Prateleira do Cadão: a fase alquímica de Jorge Ben


Por Ricardo Seelig
Publicitário e Colecionador
Collector´s Room


Jorge Ben não é desse mundo. Os trabalhos gravados pelo cantor e compositor carioca nos anos setenta, notadamente os álbuns A Tábua de Esmeralda (1974) e África Brasil (1976), são discos únicos na música brasileira, donos de uma sonoridade que, mesmo transcorridos quase quarenta anos de seu lançamento original, atestam o quanto Jorge estava com a cabeça muito à frente daquilo que os seus contemporâneos estavam fazendo. Esqueça esse clone mal acabado que colocou um “Jor” no sobrenome, regrava “Taj Mahal” e “País Tropical” todos os anos e anda lançando CDs no máximo medianos há um bom tempo. O Jorge Ben que importa é esse aqui, original, maluco, inovador e sem igual!

Jorge Duílio Lima Meneses nasceu no Rio de Janeiro em 22 de março de 1942. Quando menino, queria ser jogador de futebol e chegou a ingressar nas caregorias de base do seu time do coração, o Flamengo, mas a paixão pela música falou mais alto. Aos treze anos começou a tocar pandeiro, passou pelo coro da igreja de sua comunidade, e aos dezoito ganhou de sua mãe seu primeiro violão. Com ele, companhia inseparável, começou a tocar nos bailes e festas das redondezas.

Os primeiros discos de Jorge Ben geraram discussão junto à crítica por misturar, sem maiores pudores, samba e bossa nova com elementos do então rock da Jovem Guarda, resultando em um som inovador e pra lá de original. São desse período álbuns fundamentais para a música brasileira como Samba Esquema Novo (1963, clássico instantâneo que abre com a imortal “Mas Que Nada”), O Bidú: Silêncio no Brooklin (1967), Jorge Ben (1969), Força Bruta (1970) e Negro é Lindo (1971).

Mas foi quando teve contato com a obra dos Beatles e outros grupos dos anos setenta, absorvendo a atmosfera lisérgica da época e inserindo características psicodélicas ao seu som, que Jorge criou dois melhores álbuns já gravados em nosso país.

Declarando-se um seguidor da obra dos lendários alquimistas, Jorge Ben batizou essa nova fase de sua carreira como “alquimia musical”, e a definição explica bem o que podemos encontrar em A Tábua de Esmeralda e África Brasil. Arejando o samba e incluindo o batuque no rock, Jorge Ben pariu dois discos com uma sonoridade singular e inusitada, que caíram como uma bomba de efeito duradouro na música brasileira.


Se os Beatles fossem brasileiros e tivessem nascido no Rio de Janeiro, A Tábua de Esmeralda seria o seu Sgt Pepper´s. Inovador, requintado e genial, o álbum leva o ouvinte através de uma jornada de boas vibrações banhada por letras inspiradas em textos alquímicos. O trabalho abre com uma de suas faixas mais conhecidas, “Os Alquimistas Estão Chegando os Alquimistas”, que joga no tabuleiro as intenções de Jorge Duílio. “O Homem da Gravata Colorida” é um samba lisérgico, enquanto “Errare Humanum Est” tem belíssimas e inspiradas linhas vocais. “Menina Mulher da Pele Preta” é um samba divertido onde Jorge fala de sua paixão por uma bela morena. Já “Zumbi” presta reverência ao lendário Senhor do Quilombo de Palmares, figura mítica da cultura negra brasileira.

O contraste entre o clima leve de “O Namorado da Viúva” e a letra densa e repleta de história de “Hermes Trismegisto e sua Celeste Tábua de Esmeralda” exemplifica o que é o disco: o balanço contagiante e de fácil assimilação do samba servindo de moldura para letras que transcendem o estado físico, transportando o ouvinte às alturas com uma criatividade perturbadora.


Em 1976 Jorge Ben soltou África Brasil, estilisticamente a sequência de A Tábua de Esmeralda, apesar de entre os discos haver um terceiro, Solta o Pavão, de 1975, álbum que tem a clássica “Jorge da Capadócia”.

África Brasil já abre com tudo, com o balanço imortal de “Ponta de Lança Africano (Umbabarauma)”, uma das canções mais conhecidas de Jorge. O embalo contagiante do samba rock não deixa ninguém parado, e até hoje conserva intacto o poder de levantar uma festa.

Hermes Trismegisto volta à ordem do dia com “Hermes Trismegisto Escreveu”, que fala novamente de alquimia e contém a imortal frase “é verdade sem mentira, certo muito verdadeiro”. A cíclica “O Filósofo” evolui sobre uma base que vai e volta, levando o ouvinte ao transe.

Um dos melhores momentos de África Brasil é “Meus Filhos, Meu Tesouro”. Na letra, Jorge Ben pergunta aos seus filhos o que eles querem ser quando crescer, e as respostas vão de “dona de casa atuante” a “mulher de milionário”, de “tesoureiro ou presidente” a “liberal como você”. Na parte instrumental, um groove de rachar o assoalho que funde samba e funk de maneira sublime!

As infinitas – e muitas vezes desnecessárias – versões da batidaça “Taj Mahal” fazem com que a sua gravação original, muito mais roots e com um charme vintage, soe atrativa, principalmente pelos espertos metais. O chão volta a tremer com o balanço sensual de “Xica da Silva”, tributo de Ben à lendária escrava – se em A Tábua de Esmeralda o homenageado foi Zumbi de Palmares, em África Brasil é a vez de Xica da Silva.

“A História de Jorge”, com uma letra pra lá de maluca, faz o ouvinte tirar os pés do chão com frases como “eu tinha um amigo que voava, voa Jorge, voa!” e “voa bem alto Jorge, traz uma estrela pra mim”.

O samba volta a encontrar o funk em “Camisa 10 da Gávea”, enquanto “Cavaleiro do Cavalo Imaculado” tem uns toques meio fusion. O disco fecha com “África Brasil (Zumbi)”, que reprisa trechos de “Zumbi” de A Tábua de Esmeralda e a adorna com uma batida mais tribal e os vocais raivosos de Jorge, cantando de uma maneira agressiva poucas vezes vista em sua carreira.

A Tábua de Esmeralda e África Brasil foram relançados recentemente em Lps de 180 gramas pela Polysom, dentro da série Clássicos em Vinil.


A gente olha hoje para Jorge Ben e vê um artista apagado artisticamente, sentado confortavelmente sobre as glórias de seu passado. Não há nenhum mal nisso, afinal cada um é dono do seu destino e faz o que bem entender com a sua vida, mas pessoalmente me causa repulsão assistir um cara com o talento que Jorge Ben possui tocando em programas de auditório, fazendo a trilha para donas de casa acima do peso nas tardes de domingo.

A Tábua de Esmeralda e África Brasil levaram a música de Jorge por caminhos até então inéditos, que na verdade estavam sendo construídos simultaneamente à gravação de ambos os discos. Se você nunca ouviu esses dois álbuns ainda dá tempo de corrigir essa falha em sua formação musical. Se você já os conhece, ouça novamente, pois a experiência é sempre nova e refrescante. E se você acha que tudo isso que eu falei é besteira e se contenta em acreditar que Jorge Ben é esse cara que colocou um “Jor” no nome e há tempos toca as mesmas músicas sem parar ... bem, nesse caso eu sinto muito e só posso ter pena de você, meu amigo, porque você está deixando de conhecer dois dos melhores discos já gravados por aí!

Comentários

  1. Meus favoritos do Jorge Ben são o disco de 1969, que recebe seu próprio nome, e o Negro É Lindo, de 1971. Apesar disso, é um artista no qual ainda sou iniciante. Vou atrás desse África Brasil pra ver qual que é. =]

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  2. Legal o texto, realmente são os 2 melhores disco do cara. Inclusive o tabúa de esmeralda, vai ser relançado na coleção do estadão e como todos, deve vir com um belo texto. Só achei que vc deveria ter enfativado um pouco mais o Solta o Pavão, que é considerado pelo próprio Jorge uma evolução do Tabúa...
    De resto devo dizer que os discos que eu mais gosto dele, fora os citados são;
    Gil e Jorge
    Ben é samba bom
    23(um dos poucos discos da década de 1990 que tem lampejos do velho Ben).
    Ben de 1972.

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  3. li a resenha da Tábua no RYM e curti muito. um dia vou escrever resenhas como você, cadão.

    Postei no blog de novo, depois de meses. hahaha

    Abraço

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  4. Fantástico! O Jorge, o Ben, não o Ben Jor, era fantástico!
    Abraço!
    Ronaldo

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  5. Realmente é triste ver que grandes artistas se tornaram conformistas com o tempo. Mas mesmo assim o legado deles ninguém pode apagar. Parabéns pelo ótimos texto!

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  6. Concordo plenamente com voce ,esses dois discos de Ben,são meus favoritos, pena que seu talento anda realmente apagado.

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