Prateleira do Cadão: a guitarra afiada de Phil Upchurch


Por Ricardo Seelig
Colecionador
Collector´s Room

Você nasce, cresce, aprende, faz descobertas, vive aventuras, encontra o seu lugar no mundo, conhece o seu amor, aquece a sua alma. Todas as emoções e momentos marcantes de nossas vidas, como essas citados acima, são marcados por trilhas sonoras. A gente lembra das músicas que nos trazem de volta doces lembranças que teimam em continuar em nossas memórias.

Mesmo se você não for um consumidor faminto de música, isso acontece com você. Imagine então se você for como nós, colecionadores sedentos, ouvintes compulsivos, pessoas com fome de conhecimento em relação à música, em suas mais variadas formas e gêneros. Para pessoas como nós, cada momento, cada minuto, casa segundo de nossas vidas é repleto de sons, de discos, de capas, de artistas que nos acompanham anos a fio como amigos de infância que nunca nos deixam na mão.

Tudo isso para dizer que, como a imensa maioria das pessoas que acessa a
Collector´s Room, eu também cresci ouvindo exclusivamente rock e heavy metal. Guitarras distorcidas, riffs cortantes, melodias empolgantes, tudo em alto e bom som. Por isso, para mim a guitarra é mais do que apenas um instrumento musical. Ela simboliza o eixo central da minha experiência sonora, da minha aventura musical. É ela que me motivou (e ainda motiva, diga-se de passagem) a comprar discos, a conhecer grupos, a escrever sobre essa paixão que nos une e torna nossas vidas muito mais interessantes.

Por isso, quando ouvi pela primeira vez o som do norte-americano Phil Upchurch levei uma espécie de choque. A guitarra estava ali, mas o foco era totalmente diferente daquele que eu estava acostumado. No lugar da distorção, um timbre puro, limpo e cortante. Ao invés de riffs, acordes inusitados e, mesmo assim, cativantes. Ricas ideias harmônicas cruzando-se infinitamente, construindo uma sonoridade rica, bela e espiritual.


Nascido em Chicago em 19 de julho de 1941, Phil Upchurch iniciou a sua carreira nos anos cinquenta tocando ao lado de grupos como The Kool Gents, The Dells e The Spaniels. Seu talento e estilo únicos chamaram a atenção, e fizeram com que Phil gravasse álbuns ao lado de feras como Curtis Mayfield, Otis Rush, Jimmy Reed, Dizzy Gillespie, B.B. King e Cannonball Adderley, entre outros.

Dono de uma técnica apurada e um senso melódico ímpar, no início da década de setenta Upchurch gravou discos sensacionais e que influenciaram uma pá de gente, fundindo o jazz ao blues, ao soul e, principalmente, ao funk. Sua guitarra repleta de malícia embalou inúmeros corpos entrelaçados noites a fio. São desse período dois de seus trabalhos mais importantes: o seminal
Darkness, Darkness e o não menos brilhante Lovin´ Feeling.


Darkness, Darkness
é, originalmente, um álbum duplo, e foi lançado em 1972 pela gravadora Blue Thumb. São dez faixas espalhadas em quatro lados, sendo que duas são versões de sucessos de James Taylor ("Fire and Rain" e "You´ve Got a Friend").

O play abre com a faixa título, uma experiência transcedental com quase dez minutos de duração, dona de um balanço irresistível sobre o qual Phil sola de maneira sublime. Uma canção inesquecível, das melhores que eu já ouvi em toda a minha vida!

O lirismo e a sensibilidade ficam a flor da pele na belíssima versão de "Fire and Rain", de James Taylor. O arranjo é tão perfeito, minimalista e sem nenhum instrumento sobrando ou nota fora do lugar, que faz com que pensemos que a canção já nasceu assim, sem letra e sem vocais.

Upchurch deixa clara a importância do blues em sua música em "What We Call the Blues", onde percebe-se a influência de B.B. King na forma de Phil tocar, com notas esparsas espalhadas em harmonias pra lá de arrepiantes. Uma das principais marcas registradas de Phil Upchurch, o uso do pedal wah-wah, dá as caras, e, junto com o arranjo de cordas que emoldura a canção, faz de "What We Call the Blues" uma das melhores faixas de
Darkness, Darkness.

O disco segue com o groove de "Cold Sweat"; o soul blues de "Please Send Me Someone to Love"; a fantástica "Inner City Blues (Make Me Wanna Holler)", com uma performance arrasadora de Phil; mais uma releitura para uma composição de James Taylor em "You´ve Got a Friend"; "Love and Peace" e sua lição quase didática de como usar com classe o wah-wah; "Sweet Chariot" e "Sausalito Blues". Um álbum espetacular, que mostra o ápice criativo e técnico de um músico muito acima da média.


Lovin´ Feeling, lançado em 1973 também pela Blue Thumb, mesmo não sendo uma obra-prima como Darkness, Darkness é também um senhor disco. A bolacha abre com "Keep on Trippin´", mostrando um Phil Upchurch mais contido, assim como "Another Funky Time".

Bem mais contemplativo que o disco anterior, o álbum segue com "Being at War with Each Other" e "Sitar Soul", essa com interessantes escalas indianas. A clássica "You´ve Lost that Lovin´ Feeling", composta por Barry Mann, Phil Spector e Cynthia Weil e regravada por centenas de artistas, surge sensual ao extremo, quase um convite para o sexo.

"I Still Love You" mantém a linha romântica do disco, enquanto "Washing Machine" traz o groove embalado com doses generosas de wah-wah para o primeiro plano, em um dos melhores momentos do álbum. O LP fecha com "You´ve Been Around Too Long", relaxando o ouvinte e preparando o espírito para um novo dia.

Phil Upchurch ainda está na ativa, lançando discos de tempos em tempos (o último,
Tell the Truth, saiu em 2001), mas o melhor momento de sua longa carreira está, indubitavelmente, em Darkness, Darkness. Se você quer conhecer até onde uma guitarra pode te levar, sem medo do desconhecido e sem limites, ouça o álbum e descubra que, muito mais do que apenas ligada ao rock, as seis cordas desse instrumento tão mítico podem estar ligadas ao seu coração.

Comentários

  1. Putz, que sonzeira! Indicação maravilhosa e um belíssimo texto. Nota 10.

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  2. Lucas, valeu pelo comentário. Ouço direto, e precisava escrever sobre isso.

    Abraço.

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