O fim dos anos sessenta


Por Marina de Campos & Rodrigo de Andrade
Os Armênios

No dia 27 de dezembro de 1969, a edição número #49 da
Rolling Stone Magazine trazia Mick Jagger estampado na capa junto com os dizeres "The Stones’ Grand Finale". Dentro, um texto de Greil Marcus — respeitado jornalista, famoso por redefinir os parâmetros da crítica musical e por abordar o rock enquanto fenômeno social, introduzindo-o ao meio acadêmico — promovia um balanço da década que se encerrava ao mesmo tempo em que resenhava, com grande categoria e conhecimento de causa, o álbum Let it Bleed.

Esse mesmo texto foi publicado no Brasil em 2006, abrindo
A Última Transmissão, uma coletânea de artigos escritos por Greil Marcus.

É desse incrível relato que extraímos o excerto abaixo, o fragmento de um documento jornalístico da época, sobre esse mítico trabalho dos Rolling Stones.

O fim dos anos 60
(Greil Marcus, Rolling Stone, 27 de dezembro de 1969)

Let it Bleed é o último álbum dos Rolling Stones que nós veremos antes que os anos 60, prestes a terminar, se transformem em 70; ele tem a arte de capa mais vagabunda desde Flowers e uma lista de créditos que parece ter sido editorada por uma gráfica do governo. Os tons das músicas são ao mesmo tempo obscuros e perfeitamente claros; as letras são ininteligíveis e muitas vezes introspectivas. Os Stones como banda e Mick Jagger, Keith Richards, Mary Clayton, Nanette Newman, Doris Troy, Madelaine Bell e o London Bach Choir como cantores às vezes carregam as canções para muito além de suas letras. Há o vislumbre de uma história - e pouca coisa mais.

Com "Live With Me", "Midnight Rambler" e "Let it Bleed", os Stones se pavoneiam vestindo suas máscaras, assumindo papéis já conhecidos. Em "Monkey Man" eles se submetem grandiosamente à imagem que têm carregado por quase toda a década:

All my friends are junkies!
(That’s not really true…).

[Todos meus amigos são viciados!
(Isso não é realmente uma verdade...)]

Escondidas no meio das faixas mais cintilantes, encontram-se músicas à espera de um ouvinte que as alcance: "You Got the Silver", de Keith Richards, é um revival de "Love in Vain", de Robert Johnson. Mas são a primeira e a última faixas de
Let it Bleed que contam qual é a história que temos aí.

"Gimme Shelter" e "You Can’t Always Get What You Want" desmentem o brutalismo de "Midnight Rambler" e as riquezas fáceis de "Live With Me". Os anos batem à porta: foi um longo caminho de "Get Off My Cloud" até "Gimme Shelter", de "(I Can’t Get No) Satisfaction" até "You Can’t Always Get What You Want". Um novo mapa está sendo traçado; a velha postura de arrogância e desdém não foi apagada, mas está borrada. Antigamente os Stones eram conhecidos como o grupo que iria sempre dar uma boa mijada, como nos velhos tempos, num posto de gasolina dos velhos tempos. Agora, porém, Jagger canta assim:

I went to the demonstration
to get my fair share of abuse…

[Fui até a demonstração
para receber minha parte de abuso]

"Gimme Shelter" é uma canção sobre o medo: provavelmente serve melhor que qualquer coisa como passagem direta até a próxima década. A banda evolui sobre a melhor melodia que eles jamais encontraram, adicionando instrumentos e sons aos poucos, até as explosões de baixo e bateria escorregarem sobre a primeira crista da faixa e encontrarem os uivos de Jagger e Mary Clayton, uma cantora negra de estúdio de Los Angeles. É um encontro cara a cara com todo o terror que a mente consegue juntar, movendo-se rapidamente sem jamais brecar, para que homens e mulheres tenham que vencer o terror em seu próprio passo. Quando Clayton canta sozinha, tão alto e com tanta força que você acha que seus pulmões estão estourando, Richards a enquadra com riffs medidos, pressionados, que passam queimando pelo emocionalismo dela e arremessam a música de volta ao julgamento distanciado de Jagger:

It’s just a shot away, it’s just a shot away (…)
It’s just a kiss away, it’s just a kiss away.

[Está apenas a um tiro de distância, está apenas a um tiro de distância (...)
Está apenas a um beijo de distância, está apenas a um beijo de distância]

Você sabe que um beijo só não é suficiente.

Você se lembra das garotas dos Stones — digamos, aquela operadora de máquinas simples, dengosa (ou “gulosa”) em "The Spider and the Fly", ou, no mesmo sentido, a garota lá em casa que disse ao cantor "
Quando você acabar seu show, vá para a cama". Elas ainda estão por aí em Let it Bleed, vestindo suas máscaras - todas as cozinheiras e domésticas, andar de cima e no de baixo, todas as strippers do Crazy Horse e socialites de Londres em "Live With Me", ou as vítimas desfiguradas do "Midnight Rambler".

Mas as verdadeiras mulheres nessa música parecem ser pessoas que conseguem gritar como Mary Clayton - mais duronas que todas as garotas pulando para fora das velhas orgias dos Stones, sabendo algo que os malandrões não sabem. É isso que torna "Gimme Shelter" tão chocante - ela bate dos dois lados, sem qualquer sorriso, sem qualquer enrolação, nada a segura. É uma busca pelo futuro contido no presente; os Stones nunca fizeram nada melhor.

(…)

Essa época e o colapso de sua brilhante e frágil liberação são o que os Rolling Stones deixam para trás com a última canção de
Let it Bleed. Sonhos de ter tudo, agora, se foram; o disco acaba com uma música sobre compromisso com o que você quer, com uma celebração do aprendizado de levar o que você pode levar, talvez mesmo o que você merece, porque o tempo passou e as regras mudaram. Há alguns anos, a nova classe operária de Londres e a aristocracia classe-média do pop foram à luta por exatamente o que eles queriam, e eles conseguiram - mas ninguém pode viver de uma memória, uma memória daquela sensação de domínio que nos tomou em, quando foi? 65? 66?

Se "Gimme Shelter" é uma canção sobre o terror, "You Can’t Always Get What You Want" busca a satisfação na resignação. Esse tipo de objetivo não é o que fez os ouvintes de uma pesquisa, realizada alguns anos atrás em todo o país, elegerem "Satisfaction", por unanimidade, a maior canção de todos os tempos — mas as estações de rádio não fazem mais esse tipo de pesquisa. Hoje em dia o conforto da unanimidade não existe mais. É você quem tem que ir atrás dessa canção.

"You Can’t Always Get What You Want" trata-se de uma das produções mais extremas jamais montadas por uma banda de rock’n'roll, e cada uma de suas notas funciona: a altiva e virginal introdução de Bach Choir, o movimento lento da trompa e do órgão de Al Kooper, uma lembrança de sua levada em "Like a Rolling Stone", de Bob Dylan (há quatro anos, mas que parecem séculos); o dedilhado de Keith Richards; e então o primeiro verso e o refrão de Jagger, cantando quase sem acompanhamento. Daí em diante a música se dissolve e se reconstrói em espasmos, começa e recomeça em um espírito de tragédia e fadiga e termina com otimismo e exuberância totais. É um filme, tanto quanto
Blow Up — começando e terminando com uma festa numa mansão em Chelsea, o cantor encontrando uma mulher detonada de tão chapada, que ele aparentemente conhece de outros tempos, quando tudo em volta era muito diferente.

A música se move daí para a batalha nas ruas e a revolta política como se fosse simplesmente um outro show, e daí para a cena mais estranha de todas. O cantor está numa farmácia em Chelsea, esperando na fila por seu remédio. Ele puxa conversa com um homem muito mais velho - parece ser alguém que já viu nas redondezas, mas com quem jamais falou. O velho está nervoso, detonado. Ele poderia ter 60 anos de idade, ou 35. O cantor tenta ser simpático, educado; talvez ele se veja refletido no rosto do velho, talvez não. Mas o velho quer alguma coisa do cantor. Ele sussurra. Não dá para saber se ele diz "bed" ou "death", mas de repente há um sorriso na voz de Jagger, como se ele tivesse esperando durante anos por esse momento. O cantor se vira para o velho com uma sacada que pede mais um refrão: "I said, you can’t always get what you want". Daí em diante, claro, é de volta para a festa.

Em
Let it Bleed você pode encontrar todos os papéis que os Rolling Stones já encarnaram - garanhões, fanfarrões, criminosos rebeldes, donos de harém, cavaleiros da vida acelerada -, uma década de poses. Mas no começo e no fim existe uma abertura para os anos 70 – mais difícil de engolir, um vinho bem mais forte. "You Can’t Always Get What You Want" ecoa em "Gimme Shelter"; essas canções não pretendem mais dominar as pessoas, mas buscam um domínio incerto sobre as situações bem mais desesperadas que os anos por vir estão prestes a impor.

Leia também: Classic Tracks: Rolling Stones - Gimme Shelter (1969)

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