Miles Davis e o rock


Por Alex Antunes
Jornalista

Sexo, drogas & rock’n’roll. Hoje soa como o mais banal dos clichês, mas o estrago que essas três palavrinhas fizeram na moral e nos bons costumes ao longo dos anos sessenta não foi pequeno. Sexo, drogas, rock’n’roll – e também o cabeleireiro e o costureiro de Jimi Hendrix, como veremos.

Nem o jazz de Miles Davis escapou à transformação. Miles, aliás, pulou de cabeça nela. Em 1967, aos 40 anos de idade, ele já tinha transformado o jazz duas ou três vezes – mas o jazz ainda era jazz. Nesse ano, John Coltrane, ao lado de quem Miles inventou o jazz moderno na década de 50, morreu de repente com cirrose hepática, e de repente uma era estava acabada. A revolução estava no ar.

O veterano Miles, por trás dos seus elegantes ternos Brooks Brothers, estava bem atento. O exército urbano dos Panteras Negras; a poesia politizada dos Last Poets, precursores do hip hop; a rítmica sex machine de James Brown (sem falar no lado branco da coisa, com a psicodelia e a explosão pop), nada escapava à sua observação arguta.

Mas Miles era antes de tudo um individualista negro, e não um militante. Filtrava essas influências à sua maneira. Não é de estranhar que, mesmo sendo considerado um bandleader intransigente, quase intratável, suas bandas tenham sido o maior celeiro de talentos de toda a história do jazz, considerando Chick Corea, Keith Jarrett, o austríaco Joe Zawinul, John McLaughlin, Dave Holland, Jack DeJohnette, Billy Cobham, Lonnie Liston Smith, Branford Marsalis, Marcus Miller e tantos outros, inclusive os brasileiros Airto Moreira e Hermeto Paschoal. Quem sobrevivia a Miles estava destinado a ser líder.

De 1965 a 1968, Miles tinha se cercado de um grupo jovem, excepcionalmente talentoso e inovador, sem ser propriamente revolucionário: Herbie Hancock (piano), Wayne Shorter (sax), Ron Carter (contrabaixo) e Tony Williams (bateria). Miles parecia apenas observar, enquanto as provocações radicalmente atonais do free jazz eram lançadas por gente como Ornette Coleman e Don Cherry.

Mas, em 1968, o foco da música negra estava passando da vanguarda para a música “de mercado”, com o funk de Sly Stone, o blues eletrocutado de Jimi Hendrix ameaçando as paradas – e Miles estava pronto para o próximo passo. Drogas (a introspectiva heroína, principalmente) e sexo, claro, já eram parte indissociável do universo do jazz. E é aí que surge o terceiro elemento, o rock – como sinônimo de estilo ou, mais precisamente, de escândalo.

O primeiro disco nessa transição milesiana foi o translúcido In a Silent Way, gravado no início de 1969. Calmaria antes da tempestade, ele apontava para o que estava por vir no segundo semestre, com Bitches Brew. Um grande passo na ruptura do jazz de Miles foi a eletrificação. Sonoridade preponderante em In a Silent Way, o piano elétrico Rhodes já tinha sido adotado por ele – inicialmente sob o protesto de alguns de seus pianistas, como Chick Corea – desde Miles in the Sky (1968) e Filles De Kilimanjaro (1969).


Então, veio a guitarra. Guitarra eletrificada não era novidade no jazz (isso, aliás, desde 1937, com Charlie Christian), mas ela era rara e deslocada na música de Miles antes da chegada do fluente blueseiro britânico John McLaughlin. Depois, o baixo elétrico, que em Bitches Brew ainda convive com o baixo acústico.

Esse inovador álbum duplo foi saudado por parte da crítica com entusiasmo, quase com alívio, pois a morte de Coltrane tinha deixado uma interrogação a respeito do futuro do jazz – ou do jazz do futuro. Ornette era ermitão demais para representar o papel de guru; Miles, ao contrário, não hesitava em estampar na capa de seus discos o slogan “Directions in Music by Miles Davis”.

Bitches Brew, com Miles surgindo de novo na linha de frente da evolução, foi considerado o marco zero do jazz rock, ou fusion, ou electric jazz. E é credenciado para isso pelo êxtase tenso, químico, urbano, sugerido pelas músicas que abrem seus dois discos (respectivamente a faixa-título, composta por Zawinul, e “Spanish Key”). Mas ainda é música que parte do território do jazz em direção ao rock.


Chocante, ao contrário, é seu álbum-irmão bastardo, que Miles gravou quase ao mesmo tempo, usando outro time de músicos. E que ficou escondido no armário da gravadora Columbia por um ano, e mesmo assim foi lançado sem alarde. A trilha que Miles compôs para a cinebiografia do boxeador Jack Johnson (1878-1946), essa sim, é o ruído inesperado, a ruptura em si. Para quem está procurando pelo rock propriamente dito, é em A Tribute to Jack Johnson que ele finalmente irrompe do jazz, para desespero dos puristas.

São apenas duas longas faixas – uma de cada lado do vinil original. E começa com uma porrada: “Right Off”. Segundo Miles, “A questão era: Jack dançaria com isso?”. A inspiração para o ritmo surgiu em uma viagem de trem: aquele tatac-tatac das rodas nas emendas dos trilhos. Como Jack era uma locomotiva ao massacrar os oponentes, Miles tinha achado o conceito. Seu trumpete, de tão lacônico, só aparece depois de uns dois minutos de groove (ou de trilhos), providenciado por um riff que McLaughlin jura ter puxado ao acaso no estúdio, só para esquentar, enquanto Miles e o produtor Teo Macero conversavam na técnica.

A vibrante formação nessa sessão incluía Billy Cobham na bateria, Herbie Hancock no orgão Hammond, Steve Grossman (de 19 anos!) no sax e Michael Henderson no baixo. Henderson tinha sido roubado por Miles das bandas de Aretha Franklin e Stevie Wonder, e foi o primeiro baixista a tocar com Miles que não passou antes pelo baixo acústico, o que ainda deixava o líder um pouco apreensivo. Outro saxofonista e jovem colaborador, Gary Bartz, conta que, quando Miles perguntou o que ele achava dessa “limitação” de Henderson, disse: “Bom, provavelmente vai levar a música da banda em uma outra direção”. Isso fez Miles decidir.

O texto da contracapa de A Tribute to Jack Johnson foi escrito pelo próprio Miles - ele mesmo lutador amador –, na única vez em que isso aconteceu. Falando de Jack, o primeiro boxeador negro a conquistar o título dos pesos-pesados, Miles diz que “ódio é o oposto do amor e ambos se alimentam”.

Na capa, elegantemente vestido, Johnson desfila em seu conversível amarelo, por volta de 1910, acompanhado de garotas coquetes – algumas delas brancas. Esse tipo de provocação foi a principal razão para Johnson ter sido perseguido e acabar passando um ano na prisão, o que ajudou a acabar com sua carreira. É só colocar no lugar do calhambeque de Johnson a Ferrari ou o Lamborghini que Miles logo compraria (e os seguidos problemas que ele teria com a polícia), e as coisas começam a fazer sentido.

Miles estava casado durante esse ano de 1970 com a cantora soul Betty Mabris – ou Betty Davis, o nome artístico que ela adotou. Foi Betty, uma estonteante negra de 23 anos, que o apresentou a Jimi Hendrix. E também a James Finney e ao argentino Hernando, que tinha um ateliê em Greenwich Village, o bairro boêmio de Nova York. Finney e Hernando eram respectivamente o cabeleireiro e o costureiro de Hendrix, e participaram da drástica mudança de imagem pela qual o trumpetista passava.

Miles, aliás, quase gravou com Hendrix, que teria ficado impressionado com A Tribute to Jack Johnson. Eles tocaram juntos algumas vezes, na casa de Miles. Ele se separou de Betty depois que soube que ela andava saindo com Jimi, mas aparentemente não censurou o guitarrista. O projeto conjunto só não vingou porque Hendrix morreu na semana em que eles pretendiam começar a trabalhar, menos de um mês após o Festival da Ilha de Wight, em agosto de 70, onde os dois (e Sly Stone também, entre os nomes mais quentes da época) se apresentaram.


Por falar em Wight, o fascinante DVD Miles Electric: A Different Kind of Blue (lançado aqui pela ST2) mostra o momento em que a preciosista cultura jazzy, cultivada em décadas de madrugadas esfumaçadas de pequenos clubes, explode para valer no universo pop. É o momento em que Miles e sua banda pisam no palco à frente de 600 mil fãs de rock e os mesmerizam com seu som cíclico e improvisado, como se fosse essa música que fizesse a noite baixar magicamente sobre o sul do Reino Unido.

Cercando a magnética figura de Miles, sob seu comando telepático, como discípulos em transe, estão Corea e Jarrett nos teclados elétricos (Rhodes e órgão Hammond), DeJohnette na bateria, Bartz nos saxes, Holland no baixo elétrico e Airto na percussão (fazendo falar em especial uma brasileiríssima cuíca). E, em seus figurinos hippies de batas, longos cabelos e bandanas, eles inventam o jazz-rock não só como gênero musical, mas como espetáculo.

Miles havia meses antes procurado Clive Davis, o presidente da Columbia, e reivindicado tratamento de pop star, no rastro do sucesso de grupos que acoplavam bases roqueiras a sopros jazzísticos, como o Blood, Sweat & Tears e o Chicago. “Esses branquelos de merda vendem três milhões de cópias, e eles foram influenciados por mim”, rosnou Miles, que vendia em média 60 mil cópias por disco – isso até Bitches Brew. O álbum afinal converteu-se na maior vendagem de um disco de jazz, com 500 mil cópias comercializadas à época do lançamento.

Não estou pronto para ir para o museu”, jurou Miles, e prometeu formar a “melhor banda de rock de todos os tempos”. Clive então apresentou Miles a Bill Graham, dono das casas de espetáculo Fillmore (a matriz em São Francisco e o Fillmore East em Nova York). Então a banda elétrica de Miles abriu um show para o Grateful Dead, primeiro passo para a série de shows que o levou à Ilha de Wight, e o resto é história.


Nos dois próximos anos o conceito musical de Miles foi se radicalizando em álbuns como Big Fun (1974), Live-Evil (1971) e Get Up With It (1974) (que traziam fragmentos das sessões de Jack Johnson), e principalmente no esparso e percussivo On the Corner (1972), em que Miles, segundo ele mesmo, flertou igualmente com o funk e com a abstração de Stockhausen.

Esse foi seu último álbum de estúdio, antes que as turnês incessantes e as drogas o derrubassem num limbo que durou seis anos, de 1975 a 1981. Os discípulos, entretanto, não perderam tempo: McLaughlin, depois de passar pelo Lifetime de Tony Williams formou em 1971 a Mahavishnu Orchestra com Billy Cobham e o tecladista tcheco Jan Hammer. Este, por sua vez, acompanhou o ex-Yardbird Jeff Beck na sua guinada black de Wired (1976) e With Jan Hammer Group Live (1977).

Ainda em 1971 Corea fundou o Return to Forever, inicialmente com Airto e sua mulher, Flora Purim, grupo que revelou o baixista Stanley Clarke. E Airto também ajudou Zawinul e Shorter a criarem, ao mesmo tempo, o Weather Report, que mais tarde acolheu o baixista-sensação Jaco Pastorius.

Também tendo colaborado com a Mahavishnu (e com Frank Zappa, como veremos), o violinista francês Jean-Luc Ponty fundou em 1976 sua própria banda – e assim por diante, numa derivação que em poucos anos já havia se diluído, guinando da criatividade para o exibicionismo instrumental. Mesmo o molho caliente suprido por músicos latinos como Santana e Gato Barbieri, ou africanos como os do Osibisa, seria pasteurizado no processo.


Mas o nosso próximo homem-chave a ser mencionado é Herbie Hancock, que foi engendrando sua própria versão da fusão eletrônica em Crossings (1972) e Sextant (1973), até chegar em 1974 à formação-síntese do jazz-funk, os Headhunters. É curioso notar como em Sextant há um cruzamento evidente entre dois universos supostamente antagônicos, o tecnológico (o som dos instrumentos eletronicamente processado por pedais, devidamente mencionados na ficha técnica) e o tribal (todos os membros do grupo ostentam codinomes africanos).

Como anotou o crítico alemão Joachim Berendt em seu livro O Jazz – Do Rag ao Rock, lançado naquela década, “Charles Keil e Marshall McLuhan chamam a atenção para o talento especial do afro-americano no sentido da dilatação dos recursos auditivos, sobretudo em função do uso de efeitos eletrônicos. Em resumo: o uso genérico dos instrumentos eletrônicos foi preparado pelos negros; os sons eletrônicos ‘puros’ foram desenvolvidos nos estúdios de música erudita de vanguarda; a música rock popularizou esses recursos sonoros”.

Como se vê, a conexão eletrônica que Miles pretendia estabelecer entre Sly Stone e Stockhausen não era uma mera idiosincrasia sua. Uma década mais tarde, em 1983, Hancock chegou ao hip hop com o hit “Rockit”, o mais popular da história da break dance. Como também foi de hip hop o álbum póstumo de Miles, Doo-Bop (1992), finalizado pelo MC e produtor Easy Mo Bee. Uma afronta final aos puristas.


À parte desse eixo milesiano, duas outras vertentes do jazz-rock, sincrônicas e de surgimento independente umas das outras, tem que ser consideradas. Uma é o trabalho de Frank Zappa que, tendo o jazz moderno e o rock entre suas referências (além da música erudita moderna, da psicodelia, do progressivo, do blues e de formas tradicionais do jazz, como o doo-wop e as big bands), aproximou-se em alguns momentos do fusion na sua forma usual. Pode-se dizer que Zappa capturou mais a complexidade formal do jazz moderno do que propriamente seu feeling.

Graças ao seu humor provocativo e paródico, Zappa no geral não propunha uma entrega espiritual ao som, mas antes um certo distanciamento, como no álbum The Grand Wazoo (1972).

Por outro lado, e por meio da colagem mordaz de gêneros, Zappa tentava fazer uma oposição cultural e política tão contundente quanto o free jazz fazia da maneira simetricamente oposta (o desprezo aos elementos estruturantes da música popular ocidental – harmonia, melodia e ritmo). Mas, em seu álbum Hot Rats (1969), Zappa pode certamente ser listado como precursor do jazz-rock – um precursor californiano, witty, branco e arejado, crítico porém distante da “nóia” urbana que alimentava o som de Miles. E, em outros momentos mais diretos, como em Zoot Allures (1976), acompanhado pelo fenomenal baterista Terry Bozzio, Zappa soa definitivamente como fusion. Isso sem esquecer que as bandas de Zappa também se comparam às de Miles como celeiro de talentos.

O tecladista funky George Duke, originalmente dos Mothers of Invention de Zappa, pode ser considerado o elo perdido entre ele e Miles Davis – com quem viria a trabalhar em Tutu (1986) e Amandla (1989), derradeiros álbuns de estúdio do trumpetista. O violinista Jean-Luc Ponty, presente em Hot Rats, é outro músico que fez essa conexão entre “escolas”.

A outra fonte do jazz-rock é a Europa, mais precisamente a Inglaterra. O grupo Soft Machine surgiu em 1967, encabeçado pelo guitarrista australiano Daevid Allen e pelo baixista Kevin Ayers, no contexto da psicodelia da época – e a matriz de seus primeiros dois álbuns (1968, 1969) é a mesma do Pink Floyd. Um ou outro grupo progressivo surgido nessa época – particularmente o King Crimson – esboçou algum tipo de apropriação do jazz, sem que isso pudesse ser rotulado de jazz-rock.


Mas a saída de Allen do Soft Machine, ainda antes da gravação dos dois álbuns, e a de Ayers, depois do primeiro, permitiu que a influência jazzística dos outros membros – o tecladista Mike Ratledge, o baterista e cantor Robert Wyatt e o baixista Hugh Hopper, todos intensamente criativos quanto a timbres e improvisos – viesse à tona. Os longos trechos improvisados que aconteciam durante os shows do Soft Machine se tornaram a própria linguagem da banda durante a gravação do terceiro disco, Third (1970). Um álbum duplo, com apenas quatro faixas, uma por lado, que revelava Ratledge como o Hendrix do órgão elétrico. Um instantâneo do espírito da época, como o foram Bitches Brew e A Tribute to Jack Johnson do outro lado oceano.

Ao longo dos próximos cinco álbuns, até 1975, com o afastamento de Ratledge (Wyatt saiu em 1972, Hopper em 1973), o estilo do grupo foi se cristalizando num fusion mais convencional, ainda que vigoroso. Mas a maravilha do jazz psicodélico de Third influenciou o surgimento de várias bandas européias.


Na Itália, particularmente, algumas bandas mantiveram o jazz-rock no seu patamar explosivo. Uma delas foi o grupo esquerdista Area, tendo à frente o cantor greco-italiano Demetrio Statos, que até 1978 (ano em que Statos morreu de aneurisma cerebral) serviram a mistura mais empolgante entre rock e experimentalismo eletroacústico, em álbuns como Arbeit Macht Frei (1973) e Crac! (1975).


Uma outra, Napoli Centrale, trazia o vocalista e saxofonista negro James Senese cantando, em dialeto napoletano, à frente de uma pequena formação de músicos ingleses e italianos. O álbum
Napoli Centrale (1975) é apenas mais uma das pérolas esquecidas da era do jazz elétrico.

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