Discos Fundamentais: Vinícius de Moraes - A Arca de Noé (1980)


Por Ricardo Seelig
Colecionador
Collector´s Room


Houve um tempo em que as crianças, ao invés de passarem o dia na frente de um computador, passavam as horas na rua, em contato com a natureza, descobrindo o mundo. Nessa época, a vida era mais simples. Ao contrário de hoje em dia, onde a trilha sonora da grande maioria dos pequeninos é formada por discos de nomes tão esdrúxulos como Xuxa, naquela época as crianças eram agraciadas por projetos musicais assinados por gênios como Vinícius de Moraes. E, como vocês devem imaginar, isso faz uma grande diferença.

Quando lembro dos sons da minha infância, a primeira, e mais forte memória, é do disco A Arca de Noé. Lançado em 1980, foi a trilha dos meus primeiros anos, onde tudo era novidade e cada dia era uma aventura. Cresci, me tornei um apaixonado por música, e muito dessa paixão veio do fato de ter sido exposto aos bons sons desde cedo.

Em março de 2008 virei pai. Meu filho Matias veio ao mundo e mudou a minha vida. Como não poderia deixar de ser, desde cedo teve contato com a música, fuçando em minha coleção, passeando de carro comigo sempre com um som diferente, aprendendo que a vida só fica completa quando estamos rodeados de notas musicais.

Olhando os discos em uma loja, encontrei o velho A Arca de Noé em CD, remasterizado e tudo. Comprei na hora, não só por lembrar a minha infância, mas principalmente para dividir com o Matias o prazer de ouvir um dos discos mais legais que conheço. Ainda que a maravilhosa capa do vinil original, onde os bichos da arte são colados como se fossem recortes multicoloridos, perca bastante do seu impacto no espaço limitado do CD, o que importa, que é a música, continua com a qualidade lá em cima.

O álbum é composto por treze poemas de Vinícius de Moraes musicados por amigos e parceiros, tendo o brother Toquinho à frente. As letras são exemplos do talento único de Vinícius. O poeta ordena palavras e letras para contar a história dos bichos que entraram na arca de Noé, em textos inspirados, mágicos e antológicos.

Chico Buarque e Milton Nascimento abrem o disco com uma quase narração a respeito da arca, que serve de introdução e contextualiza a história. Na sequência vem uma das faixas mais conhecidas do disco, a antológica “O Pato”, cantada de maneira sublime pelo MPB 4. Essa canção já deixa claro o quão lírica é a obra, a milhas de distância da imensa maioria da música infantil produzida no Brasil nas décadas recentes, que, ao invés de mostrar o mundo de forma lúdica para as crianças, trata os baixinhos como se fossem acéfalos.

A qualidade continua lá em cima com “A Corujinha”, onde a doce voz de Elis Regina embala os sonhos de quem se deixa levar pela melodia da canção. Em “A Foca” temos uma divertida performance de Alceu Valença, que encarna um palhaço animador de circo que conta a história das focas americana, francesa e, é claro, brasileira.

Moraes Moreira é o dono da voz em “As Abelhas”, faixa que conta com um andamento pra lá de interessante. “A Pulga” tem Bebel Gilberto à frente, e sua voz eleva a composição a um nível quase celestial. As esquecidas Frenéticas batem ponto em “Aula de Piano”, enquanto Fábio Júnior nos faz lembrar que um dia foi um bom cantor em “A Porta”.

O outro som inesquecível de A Arca de Noé, depois de “O Pato”, é “A Casa”, cantada pelo Boca Livre. Essa música está no inconsciente coletivo dos brasileiros, que sabem de cor a letra “era uma casa, muito engraçada, não tinha teto, não tinha nada”.

A sequência final ainda conta com a belíssima “São Francisco”, cantada de forma arrepiante por Ney Matogrosso. A beleza de “São Francisco” é tamanha que ouvi-la se assemelha à experiência de fechar os olhos em uma oração.

Marina toma a frente em “O Gato”, outra excelente composição, enquanto o maldito Walter Franco canta “O Relógio”, uma espécia de canção infantil psicodélica. O disco encerra com “A Menininha”, cantada por Toquinho, e com um desconcertante medley instrumental que une trechos de todas as faixas.

Um dos pontos mais interessantes de A Arca da Noé, além das excelentes letras de Vinícius de Moraes, são os arranjos instrumentais das composições. Unindo elementos de gêneros como MPB, jazz, bossa nova, samba e outros, são um deleite para qualquer pessoa apaixonada por música. Experimente ouvir cada uma das canções prestando atenção apenas na parte instrumental e comprove o que eu estou falando.

A Arca de Noé é um álbum belíssimo, que abre as portas do maravilhoso mundo da música para crianças de todas as idades. O Matias, do alto dos seus dois anos, não se cansa de ouvi-lo, e eu, como pai e parceiro de aventuras sonoras, redescubro um dos discos mais marcantes da minha vida e comprovo como ele só ficou melhor com o tempo.

Compre esse disco para o seu filho. Ouça cada faixa junto com o seu menininho, com a sua menininha. Você vai ver que criança é exigente e sabe o que é bom, além de mostrar o caminho dos bons sons para o seu filho desde cedo.

A Arca de Noé é um dos principais responsáveis pela minha formação musical, e, pelo andamento das coisas, fará o mesmo com o meu pequeno ouvinte. Se, daqui há alguns anos, quando você acessar a Collector´s Room der de cara com um Matias Seelig assinando algumas matérias, pode ter certeza de que o início de tudo foi com esse disco.

1 A Arca de Noé – Chico Buarque & Milton Nascimento – 4:17
2 O Pato – MPB 4 – 2:06
3 A Corujinha – Elis Regina – 2:18
4 A Foca – Alceu Valença – 3:14
5 As Abelhas – Moraes Moreira – 2:41
6 A Pulga – Bebel – 1:28
7 Aula de Piano – As Frenéticas – 2:51
8 A Porta – Fábio Jr. – 3:28
9 A Casa – Boca Livre – 2:14
10 São Francisco – Ney Matogrosso – 2:25
11 O Gato – Marina – 2:38
12 O Relógio – Walter Franco – 2:09
13 Menininha – Toquinho – 2:54
14 Final [Instrumental] – 3:37

Comentários

  1. Quando eu era criança eu ouvia muito o Saltinbancos feito com versão em portugues pelo Chico Buarque. Eu adorava o disco...O interessante que ele foi o primeiro disco CONCEITUAL que ouvi e deve ser por isso que gosto desse tipo de disco até hoje.

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  2. Fernando, também tinha o Saltimbancos, e era muito bom mesmo. Comprei ele em CD junto com o A Arca de Noé, mas não ouvi tanto novamente.

    Abraço.

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  3. Cadão, depois de ler o último parágrafo, fiquei imaginando um texto do Matias sobre os "jurássicos" Pearl Jam, Alice In Chains e Linkin Park, e ele dizendo que "a carreira destas bandas nunca será como foi no século XX", assim como nós fazemos com tantas bandas que gostamos hoje...

    Não pude deixar de rir da ironia de imaginar especialmente as bandas grunge sendo chamadas de jurássicas... hahahaha..

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  4. É Micael, fico imaginando isso. Um texto do Matias falando das descobertas que encontrou naqueles discos empoeirados do pai ... hehe ...

    Abraço.

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  5. Cuka, aqui não disponibilizamos links para download, mas se você pesquisar na internet certamente encontrará o disco.

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  6. Olá, Ricardo!
    Esse disco não tem a canção infantil "A Cachorrinha" (que começa com "Mas que amor de cachorrinha..."), também do Vinícius? Em qual disco está essa música?
    Grande abraço.

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  7. Felipe, não tem essa música, mas existe um Arca de Noé 2 que talvez tenha essa canção.

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