Blind Faith: a fé cega de uma mega banda


Por Ugo Medeiros
Colecionador, Geógrafo e Jornalista

Há quase quarenta anos surgia no mundo do rock o primeiro supergrupo, o Blind Faith. Formado por integrantes do Cream - Eric Clapton e Ginger Baker (guitarra e bateria, respectivamente) -, do Traffic - Steve Winwood (teclado, piano, órgão e vocais) - e do Family -Rick Grech (baixo e violino) -, a banda teve curta duração, infelizmente. Apesar de pouco tempo, de junho a agosto de 1969, e de ter gravado apenas um disco, Blind Faith (Polydor), o quarteto fez história e deixou um importante legado.

Tudo começou em meados de 1967, quando Clapton era, junto com Jimi Hendrix, o guitarrista mais venerado, um verdadeiro guitar hero. Após passar pelos Yardbirds e Bluesbreakers, ele conquistara roqueiros mundo afora com o Cream. O power trio, que ainda contava com o já citado Ginger Baker e Jack Bruce (baixo), explodiu nos EUA e logo depois na Inglaterra.


Rapidamente, as apresentações, que eram longas improvisações em cima da base de alguma música, despertaram interesse em plena explosão psicodélica (EUA) e Swinging London (Inglaterra). Eram tempos de efervecência cultural e, ao que tudo indicava, o Cream era um dos líderes dessa revolução.

Enquanto Baker esbanjava a técnica e precisão dos seus tempos de jazz e Clapton dava coloridos ao som, Bruce era o virtuoso que fazia a máquina andar. Além de compor boa parte das canções, o baixista ainda liderava os vocais com excelência. O segundo disco da banda, Disraeli Gears (Polydor), era um sucesso comercial e "Sunshine of Your Love" um grande hit na terra do Tio Sam.

Porém, os lucros não garantiam o bom relacionamento entre os três. Jack e Ginger sentiam um ódio mútuo e Eric não estava satisfeito com o rumo que a banda tomava. As longas turnês e o lado "selvagem" do rock o desgastavam. Ele queria participar de um projeto menor, em casas menores, já que estava cansado do show business. Além disso, sentia que o grupo perdia a unidade em meio às longas improvisações e ao virtuosismo.

As desavenças entre eles levou ao inevitável: no dia 26 de novembro de 1968 o Cream fazia o show de despedida no Albert Hall, em Londres. Cada um foi para o seu lado.

Durante os meses seguintes, Clapton ficou parado e logo ficaria perdido, completamente desorientado. Cada vez mais amigo de George Harrison, teria o coração dilacerado pelo amor platônico à Pattie Boyd, esposa do Beatle. Sem perspectivas profissionais e em depressão, entregou-se à bebida. A salvação atenderia pelo nome de Steve Winwood.

Após boa passagem pelo The Spencer Davis Group e genial participação no Traffic, o tecladista estava sem banda. As sucessivas brigas com Dave Mason culminaram no fim temporário do Traffic em janeiro de 1969. A admiração de Clapton por Winwood era antiga. Nos primórdios do Cream ele queria um som mais consistente e, para isso, acreditava que o tecladista seria perfeito. A sugestão fora negada, mas o desejo de trabalhar juntos não cessou.

Assim, sem compromisso, Eric e Steve passavam a maior parte do tempo livre tocando, fumando e tomando ácido no mesmo chalé em que o Traffic ficou hospedado para se inspirar e criar o primeiro disco da banda, Mr Fantasy (Island). As jams eram tranquilas até que, em uma madrugada, Ginger Baker chegou atraído pelos boatos de que lá havia boa música.


O trio passou a ensaiar e, em pouco tempo, uma nova banda concretizava-se. Apesar de Clapton ficar assustado com a provável volta à badalação dos tempos de Cream, sua vontade de gravar com o novo parceiro o fazia aguentar todo aquele mise en scène. Ainda faltava um baixista. Rick Grech, um camarada de Clapton, foi o escolhido para a função.

Uma vez formado o Blind Faith, o repertório era criado e o disco tomava forma. Jimmy Miller foi chamado para a produção do álbum, já que era conhecido pelo bom trabalho no Traffic. Entre maio e junho a obra-prima foi gravada.


Logo na abertura do riff redondo de Clapton em "Had to Cry Today", além do vocal característico de Winwood. "Can´t Find My Way Home" carrega uma leveza e, ao mesmo tempo, uma riqueza sonora. "Well All Right", cover de Buddy Holly, traz um Ginger Baker inspirado e um belo solo de teclado.

O álbum também revela um Eric Clapton compositor, caso de "Presence of the Lord", escrita na época em que comprou sua primeira casa. Durante a gravação da canção houve atritos entre ele e Steve: o guitarrista não queria cantar e ainda interferia na forma em que o tecladista gravava o vocal. Problemas dessa natureza seriam comuns mais tarde.

"Sea of Joy" conta com um show a parte da voz marcante de Winwood. Para encerrar, "Do What You Like", composição de Baker. Uma verdadeira viagem psicodélica de 15 minutos, onde todos têm um momento na música, inclusive Rick Grech que passava, até então, despercebido.

Sem mais palavras, um tesouro do rock. Seu impacto foi enorme e até a capa trouxe polêmica. O artista Bob Seidemann colocou uma menina nua segurando um avião, fato que causou rebuliço na sociedade puritana norte-americana. Após uma ameaça de boicote ao disco por parte dos comerciantes, a gravadora mudou a capa: uma triste e fria foto da banda. Enfim, viva a liberdade de expressão!


A estreia do supergrupo foi em um show gratuito para um público de mais de 100 mil pessoas, no dia 7 de junho, no Hyde Park, em Londres. A expectativa era grande, tanto por parte dos fãs quanto pela imprensa, porém a estrutura disponível era insuficiente. O registro marca um Clapton distante, sem empolgação, e uma banda sem identidade. Aos interessados, este show foi lançado em DVD pela Sanctuary Visual Entertainment.

O grupo tentava achar um ponto de convergência entre eles. A sensação era que havia quatro músicos de renome que há pouco tinham se encontrado no palco. Apesar de uma boa turnê pela Escandinávia, Clapton estava cada vez mais à margem daquilo tudo. Steve cobrava uma postura mais preponderante de Eric, que não queira de forma alguma liderar a banda.

Ainda que os shows no Madison Square Garden, em Nova York, estivessem lotados, e do disco figurar entre os mais vendidos, a digressão pelos EUA foi o começo do fim. A banda contratada para abrir os shows, Delaney & Bonnie, primeiro grupo branco contratado pela Stax (especializada em R&B e soul), logo roubaria as atenções de Clapton. O guitarrista venerava o som do casal, a ponto de sentir-se constrangido de subir ao palco depois deles. Aos poucos, o inglês passaria mais tempo com a banda de apoio do que com a sua própria. O fim do Blind Faith aproximava-se.

No dia 24 de agosto de agosto de 1969, em Honolulu (EUA), o quarteto realizava sua última apresentação. Neste dia os amantes do rock davam um adeus prematuro. O Blind Faith foi um cometa que passou pela Terra em um piscar de olhos, mas que ajudou a definir a música dos anos 1960.

Comentários

  1. Belo texto sobre um grande momento para o Rock And Roll e para a música sem duvida. Tinha publicado um texto comentando também a obra dessa banda num fórum sobre a mesma. Ei-lo aqui então:Parece algo muito comum, a mente de muitos gênios que criam obras fabulosas em todas as áreas equacionam o processo criativo em meio a muitos conflitos, apesar do exito do que criaram. Para quem leu o livro de Clapton sabe do que estou falando. O gênio da guitarra teve a glória nos tempos do Cream de fato, mas o cansaço do show business e sua famosa desilusão amorosa quase o derrubaram(Graças a Deus que não). Mas num período nada fácil para o músico, aquele garoto que na época com 16 anos de idade que havia deixado Clapton de queixo caido nos tempos do Spancer Davies Band, veio cruzar o caminho dele novamente. Mesmo Clapton com o emocional balançado nesse período, já não querendo o standart de guitar hero, de Deus da guitarra, de líder do Cream, mesmo não querendo liderar o Blind Faith, contribuiu com igual peso de ouro como os outros integrantes(todos geniais também) para a criação de uma das mais criativas obras primas da música popular da década de sessenta: Blind Faith. A esse imenso trabalho criativo de composição soma-se a melhor produção em estúdio já gravada na década em minha modesta opinião! Não conheci um disco que soe tão redondo, sem nenhum detalhe mal equalizado ou apagado, fora a riqueza instrumental dos arranjos, com direito até a violino de Rick Grench, fora o arsenal de timbres de teclado de Steve Winwood. O maravilhoso som pesado da bateria, nada mais justo e honroso para um gigante do instrumento dos mais criativos se não for o maior. Mesmo o experimentalismo de um Wheels of fire ou um Electric ladyland não chamam mais atenção do que a ponposidade na medida dessa produção. Obra prima e obrigatória ainda mais agora após a reunião de Clapton e Winwood em 2008, rendendo outro DVD que tenho certeza que será sucesso certo de vendas. Se ainda há quem diga que Clapton não estava rendendo o seu máximo como músico nesse trabalho(o que discordo veementemente), não tem como manter essa opinião nas seções de gravação de um Live at fillmore do Derek And The Dominos com direito a uma verção avassaladora de presence of the lord cantada com mais feeling e empolgação desta vez por Clapton(completamente seguro pra cantar desta vez) e num solo mais magistral ainda, com direito até a uma palhetada com tanta força de tanto feeling guardado parecendo pegar notas extras acidentais, não tirando de forma alguma o brilho do solo!(já ouviram esse detalhe?) Mas deixo pra escrever sobre Derek And The Dominos mais tarde. Esta aí a dica... Abraço, Luciano

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