Discoteca Básica Bizz #213: Jeff Buckley - Grace (1994)


O padastro foi bacana: nos dois anos que viveu com a mãe dele, deu carinho e discos do Led Zeppelin que mudaram sua vida. O olhar triste nas fotos pode não ter nada a ver com isso, mas o fato é que Jeff Buckley foi um menino sem pai. Ou melhor, que teve pai por apenas cinco dias.

Ao decolar para a fama, Tim Buckley o deixou para trás, na barriga da mãe. Quando o menino estava com 8 anos, a mãe, separada, o procurou. Foi então que pai e filho passaram juntos um feriadão de Páscoa. Um par de meses mais tarde, Tim cheirou mais heroína do que seu organismo podia processar e morreu, aos 28 anos. Deixou nove álbuns, a obra cantada com entusiasmo pela crítica, a voz de alcance admirável e surpreendentes fraseados jazzísticos, as canções lapidares entre o folk, o soul e a psicodelia, a poesia culta.

Jeff morreu aos 30, num acidente triste, mas com tintas poéticas: afogou-se à noite no rio Wolf, em Memphis, pouco depois de cantarolar "Whole Lotta Love". Foi em 29 de maio de 1997. Até então, havia lançado apenas um álbum: Grace. As letras não chegam perto das que o pai escrevia, mas gritam aos ouvidos três oitavas e meia de voz expostas sem exibicionismo e canções de estrutura intrincada, com afinações de inusitado bom gosto à guitarra. À volta do efebo, uma banda impecável: Matt Johnson na bateria e Mick Grondahl no baixo. Arrebatamento total, emoção desmedida nas interpretações.

Sobre o que canta o anjo caído? Estado de graça, claro, mais amor correspondido e adeus, falta de medo da morte, tudo num tom que o crítico inglês Barney Hoskyns definiu como "êxtase insustentável", "metafísica com orgasmo". Afinal, Buckley soa como Jimmy Page e Robert Plant no mesmo corpo. Ah, sim, e três covers belíssimas que transcendem o rock, o pop e tudo mais: "Lilac Wine", dolorida canção famosa na voz de Nina Simone; a peça religiosa "Corpus Christi Carol", feita sob medida para corais impúberes; e a profana "Hallelujah", de Leonard Cohen, bem copiada da versão seminua que John Cale fez no disco-tributo I'm Your Fan, de 1991.


A despeito disso tudo,
Grace não sacudiu o mundo quando foi lançado, em agosto de 1994. Ainda vigorava o luto pós-suicídio de Kurt Cobain, e no Reino Unido o britpop era apenas mais um entre tantos trambiques rock and roll. Até a morte de Jeff Buckley, o disco vendera menos de 300 mil cópias nos EUA. A revista Rolling Stone, em micareta histórica, tinha dado cotação três estrelas (entre cinco) e diagnosticado imaturidade em Jeff.

Do outro lado do Atlântico, ouvidos melhores entenderam. Na França, "coup de foudre" (amor à primeira vista) total: a revista
Les Inrockuptibles cravou o rapaz como futuro do rock e foi entendida por seus leitores, que o elegeram artista do ano e Grace o melhor disco de 1994. Paul McCartney, Lou Reed, Tom Verlaine, David Bowie e Jimmy Page babaram em público. Ao comentar o fato com o amigo e jornalista Bill Flanagan, Jeff fez piada: "Estou com um bom fã-clube de cinquentões".

Os colegas do tempo de escola lembram dele como um baita palhaço. Sempre vai haver quem martele a tecla do trágico, mas o fim de sua vida é mais bem explicado por esse aspecto de temperamento. O maior conflito artístico de Jeff Buckley esteve ligado à administração da herança paterna, explícita não só na voz e no rostinho bonito, mas também numa série de influências e escolhas artísticas. O segundo grande conflito foi o mesmo de Cobain. Com potencial para se transformar em megastar, Jeff optou por shows pequenos e volume baixo, fez questão de manter improvisos erráticos e arestas por aparar em suas canções. Pode parecer tolo, mas esse ser ou não ser mainstream era questão central nos anos 1990, e provavelmente continua sendo para quem, palhaçadas da vida real à parte, levava a obra loucamente a sério e com ambição estética do tamanho de sua paixão.

(texto escrito por Pedro Só e publicado na Bizz#213, de maio de 2007)

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