Guia de Compras: Southern Rock

Movimento nascido nas terras do sul da América, mas que angariou adeptos mundo afora, o southern rock norte-americano tem algumas características básicas: duelos incansáveis de guitarras, com algumas bandas chegando até a manter três guitarristas solando ao mesmo tempo; grupos com um número elevado de integrantes (sete ou oito em média), que quando saíam em tour pela América levavam todas as famílias, transformando tudo numa caravana musical. Não havia uma separação entre a banda e a família (basta ver as fotos do disco Brothers and Sisters da Allman Brothers Band). Esse tipo de união não foi adotado com tanta propriedade por nenhum outro estilo musical. 

Outra característica que sempre acompanhou essas bandas foram as tragédias. Morte era algo corriqueiro na jornada de grupos como Lynyrd Skynyrd, Allman Brothers, Marshall Tucker Band e outras. 

Aqui estão dez discos clássicos desse estilo não somente de rock, mas também de vida.

Allman Brothers Band - Eat a Peach (1972)

A banda que começou tudo em termos de southern rock. O grupo dos irmãos Greg e Duane Allman foi o primeiro a resgatar as raízes mais ricas da música americana, mesclando-as com as novas tendências psicodélicas e com o rock mais pesado. Eat a Peach (duplo em vinil) é o disco que tornava mais evidente essas diversas facetas do grupo, além de contar com uma perfeita e profissional produção a cargo do mestre Tom Dowd.

Duane havia morrido a poucos meses e Greg já mostrava toda a sua dor pela perda em "Ain't Wastin' Time No More", que abria o álbum em memorável estilo. A instrumental "Les Brers in a Minor" está entre as mais ousadas composições do grupo, funcionando bem como um lamento para Duane. "Melissa" vem na sequência e é "A” balada do Allman Brothers Band, sentimental e altamente melódica. 

No recheio desse grande trabalho temos ainda três faixas gravadas no lendário concerto do Fillmore East no ano anterior e que gerou um dos maiores discos ao vivo da história. "Mountain Jam", com seus mais de 33 minutos de duração, ainda hoje continua a ser um testamento desta gloriosa fase do rock, isso sem falar nas versões nervosas para "One Way Out" e "Trouble No More". 

Encerrando o álbum, mais três faixas de estúdio gravadas ainda com a participação de Duane. "Blue Sky", de Dickey Betts, inspira qualquer paixão pela veia country da banda, e "Little Martha", em sua sublime e majestosa melodia acústica, traz ainda mais saudades do maior guitarrista do rock sulista norte-americano.

Lynyrd Skynyrd - Pronounced 'leh-nérd-skin-nérd' (1973)

Esse foi o disco que estabeleceu um novo patamar na música que vinha do sul da América. Em seu primeiro álbum, Ronnie Van Zant e seus comparsas estrearam com o pé direito, trazendo uma produção irrepreensível de Al Kooper e baladas como "Tuesday's Gone", "Simple Man" e o hino maior "Freebird", esta uma homenagem a Duane Allman.

Após ter lançado esse clássico, executando-o sempre ao final dos seus shows, o Lynyrd passou a ser copiado por toda as demais bandas que surgiam no sul, sendo uma questão de honra para todas elas criar uma música na linha de "Freebird", com encerramento em grande estilo, algo épico, capaz de representar o "espírito do grupo".

Outras maravilhas são "Gimme Three Steps", "I Ain't the One" e "Mississippi Kid", também obrigatórias nas apresentações. Todos os elementos característicos das bandas de southern rock estavam presentes nesse disco: as três guitarras afiadas, a simplicidade da vida sulista nas letras, a rusticidade na produção e as baladas bradando por uma eterna e simples ambição humana - a liberdade. Coisa fina.

The Marshall Tucker Band - The Marshall Tucker Band (1973)

Um dos pilares da cena southern dos anos 70, a Marshall Tucker Band era capitaneada pelos irmãos Toy e Tommy Caldwell, e se destacava dos demais grupos por ter uma sonoridade que mesclava rock, jazz e country. As longas jams com um leve toque de psicodelia também eram constantes nos concorridos shows dessa banda nativa da Carolina do Sul. 

Um dos integrantes, Jerry Eubanks, além de fazer os vocais (junto com Doug Gray e o restante do grupo, que também cantava), era flautista e saxofonista. Esse molho era um dos principais atrativos do disco de estreia do grupo, datado de 1973. Hinos do cancioneiro sulista como "Can't You See", "Take the Highway" e "AB's Song" marcam presença ao lado de maravilhas como "Hillbilly Band", "My Jesus Told Me So" e "See You Later I'm Gone".

É deixar rolar, pegar a estrada e soltar o cabelo ao vento. A trilha perfeita você já tem.

Little Feat - Little Feat (1970)

Um dos grandes clássicos esquecidos da história do rock, o primeiro disco do Little Feat vendeu cerca de 10 mil cópias na época de seu lançamento, um fiasco para uma major do naipe da Warner Bros. Disparado o melhor registro do grupo, e quiçá uma das maiores estreias do mundo musical, o álbum é comparado constantemente pelo fãs do grupo a Sticky Fingers, dos Rolling Stones (só para se ter uma ideia do nível do que estamos falando).

A voz do líder maluco da turma, o ex-Mother of Invention Lowell George, chega mesmo a lembrar a de Mick Jagger e a de Van Morrison em "Strawberry Flats", "Truck Stop Girl" e "Forty Four Blues". Já em baladas como "I've Been the One", "Brides of Jesus" e "Takin' My Time" a musicalidade do grupo flui de forma arrepiante, uma mescla do talento peculiar de George e da competência instrumental do resto da trupe, simplesmente inacreditável!

George fundou o Little Feat junto com Roy Estrada, outro ex-integrante do Mothers of Invention, e juntos colocaram a banda entre os principais nomes da cena southern da América (apesar do grupo ter surgido na Califórnia). O próprio Zappa, ao ouvir a faixa "Willin", encorajou George a formar a sua própria banda. Não deu outra: o Little Feat em sua estreia acabou sendo a perfeita celebração das loucuras americanas. 

Ah, e depois de ouvir o disco, não faça muito alarde, pois os fãs do grupo preferem manter essa maravilha meio que como um segredo! 

Blackfoot - Strikes (1979)

Os principais e mais pesados representantes da segunda geração do southern rock. Este é o terceiro álbum do grupo e o primeiro de uma genial trilogia que trazia animais selvagens nas capas (em seguida viriam o disco da pantera, Tomcattin', e o da águia, Marauder).

O "disco da cobra", como ficou conhecido aqui no Brasil, trazia, além de belas composições próprias, três covers de tirar o fôlego: "Wishing Well" do Free (Paul Rodgers sempre foi a maior influência de Rick Medlocke), "I Got a Line On You" do Spirit e "Pay My Dues" do Blues Image.

Rick Medlocke era o vocalista/guitarrista/compositor e líder do Blackfoot. O mais curioso é que Medlocke já havia sido baterista do Lynyrd Skynyrd no início da década de 70, e hoje em dia voltou ao seio materno (o Lynyrd), onde continua detonando como sempre, agora na guitarra. Outros destaques são a balada "Left Turn on a Red Light", o andamento irresistível de "Run and Hide", a gaita e a paulada que é "Train Train", e, para encerrar, a apoteótica ode à estrada de "Highway Song", hino obrigatório que passou a encerrar os concertos da banda.

O Blackfoot foi também um dos maiores expoentes do rock sulista na Europa. Em constantes tours pelo velho continente, o grupo deixava todo mundo louco com seu show pesado e energético. Não é a toa que no começo dos anos 1980 os caras faziam extensas turnês ao lado de bandas de heavy metal e hard rock como Iron Maiden, Scorpions, Judas Priest e AC/DC.

ZZ Top - Tres Hombres (1973)

A obra-prima desses três malucos do Texas só pode ser o seu terceiro álbum, lançado em 1973. Com um repertório afiado, a banda passou a ter projeção internacional devido ao sucesso de "La Grange", um irresistível boogie que levanta até defunto. Ela foi também a primeira canção do grupo a pintar no top 10 norte-americano. Billy Gibbons já demonstrava ser um guitarrista de mão cheia e fazia a festa em temas como "Move Me On Down the Line", "Master of Sparks" e na dupla 'Waitin For the Bus / Jesus Just Left Chicago", que abria o álbum. 

Mas não era só de boogie e blues que respirava Tres Hombres. "Hot Blue and Righteous" é uma balada irretocável (que sem dúvida inspirou "Purple Rain", de Prince) e "Shiek" traz influências psicodélicas em seu final, resultado da bagagem de Gibbons em sua banda anterior, o Moving Sidewalks. Convenhamos: uma banda com uma música chamada "Beer Drinkers and Hell Raisers" só pode ser mesmo genial!

Ponto para o vinil: prefira a versão em LP de Tres Hombres. A reedição do disco no formato digital foi totalmente regravada pela banda no final dos anos 80, dando um ar moderno e desprezível ao trabalho original.

The Charlie Daniels Band - Fire on the Mountain (1974)

Verdadeiro orgulho sulista, Charlie Daniels acertou em cheio nesse seu quarto álbum. Aqui estão preciosidades como a balada "Georgia", o groove caipira de "Trudy" e "New York City King Size Rosewood Red", a latinidade de "Caballo Diablo" e a bela "Long Haired Country Boy", contando com a participação especial de Dickey Betts da Allman Brothers Band. Quem curte Lynyrd Skynyrd e Allman Brothers com certeza irá viajar no som de "Fire on the Mountain".

Um hino do rock sulista norte-americano é a música "The South's Gonna Do It", onde a letra traça um panorama da cena da época. Nomes como o do próprio Lynyrd Skynyrd, ZZ Top e Barefoot Jerry são exaltados na canção, enquanto um duelo piano/violino deixa os nossos sentidos aguçados.

Charlie Daniels é o responsável por um dos maiores eventos do southern rock, o Volunteer Jam, que é um concerto realizado anualmente em Nashville desde 1975 e traz participações de peso dos integrantes das principais bandas sulistas.

The Ozark Mountain Daredevils - The Ozark Mountain Daredevils (1973)

Primeiro disco desse combo caipira do Missouri e, apesar dos maiores hits da banda constarem no seu segundo álbum (It'll Shine When It Shines, de 1974), o primeiro ainda ganha em se tratando de rock sulista. 

O OMD fazia um som bem refinado e de qualidade acima da média, como pode ser conferido nas músicas "Spaceship Orion", "Colorado Song" e "Road to Glory". Tamanha qualidade era resultado também do esmero e cuidado que o experiente produtor Glyn Johns oferecia ao grupo nesse primeiro disco. 

A repercussão foi tão boa que as rádios da América passaram a tocar o som do OMD, que chegou a ser comparado por alguns críticos ao pop requintado do Steely Dan. Randle Chowning era o líder, fazendo os vocais, guitarras e mandando uma sentida gaita em faixas como "If You Wanna Get to Heaven", "Country Girl", "Chicken Train" e "Black Sky".

O Ozark Mountain Daredevils liderou uma vertente mais pop do southern rock. Longe da agressividade de um Blackfoot ou de um Molly Hatchet, o grupo atraía um novo público para a música que vinha do sul. Cinco estrelas fácil!

Barefoot Jerry - You Can't Get Off With Your Shoes On (1975)

Esse desconhecido grupo do Tennesse era liderado pelo experiente Wayne Moss, que regia a banda tocando guitarra, piano e baixo, além de fazer também os arranjos de cordas e os vocais. Moss já havia trabalhado como músico de estúdio no clássico Blonde on Blonde de Bob Dylan, o que lhe dava credibilidade suficiente para formar seu próprio projeto.

O grupo surgiu em 1971 e esse álbum é o quarto na discografia da banda. Os destaques são a maravilha melódica "West Side of Mississipi', o southern das arábias "Ali Baba" e sua contagiante levada, a instrumental "Boogie Woogie", a pesadíssima versão de "Lucille" (da verdadeira rainha do rock, Little Richard), o moog da bela balada "Hero Frodo" e o funkaço de "Sinkin' in the Sea". A faixa de encerramento, "Cades Cove", é emocionante de tão bela e delicada, tornando esse álbum um daqueles impossíveis de se enjoar devido à riqueza e diversidade de ritmos, nuances e andamentos em praticamente todas as composições. 

A banda quase não fazia shows e se concentrava apenas na produção em estúdio. Moss e seus companheiros andavam muito ocupados, uma vez que eram constantemente requisitados por grandes nomes da música, o que era uma pena, já que qualidade musical nunca faltou no Barefoot Jerry. 

Dica: a gravadora inglesa See For Miles relançou em 1997 You Can't Get Off With Your Shoes On com o também essencial Watchin' TV (o anterior na discografia deles) juntos num só CD. É difícil de encontrar, mas vale a garimpagem.

Outlaws - Bring It Back Alive (1978)

Desde o maravilhoso At Fillmore East da Allman Brothers Band, todo grupo sulista que se prezasse tinha que gravar um visceral duplo ao vivo para ser respeitado, afinal de contas era no palco que as bandas do sul mostravam sua garra e os seus maravilhosos "ataques guitarrísticos".

Conhecido como o "exército das quatro guitarras", sendo que uma delas, na verdade, era um baixo, o Outlaws sempre foi chefiado pelo guitarrista Hughie Thomasson, que teve uma longa passagem pelo Lynyrd Skynyrd, tocando com os caras entre 1996 e 2005. O rapaz formou o grupo na Flórida em 1972 e lançou três bons discos de estúdio até apostar tudo nesse genial registro ao vivo. Aqui as afiadas guitarras brilham durante todo o álbum, e os destaques são o hit "There Goes Another Love Song", a passagem jazzística de "Freeborn Man", o emaranhado de guitarras em "Holiday' e o hino "Green Grass and High Tides", aqui em sua versão definitiva com 20 minutos de duração e dedicada aos integrantes do Lynyrd Skynyrd mortos naquele famoso acidente aéreo em 1977. Emocionante! 

A tragédia também alcançou o Outlaws em 1985, quando dois ex-integrantes do grupo, o baixista Frank O'Keefe e o guitarrista Billy Jones, morreram num intervalo de três meses. 

Green Grass and High Tïdes Forever!


Comentários

  1. Que post! Vou me coçar para conseguir ouvir os álbuns desconhecidos por mim!

    Valeu Bento!

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  2. Muito boas as dicas, mas também vou deixar meus pitacos.

    Os 2 primeiros álbuns do Point Blank (homônimo e "Second Season") são muito bons.

    E, mostrando que ainda hoje surgem boas bandas nesse estilo, é imprescindível para quem curte southern rock ouvir o Hogjaw, que tem 3 álbuns excelentes.

    Vale lembrar também que o próprio Hughie Thomasson morreu recentemente após deixar o Lynyrd Skynyrd e remontar o Outlaws.

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  3. Eu colocaria, do Skynyrd, o Street Survivors. E a minha lista teria espaço também para o High on the Hog, do Black Oak Arkansas.

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  4. "No Guts... No Glory" e "Flirtin' With Disaster" do Molly Hatchet também são boas referências.

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  5. Muito legal, também incluiria o 38 SPECIAL ! Banda que tem uma certa ligação com LYNYRD SKYNYRD !

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  6. Ponto para o vinil: prefira a versão em LP de Tres Hombres. A reedição do disco no formato digital foi totalmente regravada pela banda no final dos anos 80, dando um ar moderno e desprezível ao trabalho original.

    Só um adendo: a nova versão em CD do Tres Hombres ("Remastered and Expanded") tem a mixagem original, sem os efeitos oitentistas, além de conter versões ao vivo de "Waitin' for the Bus", "Jesus Just Left Chicago" e "La Grange". O mesmo acontece com o Fandango!. Já para os discos First Album, Rio Grande Mud e Tejas, a situação continua a mesma - FUJAM DOS CD'S!

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  7. poxa , obrigado pelo post , to me deliciando com essas maravilhas

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