pensado para o toque suave e minimalista de Bill Evans. Entretanto, por se tratar de um blues mais tradicional, provavelmente o trompetista tenha preferido o peso da mão de Kelly. Vale ressaltar como soa confortável o improviso de Cannonball nessa música. Nas outras faixas, fica claro como ele não mergulhava por inteiro no jazz modal.

Já "So What" é uma composição simples baseada em duas escalas (ré dórico e mi bemol dórico), com prelúdio etéreo tocado em rubato por baixo e piano. Sua inspiração melódica vem de duas fontes bem definidas: o folclore africano e o gospel norte-americano. Há também, ainda que oculta, a presença de Gil Evans na composição (existe, inclusive, quem diga que a introdução foi escrita por ele). O solo de Miles evidencia duas de suas características mais marcantes: a simplicidade melódica (notas longas e pausas) e a tendência de adiantar o ritmo e brincar com as acentuações. Coltrane e Cannonball são explosivos, o primeiro com mais densidade que o segundo. Por sua vez, Bill Evans é bem econômico, um pouco cauteloso, mas sempre consciente.

"Blue in Green" foi a última composição gravada nessa sessão de 02 de março. Trata-se de uma balada de dez compassos com um efeito de suspensão extraordinário, que segue um simples padrão tonal sem evidente tema principal. Cannonball não participa dessa faixa, que requer solos calmos e flutuantes. Paul Chambers assume função importante para o desenvolvimento da música, servindo de âncora tonal e rítmica aos solistas. O desfecho é sublime. Contudo, existe uma questão de âmbito não musicológico sobre essa música que permanece aberto: qual a razão para Miles negar a autoria da composição a Bill Evans?. Apesar das constantes reclamações o pianista não insistiu muito no assunto, e os créditos foram todos ofertados ao trompetista.

O sexteto volta ao 30th Street Studio na tarde de 22 de abril de 1959 para gravar mais duas faixas para finalização do álbum. "Flamenco Sketches" é a música mais puramente modal dentre as que seriam gravadas para Kind of Blue. Um tema composto sobre cinco escalas que se articulam formando um ciclo, com destaque para o modo frígio que lhe dá o sabor ibérico. Transitar entre os cinco blocos da estrutura exigia cautela, portanto os improvisadores não tocam além da conta. Miles, com sua surdina, perpassa as notas necessárias sem se arriscar em seu solo; Coltrane se mostra pesaroso e melancólico; Cannonball soa atento às articulações das escalas, como se andasse em terreno desconhecido; Bill Evans é pura delicadeza e simplicidade. Hipnótico.

A gravação do disco começou com um blues e terminaria da mesma maneira. "All Blues" é estruturada em doze compassos com andamento 6/8 e escassa harmonia modal. O ostinato de Chambers, combinado ao trinado constante de Evans, reforça o balanço de valsa e fornece a base para os sopros. Os saxofones harmonizam e Miles costura milimetricamente o tema com suas notas longas, para depois devanear improvisando. Cannonball o segue despreocupadamente, tendo a forma blues como porto seguro. Coltrane se revela intenso, despejando camadas de notas furiosamente. Bill ataca com a agressividade necessária ao estilo, mantendo o ritmo com a mão esquerda. Miles alça vôo novamente antes que a banda retorne ao tema para finalizá-lo, e encerrar a última sessão de gravação. Nascia o disco que marcaria definitivamente a carreira de Miles Davis.

Na esteira do sucesso dos últimos discos do trompetista, a equipe de vendas da Columbia recebeu
Kind of Blue com bastante entusiasmo. Com o suporte dado pela campanha publicitária da gravadora, o álbum caminhava para se tornar um best-seller. No entanto, musicalmente, as inovações estruturais – modalismo – promovidas pelo sexteto só seriam percebidas um pouco mais a frente. O álbum fez menos barulho quando saiu do que sua reputação atual poderia sugerir – fazendo sua mágica na música por meio da evolução, não da revolução. A cena musical incorporaria algumas de suas idéias, mas sua real dimensão foi sendo descoberta aos poucos.

Para comemorar o aniversário de 50 anos desse lendário álbum, a Sony Legacy, detentora do catálogo da extinta Columbia Records, lançou, em setembro de 2008, uma edição especial para colecionadores com dois discos cheios de takes alternativos e falsos inícios, um DVD documentário sobre o álbum, um vinil azul de 180 gramas e um livreto de 60 páginas com textos e fotos da imortal sessão.

Ao longo de seus cinquenta anos de existência,
Kind of Blue se consolidou como um marco. Sua simplicidade convida à reflexão de como o muito pode ser dito de maneira convincente e inovadora com poucos elementos. A espontaneidade contagiante, o frescor das composições, a verve emotiva dos improvisadores, a ambiência suspensa, envolvem o ouvinte de maneira a levá-lo para longe de onde se encontra fisicamente. São exatos 55 minutos e 16 segundos de perfeição. Cada nota, cada pausa no seu devido lugar. Uma das poucas obras na história pintada na primeira pincelada sem nenhuma falha. Se o jazz tem uma essência, ela pode ser encontrada nesse álbum.

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Comentários

  1. O “Kind of Blue” do Miles Davis é mesmo, como você titula sua matéria, o álbum mais místico do jazz! O disco funciona que nem um divisor de águas, sendo apreciado e aplaudido por várias gerações de músicos e pessoas comuns dentro e fora dos limites do jazz. Porque, na verdade, com este disco o jazz perde as fronteiras! A música de Miles é elevada, sublime e arrasadora se você escutar com a atenção que ela merece. Não sei quais são suas paragens obrigatórias mas deixo a sugestão de uma que eu checko a toda a hora para as novidades dentro e fora do jazz! http://cotonete.clix.pt/ é um site bastante completo de rádio e música.

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