Guia de compras: funk setentista


Unindo elementos do soul, do jazz e do rhythm & blues, o funk surgiu em meados da década de 1960 e se tornou um dos gêneros mais influentes da música, inserindo o balanço e a malandragem das ruas não só em suas músicas mas também em estilos diversos como o rock, o pop e, em um caso que comprova como a música é cíclica, até mesmo em ritmos de onde nasceu, como o soul e o jazz.

Este guia não tem como objetivo listar os melhores discos do gênero. Não, o assunto aqui não é esse. O foco deste Guia de Compras é o funk produzido durante a década de 1970, quando o estilo já estava consolidado e flertava sem cerimônias com os mais variados segmentos.

Além disso, a ideia deste artigo é equilibrar os nomes mais óbvios com outros não tão conhecidos assim, apresentando artistas e bandas excelentes mas muitas vezes esquecidos pela maioria. Aqui não iremos esmiuçar as origens do funk, mas sim trazer à tona, à luz do dia, nomes às vezes deixados de lado, mas que gravaram obras excepcionais em suas carreiras.

E, é claro, como toda lista, o objetivo principal é iniciar uma discussão sobre o assunto, e não servir de guia definitivo ou algo do tipo. Como são apenas 10 discos, muitas obras clássicas ficaram de fora, e é nesse ponto que entra em jogo o seu apetite e a sua curiosidade de colecionador para ir atrás, pesquisar e descobrir novos sons.

Aumente o volume, afaste os móveis da sala e mergulhe conosco nos porões do funk setentista!

Sly & The Family Stone - There’s a Riot Goin’ On (1971)

O quinto álbum do combo liderado por Sly Stone afastou a banda das experiências psicodélicas do disco anterior, o também excelente Stand! (1969), e aprofundou a música dos caras nas raízes da música negra. Muito mais rítmico do que antes, Sly deu às costas para a fábrica de melodias e hits certeiros de até então e focou em questões políticas. O título - "há uma revolta acontecendo" - é uma resposta a What’s Going On - "o que está acontecendo" -, álbum de Marvin Gaye lançado cinco meses anos. O disco estreou em primeiro lugar na Billboard e emplacou o single “Family Affair”. O álbum ficou famoso também por sua capa, que traz a banderia dos Estados Unidos cravada de tiros no lugar das estrelas habituais. Segundo o próprio Sly, tratavam-se de diversos sóis representando o brilho de cada cidadão, mas o entendimento da maioria foi diferente. Com uma sonoridade pra lá de influente e um conteúdo lírico que traduziu como poucos o espírito de uma época, There’s a Riot Goin’ On se transformou, com justiça, em um dos maiores clássicos da música negra de todos os tempos. Audição obrigatória!

Baby Huey - The Baby Huey Story: The Living Legend (1971)

James Ramey foi um gênio incompreendido. Apelidado de Baby Huey devido à obesidade causada por um distúrbio glandular que o tornava parecido com um popular personagem de quadrinhos da época, Huey gravou apenas um disco - mas que disco! The Baby Huey Story: The Living Legend, lançado em fevereiro de 1971, é um trabalho muito à frente do seu tempo. Com quase vinte anos de antecedência, Huey lançou as bases e os fundamentos que seriam apropriados e desenvolvidos mais tardes pelo rap e pelo hip hop. Com ritmos marcantes e vocais esplêndidos, The Baby Huey Story é um disco excepcional, e que permanece extremamente atual mesmo passados mais de quarenta anos de seu lançamento. Se eu tivesse que levar apenas um álbum dessa lista para uma ilha deserta, seria esse, sem dúvida. O proto-rap “Hard Times”, composto por Curtis Mayfield, é uma obra-prima, assim como as releituras inspiradas de “A Change is Going to Come”, de Sam Cooke, e “California Dreamin’”, do Mamas & The Papas, aqui em uma inquietante versão instrumental. 

Funkadelic - Maggot Brain (1971)

George Clinton é um dos artistas mais importantes do funk. Durante toda a década de 1970 esteve à frente de duas bandas seminais, o Funkadelic e o Parliament. Enquanto o primeiro, como o próprio nome já indica, trilhou os caminhos mais psicodélicos e lisérgicos do funk, o segundo seguiu trilhas mais dançantes. Maggot Brain é o terceiro álbum do Funkadelic e obra fundamental da música negra. Lançado em julho de 1971, traz em suas sete faixas um funk encorpado por elementos do rock, psicodelia, gospel e soul. A faixa-título, uma instrumental com mais de dez minutos de duração, contém um antológico e sideral solo do guitarrista Eddie Hazel e é um dos momentos mais iluminados da história da guitarra elétrica. Para concebê-la, Clinton chamou Hazel, trancou-o no estúdio e mandou ele tocar como se sua mãe tivesse acabado de morrer. O resto é história! As demais faixas exploram caminhos diversos, da viagem pelo oriente proporcionada pelo groove de “Can You Get to That” à hipnótica “You and Your Folks, Me and My Folks”. A capa, com a cabeça de uma mulher negra emergindo e gritando, também fez história, e se transformou em um dos ícones mais fortes da cultura black. Quem gosta de música tem que ter!

Isaac Hayes - Shaft (1971)

Durante a década de 1970, diversos filmes explorando a cultura negra norte-americana foram lançados, criando um gênero próprio classificado como Blaxploitation. O mais famoso deles foi Shaft, de 1971, que conta a história de um detetive particular do Harlem. A trilha da película, composta por Isaac Hayes, se transformou em um dos mais famosos e conhecidos registros sonoros do período. Predominantemente instrumental, traz grooves que transitam entre o funk e o soul, em alguns momentos apostando mais no groove e em outros em climas mais sensuais. O sucesso foi tamanho que a trilha de Shaft acabou se transformando no maior sucesso comercial da história da Stax, uma das mais importantes gravadoras da black music americana.”Theme from Shaft” até hoje rola nos toca-discos, e é uma dessas faixas presentes no inconsciente coletivo ocidental.

War - The World is a Ghetto (1972)

Imagine uma banda formada só por negros - sete, para ser mais exato - e batizada com o provocativo nome de War. Ele existiu, e foi um dos maiores nomes do funk setentista. Natural da Califórnia, o War emplacou hits como “Low Rider” e “Why Can’t We Be Friends?”, mas o seu trabalho definitivo é The World is a Ghetto, lançado em novembro de 1972. Com uma sonoridade elegante, que agregou elementos do soul e do jazz, The World is a Ghetto emplacou um grande sucesso - “The Cisco Kid” - e documentou para sempre o descomunal talento do War. “Where Was You At” tem um groove de rachar o assoalho, enquanto a faixa-título é uma longa suíte de mais de dez minutos que surpreende a cada movimento. Eleito o melhor disco de 1972 pela Billboard, The World is a Ghetto também foi o álbum mais vendido em todos os Estados Unidos em 1973.

Curtis Mayfield - Super Fly (1972)

Outra trilha de um clássico da Blaxpoitation, Super Fly traz uma sonoridade que varia bastante entre o funk e o soul. A capacidade criativa de Curtis Mayfield alcançou o seu ápice aqui, em um trabalho que esbanja uma musicalidade elegante e de muito bom gosto. Lançado em julho de 1972, Super Fly é o terceiro álbum de Mayfield e foi um grande sucesso comercial, liderando a parada da Billboard e emplacando dois singles que venderam milhões de cópias - “Freddie’s Dead” e a faixa-título. O disco é considerado também, ao lado de What’s Going On, de Marvin Gaye, um dos primeiros álbuns conceituais de soul music. Uma aula de composição, com arranjos estupendos e instrumentação certeira, eis aqui uma obra-prima obrigatória em qualquer coleção que se preze.

Betty Davis - Betty Davis (1973)

Betty Davis era apenas uma modelo, mas então conheceu Jimi Hendrix, Sly Stone e Miles Davis. Em setembro de 1968 casou-se com Miles, e foi essencial na transformação estética e musical pela qual o lendário músico passou no final da década de 1960 e início dos anos setenta e que gerou frutos estupendos como Bitches Brew e On the Corner. Após se separar de Miles, resolveu investir pesado em uma carreira musical, e o resultado foi surpreendente. O primeiro álbum de Betty Davis, batizado apenas com o seu nome, saiu em 1973 e é um dos trabalhos mais pesados do funk setentista. Sim, pesado mesmo, com excelentes riffs de guitarras e composições inspiradíssimas. Neal Schon, que mais tarde faria parte do Journey, é o responsável pelas seis cordas do lado de Doug Rodrigues, e o trabalho da dupla é simplesmente animal em todo o play. “If I’m In Luck I Might Get Picked Up”, por exemplo, tem um riff que não faria feio em um álbum de hard rock! O alto nível se mantém durante todo o play, com destaque para o baixo aeróbico de “Anti Love Song”. Pouca gente conhece, mas quem já ouviu sabe do que eu estou falando!

Herbie Hancock - Head Hunters (1973)

Prodígio do jazz, Herbie Hancock desde cedo esteve envolvido com gigantes do estilo. Fez parte durante anos da banda de Miles Davis, com quem aprendeu todos os truques e macetes da coisa. Mais velho, fez uma verdadeira revolução em 1973 com Head Hunters, seu décimo-segundo álbum, onde afastou-se do gênero com o qual esteve sempre ligado e mergulhou fundo no funk. São apenas quatro faixas, todas instrumentais, mas com grooves tortos e hipnóticos criados a partir do teclado de Hancock que influenciaram toda uma geração. A primeira, “Chameleon”, é uma tour de force com mais de quinze minutos capaz de levantar, ainda hoje, qualquer pista de dança. A experiência dos anos e anos de jazz fizeram com que Herbie produzisse um disco ao mesmo tempo acessível e com uma musicalidade elaborada, responsável por colocar a música negra em outro patamar. Pedra fundamental do jazz funk, Head Hunters vendeu horrores e até hoje inspira músicos em todos os cantos do mundo.

James Brown - The Payback (1974)

Uma lista sobre funk sem o pai do estilo não faria sentido! The Payback chegou às lojas em dezembro de 1973 e é um álbum duplo. O trabalho foi originalmente concebido como trilha do filme Hell Up in Harlem, mas foi rejeitado pelo diretor Larry Cohen por não ser funk o suficiente. Uma bobagem! Considerado por muitos críticos como o ponto mais alto da carreira de James Brown, o álbum, ainda que apresente durante todas as sua faixas uma evidente influência de soul e rhythm & blues, é sacolejante do início ao fim. As quatorze faixas são todas baseadas em grooves cíclicos e jams entre os músicos, característica que faz as composições soarem bem soltas. Além disso, as bases instrumentais foram fartamente sampleadas ao longo dos anos, fazendo de The Payback uma fonte infinita de inspiração para produtores e rappers. Quer ter apenas um disco do James Brown? Então esse é o álbum!

The JB’s - Funky Good Time: The Anthology (1995)

The JB’s era a banda de acompanhamento de James Brown durante a primeira metade da década de 1970. A formação original incluía o baixista Bootsy Collins, seu irmão Catfish Collins na guitarra, Bobby Byrd no órgão e John Starks na bateria, além de um trio nos metais e Johnny Griggs na percussão. Esta coletânea compila os diversos singles lançados pelo grupo ao longo dos anos, e é uma preciosidade sem tamanho. Ouvir o The JB’s é como presenciar a um doutorado em ritmo, groove e malandragem, em composições que foram fundamentais para definir o funk como gênero musical, como “Pass the Peas”, por exemplo. Compre correndo!

Além destes dez títulos, artistas como Fela Kuti, Parliament (banda irmã do Funkadelic), Miles Davis, Gil Scott-Heron, Cymande, The Isley Brothers, The Meters, Earth Wind & Fire, Stevie Wonder, Demon Fuzz, Kool & The Gang e Jimmy Castor, além dos brasileiros João Donato, Jorge Ben, Tim Maia e Banda Black Rio, gravaram álbuns muito bons e que merecem uma conferida atenciosa, pois foram muito importantes para o desenvolvimento do funk, seja acentuando ainda mais as características do gênero ou levando-o ao encontro de estilos como jazz, afrobeat, soul e até mesmo o samba. O mesmo vale para as diversas compilações reunindo trilhas de filmes da Blaxpoitation disponíveis.

Como dito lá no início, o principal objetivo deste guia é levar você até o maravilhoso mundo do balanço setentista. Caia na dança e descubra sons maravilhosos - e depois compartilhe eles com a gente!

Comentários

  1. Só sonzera! Tenho todos e confesso que a lista foi muito bem feita, parabéns. Deste lista Baby Huey merece destaque, discaço.

    Um adendo. Shaft foi relançado como filme em 2000, mas não supera o original!

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  2. Fui atrás dos discos para conhecer o estilo e não gostei muito. Só me amarrei bastante no Funkadelic e no War.

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  3. Alguns desses tem aqui em casa, juntando poeira na coleção de vinis dos meus pais. Vou pôr pra rolar, só conheço (muito pouco) James Brown!

    A propósito, as capas ENORMES que o blog usa para ilustrar as matérias são fenomenais. Continuem assim!

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  4. O Maggot Brain e o Superfly são meus dois discos favoritos do funk 70s. O The Payback do JB é de cair o queixo, e o Headhunters é excelente. Vou atrás dos outros.

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