Rigotto's Room: a Nova York de Lou Reed!


Por Maurício Rigotto

Em uma reflexão nostálgica e estritamente pessoal, constatei que 1989 foi um ano marcante para mim, para o mundo e também para o rock.

1989 foi o ano em que completei dezoito anos e atingi a minha maioridade. Pude fazer minha carteira de habilitação e meu título de eleitor. Abri conta-corrente em banco, arranjei meu primeiro emprego e votei pela primeira vez, justamente na eleição que devolveu aos brasileiros o direito de escolher seu Presidente da República. Votei em Leonel Brizola no primeiro turno e no sindicalista Lula no segundo. Não adiantou, a maioria escolheu o Collor e deu no que deu. Foi o ano em que assisti a um show de Raul Seixas e dois meses depois me comovi com sua morte.

Em termos globais, a queda do muro da vergonha de Berlin vislumbrava uma nova ordem mundial, injetando na juventude a qual eu estava inserido uma utópica esperança de que dias melhores estavam por vir. Não que eu estivesse seriamente preocupado. Como qualquer garoto de dezoito anos saudável, eu estava mais focado em escapar do serviço militar obrigatório, fazer barbaridades com os novos brinquedos – automóvel e motocicleta – e cair na noite para xavecar as mulheres, devido ao alto índice de testosterona inerente à idade.


Porém o que eu mais gostava era comprar discos de rock – como tem coisas que não mudam nunca! – e a essa altura eu já possuía uma quantidade invejável para os padrões da época. Estava fascinado pelo rock dos anos sessenta e setenta e não conseguia simpatizar com o rock tecnopop que dominou a década de oitenta e que tocava direto nas boates e bares noturnos. Até mesmo os artistas que eu admirava, a elite do rock, durante os anos oitenta gravaram discos pouco inspirados e com aqueles horríveis teclados sintetizados e baterias eletrônicas, dando a entender que àquela altura já estavam em franca decadência, tentando se inserir na nova onda para não perder o bonde.

Eis que em 1989 se dá à renascença. As locomotivas e os vagões são novamente colocados sobre os trilhos certos e o renascimento se concretiza. Paul McCartney lança Flowers in the Dirt, um grande álbum depois de vários apenas razoáveis. Bob Dylan, já desacreditado por seus seguidos discos mornos, volta a velha forma com Oh Mercy. Eric Clapton lança Journeyman, que não tem nada de genial, mas comparado aos lamentáveis anteriores Behind the Sun e August é quase uma obra-prima. Até os Rolling Stones, que estivaram muito próximos de um final de carreira melancólico, acertaram os ponteiros com Steel Wheels.

Esses foram apenas alguns exemplos de artistas que erraram a mão nos anos oitenta, renasceram em 1989 e seguem até hoje com carreiras brilhantes. Paralelamente, bandas recentes como os Pixies também lançavam sua obra-prima em 1989 – no caso, o álbum Doolittle.


Mas talvez o grande disco de 1989 seja New York, do bardo do Brooklin e ex-Velvet Underground Lou Reed. Não que seja mais um “renascimento”, mas desde 1973 Lou Reed não lançava um disco tão marcante.

Após liderar nos anos sessenta o essencial Velvet Underground, Reed lançou seu primeiro disco solo em 1971, que passou tão despercebido quanto a sua ex-banda. Porém, seus próximos álbuns, Transformer (1972) e Berlin (1973), o consagraram como um dos mais consistentes e significativos artistas do rock’n’roll. Sua poesia refinada chocava com temas do submundo, como drogas, gangues de rua, violência, conflitos raciais, travestis e tudo que perambulava pelo lado escuro e selvagem – com canções como "Vicious" e "Walk on the Wild Side". Depois de Berlin Reed lançou muitos álbuns, creio que mais de vinte – não vou me dar ao trabalho de contar – todos muito íntegros, mas até 1989 nenhum deles alcançava o status de genial como Transformer e Berlin.


Em 1987, a morte do papa da pop art, Andy Warhol, que havia sido o padrinho do Velvet Underground, abalou Lou Reed. No funeral, Reed encontrou-se com John Cale, seu parceiro no Velvet, com quem não falava desde 1968, e ambos decidiram retomar a amizade e compor um disco em homenagem a Warhol.

Logo após comporem e gravarem sozinhos o álbum Songs for Drella, Lou Reed compõe a sua ode a Nova York no formato básico mas insuperável – em suas próprias palavras – de duas guitarras, baixo e bateria. Na contracapa, Reed escreve que “esse álbum deve ser ouvido na ordem correta das músicas, devendo ser apreciado em seus 58 minutos (14 músicas!) sentado como se estivesse lendo um livro ou vendo um filme.” De fato, é uma obra una, coesa, e atrai mesmo o ouvinte a prestar atenção em suas letras ferinas, que transformam críticas do cotidiano em inspirada poesia.


"Romeu Had Juliete" abre o disco e logo se percebe que Reed não está falando dos protagonistas da tragédia de Shakespeare, mas de Romeo Rodriguez e Juliete Bell, traficantes latino-americanos e suas desventuras pelo submundo da cidade.

"Halloween Parade" fala sobre a Aids e mistura seres do underground como Christopher Street, Johnny Rio e Rotten Rita com os astros de cinema Cary Grant, Greta Garbo e o diretor Alfred Hitchcock. "Dirty Blvd" fala da saga de Pedro, outro imigrante, nos bairros sujos e violentos.

Ao longo do disco, problemas urbanos contemporâneos são abordados de forma irônica e perturbadora, como a violência das gangues, agressões domésticas, pedófilos e suas crianças abusadas, racismo e Aids, que ainda era um assunto relativamente novo e impregnado dos mais cruéis preconceitos.

"Endress Cycle" cita drogas injetáveis circulando por suas veias. "There is No Time" diz que não há tempo para celebração, não há tempo para otimismo, que não há tempo para mais nada. "Last Great American Whale" traz a baterista do Velvet Underground, Moe Tucker, como convidada; e "Begining of a Great Adventure" fala sobre uma lista de nomes que daria a um filho se o tivesse.


O lado dois já inicia com outra perturbadora provocação. "Busload of Faith" contesta a fé dizendo que você não depende de sua família, seus amigos, políticos, inteligência.

O observador do cotidiano nova-iorquino segue sua temática pesada em "Sick of You", "Hold On" e "Good Evening Mr. Waldheim", onde brigas raciais, mafiosos, assassinos de rua, Mike Tyson e Jesse Jackson aparecem nas sangrentas narrativas.

Tipos mal-encarados do submundo ouvem Jimi Hendrix na jukebox na debochada "Xmas in February". Mais desolação surge em "Strawman" e o disco se encerra com "Dime Store Mystery", uma homenagem a Andy Wahrol novamente com Moe Tucker nas baquetas e tambores.

Não há protagonistas, mas as canções mantém uma unidade como fragmentos de uma antologia de contos, ou partes de um romance. A temática soa como uma novela que retrata o que há de pior em uma cidade no final de uma década; e mesmo assim é um lindo manifesto impregnado de lirismo poético em que um bardo expressa suas ácidas constatações usando o rock como veículo. Ao expor a sua visão dos agudos problemas citadinos, Lou Reed se expõe como um dos mais contundentes poetas do rock, um letrista que talvez só fique atrás de Bob Dylan na hierarquia do gênero.

New York acabou sendo lançado antes de Songs for Drella, o disco em parceria com John Cale, e depois dele, quando pensamos em alguém que seja a própria personificação de Nova York, lembramos que Woody Allen não está sozinho, Lou Reed também é a encarnação de New York City.

Realmente, 1989 foi bastante significativo.

Comentários

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  2. Três comentários:

    1) New York está muito perto de ser o maior álbum solo de Lou, pau-a-pau com Berlin. Não sei qual dos dois gosto mais.

    2) Além desses álbuns todos citados de 1989, faltou lembrar do estupendo Freedom, de Neil Young, disco que o trouxe, novamente, à boa forma. No ano seguinte, seria a vez de Ragged Glory. Outro que adoro, mas muita gente torce o nariz é o Tin Machine, do Bowie.

    3) A volta dos "dinossauros" deixou Morrissey tão furioso a ponto de compor a canção "Get Off the Stage", após ouvir uma entrevista de Keith Richards dizendo que ele estava saudável agora e que os Stones cairiam na estrada. Mas, na verdade, o ex-líder dos Smiths berrava contra todos os ícones dos anos 60.

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  3. Verdade Rubão, Freedom e Ragged Glory são dois excelentes discos.

    E eu acho que prefiro o New York ao Berlin e ao Transformer.

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  4. Mais um texto magnífico do Rigotto!

    Mas ainda prefiro o Transformer! E, sobre todos, a obra de Reed no Velvet...

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  5. Esse texto sobre o Lou Reed é, sem dúvida, um dos melhores já escritos pelo Rigotto, e um dos melhores já publicados aqui no site. Sensacional!

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  6. Concordo com o Ricardo, texto sensacional. Associar os fatos da vida aos bons sons é isso aí.
    E ouvi esse álbum faz muito tempo- só lembro de "Romeu had Juliette". Bom momento para reouvir e ver se ele figura ao lado de Transformer, Berlin e Rock and roll Animal, meus favoritos do Lou.

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  7. Obrigado Amigos. Fico deveras lisonjeado com suas palavras elogiosas.

    Realmente faltou citar Freedom de Neil Young e o primeiro disco do Tin Machine. Também gosto muito desses álbuns.

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  8. Belíssimo texto onde me identifiquei muito,pois 1989 foi um ano de muitas descobertas para mim e o play do Lou Reed me marcou muito,visitou meu toca discos inúmeras vezes como outros discos citados.

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  9. Musicalmente, acho o Lou Reed raquítico. Em termos de letra, seus temas passam longe de me agradar, apesar de ouvir com certo respeito o Transformer e alguns discos do Velvet Underground. Mas o texto ficou muito legal msm.
    Abraço!
    Ronaldo

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  10. Mas Ronaldo, você há de convir que o New York é um disco excelente.

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