Loki, o documentário sobre Arnaldo Baptista


Por Rogério Ratner
Músico e Escritor
Blog do Rogério Ratner

É emocionante, sob todos os aspectos, o filme
Loki, sobre Arnaldo Baptista, líder dos Mutantes. Um excelente trabalho do diretor Paulo Fontenelle e sua equipe, que souberam costurar muito bem as cenas de arquivo, as entrevistas, as apresentações, com um ótimo timing.

Após ver o filme, pus-me a refletir sobre algumas coisas, que podem ser bobagem, mas que me ocorreram. É que de súbito surgiu na minha cabeça a seguinte pergunta: porque a história de Arnaldo é capaz de nos mobilizar tanto emocionalmente? Dito de outra forma, porque, em meio a enormes talentos dentro da música brasileira, dos mais diversos estilos, surgidos no final dos anos 60 e durante os anos 70, Arnaldo - que, sem dúvida, era um deles -, nos suscita tanta comoção?

Diversas coisas ocorreram-me como resposta. Em primeiro lugar, é claro, porque Arnaldo é de um talento tremendo, de uma criatividade única, de uma humanidade ímpar, de uma honestidade indiscutível, sem dúvida alguma. Mas isto, por si só, não parece ser suficiente para satisfazer a incógnita, pois muita gente boa surgida naquela época também tinha estas características. Basta lembrarmos de nomes como Walter Franco, Tom Zé, Jorge Mautner, Hermes Aquino, Sérgio Hinds e tantos outros talentos que foram despejados, em maior ou menor grau, da grande máquina das gravadoras no período.

O que parece fundamental, como explicação para o que ele mobiliza em nós, além de sua genialidade, é, ao menos pra mim, o aspecto épico de sua história pessoal. Ou seja, é a gangorra emocional e profissional, desde o ápice do sucesso e da felicidade até o fundo do poço afetivo e do reconhecimento popular, com o seu tardio (embora, felizmente, não tarde demais) ressurgimento triunfal, que emociona profundamente. De alguma forma, a sua história é uma metáfora de toda a trajetória humana, embora, em geral, não seja comum que a maioria das pessoas viva estes contrastes de altos e baixos de forma tão aguda quanto Arnaldo viveu. Neste sentido é que, então, o seu caminho torna-se transcendente, catártico, arquetípico e épico, e nos toca profundamente.

Em verdade, a história de Arnaldo, em termos profissionais, não fosse todo o turbilhão de problemas emocionais e pessoais que vivia, e que se misturaram, evidentemente, à questão profissional e a invadiram e a contaminaram, não era assim tão imprevisível. Com isto, quero dizer que me parece que o período de entressafra vivido por Arnaldo em sua carreira, após a saída de Rita Lee dos Mutantes e após a sua própria saída da banda, não parece haver decorrido apenas de seus problemas pessoais, mas também de um contexto. Vale dizer, é bem possível que mesmo que ele não entrasse no inferno astral pessoal, talvez profissionalmente as coisas não caminhassem de forma muito diferente, muito embora, sempre é bom ressalvar, a própria crise pessoal tenha invadido a sua própria criação, diminuindo as suas chances comerciais, embora a grande densidade e qualidade musical e artística de sua fase "depressiva".

Com efeito, o rock brasileiro dos anos 70, pode-se dizer assim de forma quase geral, ao enveredar pelo caminho do progressivo e ao radicalizar demais na psicodelia, entrou, de uma certa forma, sob o aspecto comercial, num beco sem saída - não digo no aspecto artístico, pois era música de excelente qualidade. De fato, após a explosão comercial da Jovem Guarda, nos anos 60, da qual, sem dúvida, os Mutantes entraram no rastro, evoluindo, claro, para a psicodelia via Tropicália, o rock brasileiro, em termos comerciais, ficou em um nicho muito particular, encolheu-se, embora tenha crescido, sem dúvida, em termos de criação artística.

Assim, pode-se dizer, sem muito risco de erro, que é bem possível que Arnaldo, mesmo que não passasse pelos problemas pessoais todos que teve no período, em termos de sucesso comercial, fosse também cair na entressafra que se abateu sobre o rock brasileiro. De fato, daquela conjuntura poucos artistas e bandas se safaram, sendo a mais notória a própria Rita Lee, que ao ir para o caminho do glitter (o que implicava em boas doses de folk e hard rock), conseguiu ficar relativamente bem nas paradas de sucesso.

Afora ela, os sucessos comerciais do rock brasileiro foram muito episódicos. Os roqueiros da Jovem Guarda, por sua vez, nos anos 70, de uma forma geral, deixaram de fazer rock strictu sensu: ou foram para o lado das canções românticas algo melancólicas, seguindo a vertente de Roberto Carlos; ou foram para a MPB; ou para a música sertaneja; e alguns, ainda, fundaram bandas de rock nos anos 70 que recaíram, justamente, na mencionada vertente do progressivo.

Neste contexto, vale lembrar que as grandes bandas dos anos 70 (Casa das Máquinas, O Terço, Tutti Frutti, Som Nosso de Cada Dia), no final da década estavam comercialmente marginalizadas. De fato, foi somente no final da década e no início dos anos 80 que muitos artistas surgidos nos anos 70, exorcizados de maiores psicodelismos e progressivismos, voltaram a realmente figurar na programação das rádios e na parada de sucessos: foi o caso dos Novos Baianos Pepeu Gomes, Moraes Moreira, Baby Consuelo e A Cor do Som; de Guilherme Arantes, que nos 70 integrou o Moto Perpétuo; do 14 Bis, com ex-componentes do Terço e do Bendegó; os ex-Vímana Lobão, Lulu Santos e Ritchie; Dalto; do Roupa Nova; e, claro, da própria Rita Lee, que no final dos 70 repaginou-se para um som mais light, mais pop e influenciado pela onda disco. Ou seja, dentro do contexto do rock brasileiro dos anos 70, o sumiço de Arnaldo do mainstream da música brasileira não seria uma anomalia, sob o aspecto comercial.

Vale dizer, a história de Arnaldo talvez não chamasse tanto a atenção se a tragédia pessoal não houvesse invadido a sua existência. Não fosse isto, talvez ele fosse apenas mais um artista genial, que, após um período de evidência e ápice, teria sido ejetado da indústria do disco, então estruturada na necessidade de um sucesso quase imediato (de preferência, no primeiro disco solo, no máximo no segundo, e, aos 45 do segundo tempo, em um último suspiro, no terceiro disco, chance dada a poucos).

Assim, parece-me que é a mistura da genialidade de sua obra, a profundidade de como a sua vida pessoal misturou-se à sua obra, e o roteiro da euforia seguida de depressão, seguida - após longo período sabático, é verdade, por sua vez, da redenção contemplativa e da aceitação dos limites humanos -, que trouxe, em alguma medida, embora bem restrita, a sua alegria juvenil de antes do período de depressão e de envolvimento com drogas, que faz da história de Arnaldo a formação de um verdadeiro mito grego modernizado no tempo do Brasil psicodélico.

Enfim, a velha combinação da tragédia e da redenção, ao mesmo tempo tão mítica e ancestral, e, ao tão moderna, é que nos suscita esta emoção tão profunda. E o grande artista que Arnaldo é, como antena da raça, ao mesmo tempo super-homem e tão humano, demasiado humano, e por isso, forte e frágil, indiscutivelmente nos seduz tremendamente.

Parafraseando a música de O Terço, a história de Arnaldo é o verdadeiro "Vôo da Fênix".

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