Discos abandonados em troca de uma vida medíocre


Por Regis Tadeu
Colunista do Yahoo! Brasil
Yahoo! Brasil

Fazendo uma análise bem rasteira, sou aquilo que as pessoas denominam "rato de sebo". Um dos grandes prazeres de minha miserável existência é percorrer, aos sábados, inúmeras lojas de discos à procura de vinis raros com preços módicos. E a temporada tem sido extremamente feliz, pois tenho encontrado verdadeiras raridades com custo bastante próximo ao insignificante, já que, ao contrário das notícias mais recentes, a maioria das pessoas não quer mais saber de ouvir LPs. Basta percorrer as boas lojas do ramo para perceber.

De uns tempos para cá, venho notando que algumas de minhas melhores aquisições têm algo em comum: a justificativa dos vendedores dos diferentes sebos para explicar os motivos de tais preciosidades estarem à venda para o papai aqui. "
Meu, o cara deixou esses discos aí porque a mulher dele não queria 'tranqueira' no apartamento deles". Quando percebi isso, tive uma sensação dúbia, que misturava alegria e tristeza - algo como ir ao estádio e ver o meu glorioso tricolor tri-campeão mundial perder um jogo, só que acompanhado da maravilhosa Peta Wilson (lembra dela no seriado La Femme Nikita?). Alguma coisa me deixou muito incomodado.

Foi então que, ao chegar em casa após um cansativo dia de trabalho, depois de tomar um banho, jantar e ouvir o que havia comprado na semana anterior, minha ficha caiu. Aquela sensação incômoda era uma espécie de solidariedade para com aqueles que se desfizeram de preciosidades que, talvez, tivessem consumido uma vida inteira para adquirir. De uma hora para outra, comecei a imaginar os semblantes tristes e conformados dos antigos proprietários daqueles discos, com suas entranhas sendo corroídas pelo arrependimento.

Vi os sorrisos amarelos de satisfação nas bocas de esposas mal-amadas, orgulhosas por finalmente conseguirem espaço para aquele sofá-cama amarelo e marrom que vai servir para acomodar suas mães quando estas resolverem fazer uma visita surpresa, ou para uma linda cristaleira dos anos 60, repleta de xícaras e copos que ninguém jamais irá usar. Um arrepio percorreu a minha espinha ao pensar que aquele cenário de hecatombe nuclear poderia ter acontecido ... comigo!

Odeio sentir isso, mas tive pena daqueles coitados, porque uma enorme fatia de suas infâncias havia sido substituída pela convivência medíocre e sem poesia dentro de casamentos insípidos. Sofri porque aqueles caras, provavelmente, embarcaram dentro de precárias e poéticas promessas de felicidade, mas que com o passar de poucos anos se viram em um beco sem saída, esfomeados em busca do pão da liberdade, mas atemorizados por mulheres que abominam qualquer coisa fora dos padrões ditos "normais", por mães de família que nem se preocupam mais com suas varizes semelhantes a um mapa hidrográfico da Amazônia, com suas celulites monumentais.

Lembrei de mim mesmo, quando eu era apenas um garoto cabeludo que costumava reunir os amigos em casa para ouvirmos inúmeros discos a tarde inteira, devorando cada sulco desvirginado por agulhas de vitrolas ninfomaníacas. Depois, fazíamos uma espécie de "rodízio", variando de casa e de discos, principalmente os importados, todos impregnados com um cheiro estranho e inebriante que vinha do interior de suas capas. Por breves momentos, aqueles locais eram o centro de nossos mundos. Muitas vezes, em nossa inocência, tínhamos os olhos marejados de lágrimas de felicidade por estarmos compartilhando momentos únicos, descobrindo que a música podia, sim, mudar as nossas vidas.

Para quem não se importava com discos do Black Sabbath, Captain Beyond, Rush, Armageddon e Slade, eu talvez tenha aprendido tudo de errado, mas foi exatamente isso o que me salvou de uma vida medíocre. Aprendi a conversar com as pessoas olhando diretamente em seus olhos. Por isso, tive a sensação de olhar para cada um dos rostos daqueles que, um dia, foram donos daqueles discos e, provavelmente, compartilharam da mesma alegria e das mesmas lágrimas de cumplicidade musical, sem o fingimento de uma elegância fajuta, que tachava a todos nós como "vagabundos roqueiros".

Vi muita tristeza naquelas imagens tão turvas quanto as de um filme de fantasma de baixo orçamento. Senti que o fato de não ter me casado, de não querer ser pai, de resistir bravamente a qualquer tentativa de cerceamento de minha liberdade individual era uma vitória, mas que alguns companheiros haviam sucumbido nessa batalha. O que era errado acabou salvando a minha vida. Naquela noite, desisti de ouvir meus discos. Naquela noite, fui dormir um pouco mais triste ...


Comentários

  1. Eu tive a sorte de casar com uma mulher que não apenas gosta de música, como gosta do que eu gosto e incentiva a compra, mas entendo o que vc fala.

    Vejo amigos meus sendo ridicularizados quando não humilhados pelas esposas pq trouxe mais um "cd de merda" para casa ao invés de um pacote de fralda ou algo assim.

    Isso quando não praguejam "já que comprou um CD pq nao comprou de boa música como um da Ivete ao invés desse lixo que curte para tentar voltar à adolescência?".

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  2. Acho o cúmulo alguém dizer que ama você e não deixar que você curta seus gostos pessoais. Quando isso acontece não é um relacionamento, é uma relação de posse ridícula.

    Por sorte, nunca vivi algo assim. Eu e minha ex-mulher tínhamos gostos similares, e os temos até hoje, então ela me incentivava com a coleção.

    Agora, é preciso cuidado e com senso para não gastar tudo com discos e deixar os outros gastos da casa na mão.

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  3. Nós, freqüentadores de sebos, agradecemos cordialmente a todas essas esposas que odeiam "tralhas" em vinil e CD! :)

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  4. Eu acho que não conseguiria conviver mais de uma semana com alguém que não respeitasse meu gosto musical, pois este tem há uns 20 anos uma importância enorme na minha vida... Tenho um amigo que se "converteu a Deus" por causa de uma namorada e se desfez de todos os discos de Heavy Metal que possuía... uns 6 meses depois o namoro acabou, Cristo já não falava mais com ele e a vontade de ouvir os discos "pecaminosos" voltou, mas eles não estavam mais lá... deve ser difícil passar por isso, acredito que eu não me deixaria "subverter" a este ponto...
    O comentário da "boa música como um da Ivete..." para mim seria um ponto final no relacionamento, eu consideraria isto o cúmulo da falta de respeito e sairia fora... Se alguém não respeita meus gostos e opiniões, como vai me respeitar nos outros itens da vida a dois?

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  5. Essa parte de virar carola e doar os discos eu também já presenciei. Conheci um cara que deu toda a coleção que tinha e trocou tudo por CDs do Padre Marcelo.

    Sinceramente, não é que eu não consiga viver 1 semana com quem não conseguisse meu gosto musical. Eu nem começaria algo com tal pessoa, tanto que conheci minha pessoa via internet, já que ela era leitora das minhas colunas.

    Já basta ser pentelhado por pais, parentes, irmãos, amigos.

    Mas, infelizmente, o que está retratado no texto acontece demais.

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  6. Acho que o texto tem uma certa dose de exagero. Claro que sei que isso acontece, de pessoas que acabam tendo que escolher, abrir mão de seus gostos por causa das pressões da companheira (ou companheiro) e se desfazer, o que é uma pena, porque disco e música é coisa que mexe com sentimento, de um jeito muito forte. Porém, tem o outro lado. Já vi gente que passou a vida inteira olhando pro próprio umbigo, sendo egoísta e colocando a música e seus gostos na frente de tudo e de todos os relacionamentos (seja com familiares ou com outras pessoas) e depois acaba amargurado sozinho. O ideal é o equílibrio. Deixar de comprar coisas pra família pra comprar disco me soa tão absurdo quanto se desfazer de tudo num sebo da vida.
    Abraço!
    Ronaldo

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  7. Concordo com o que o Ronaldo disse. Sou casado e minha mulher respeita meu gosto e não mexe na minha coleção.
    Tenho prioridades em minha vida, assim como todos, mas não deixo de vez ou outra comprar um disco...o ritual de limpá-lo e poder ouvi-lo com calma, seja com os amigos, com a família, ou mesmo sozinho mesmo.

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  8. Se não tem parcialidade e companheirismo pra entender o que é ser um bolha, é melhor não ficar junto.

    Já diria as capas dos discos nacionais: " Disco é cultura"

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