Discoteca Básica Bizz#210: No New York (1978)


Abra qualquer enciclopédia no verbete "punk" e a definição será quase sempre a mesma: "
Punk foi um movimento radical, nascido em meados dos anos 1970, que se insurgiu contra a caretice do rock corporativo e abriu novos caminhos sonoros para toda uma geração". O que poucos lembram é que, já em 1976, havia gente questionando a caretice do próprio punk. Para essa turma, as jaquetas de couro dos Ramones representavam uma melancólica viagem de volta aos anos 50, e os riffs dos Sex Pistols eram apenas Chuck Berry em 45 RPM.

O epicentro dessa turma de inconformados era o lower east side (sudeste) de Manhattan, em Nova York, um bairro abjeto, tomado por squats e prédios abandonados, para onde migraram artistas plásticos, músicos, escritores, atores, traficantes e perdidos em geral.

Quem também estava em Nova York na época era Brian Eno, ex-Roxy Music. Uma das mentes mais brilhantes e visionárias da música pop, Eno acabara de produzir um LP do Talking Heads, mas ficou tão impressionado com a riqueza da cena musical nova-iorquina que acabou estendendo sua visita por quase um ano. Os clubes da cidade fervilhavam de jazz, world music, calypso, discoteca, funk e música de vanguarda, e tudo isso se refletia na cena alternativa do lower east side, formada na maioria por jovens com pouco ou nenhum treinamento musical, muitos vindos de escolas de arte, cinema ou teatro.

Inspirado pelo que estava vendo e ouvindo, Eno decidiu produzir um LP com as melhores bandas locais. O resultado foi No New York, lançado em 1978. O disco reúne quatro bandas - James Chance and the Contortions, Teenage Jesus and the Jerks, Mars e DNA -, que contribuíram com quatro faixas cada uma.


Das quatro, a mais "comercial" - se é que dá para usar esse termo - era a James Chance and the Contortions. Chance era um bom saxofonista, que havia estudado em conservatórios e idolatrava Charlie Parker, Ornette Coleman, James Brown e Sun Ra. Ele tinha carisma de sobra e fama de maluco. No palco, enquanto soprava seu sax em riffs punks, simulava ataques esquizofrênicos e, não raro, atacava o próprio público.

Outra figura essencial da cena no wave era Lydia Lunch. Cantora, poetisa, artista plástica, escritora e atriz, Lydia comandava a Teenage Jesus and the Jerks. Imagine PJ Harvey cantando hardcore, e você começa a ter uma ideia do som da banda. As letras de Lydia exploravam clichês de niilismo e desesperança: "As folhas estão sempre mortas / as portas estão sempre fechadas / o lixo grita a meus pés / eu quero estar sozinha!", ela urra em "Burning Rubber", uma das melhores faixas de No New York.

Chegamos então ao Mars, o quarteto liderado pelo guitarrista e vocalista Sumner Crane. Ouvir o Mars não é tarefa fácil, embora as recompensas sejam muitas. A banda faz um som lento, quase se arrastando. Lembra uma espécie de tortura proto-industrial, com guitarras simulando efeitos eletrônicos e barulhos inclassificáveis. O Mars serviu de inspiração a grupos como Swans e o Ministry (Paul Barker era grande fã).

No New York termina com o DNA, um trio liderado por Arto Lindsay, um americano de coração brasileiro, fã de tropicália, que passou anos no Brasil com os pais, missionários. A música do DNA buscava um minimalismo extremo, com guitarras esparsas e vocais às vezes gritados, outras vezes sussurrados. O cultuado crítico Lester Bangs certa vez descreveu o som da banda como "um barulho pavoroso".

Mais que um grande disco, No New York representava um estado de espírito. Nenhuma das bandas veio a ter uma carreira de sucesso, mas seu inconformismo e sua busca pelo novo inspiraram muita gente. Ecos da no wave podem ser ouvidos em Sonic Youth, Flaming Lips, Swans, e até mesmo em grupos mais novos como LCD Soundsystem, Rapture e TV on the Radio.

Texto escrito por André Barcinski e publicado na Bizz#210, de fevereiro de 2007

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