Arraigo: crítica de Fronteras y Horizontes (2012)

No final deste ano de 2012, é natural que surjam, principalmente em publicações especializadas e entre colecionadores de discos, dezenas de listas para eleger “os melhores do ano”. Não há dúvidas quanto ao resultado subjetivo de cada análise, e até por isso não se recomenda que as seleções sejam levadas tão a sério. O grande barato das listas, contudo, é justamente a discussão causada por elas. É tão comum a expressão que diz que “gosto não se discute”, mas tem algo mais divertido de debater do que os gostos?

De acordo com o meu gosto e com a minha percepção pessoal, o melhor álbum de 2012 não integrará nenhuma lista de melhores do ano feita no Brasil. A razão para isso é muito simples e não é, suponho, resultado da minha loucura. Fronteras y Horizontes, do grupo argentino Arraigo, não teve ampla circulação no Brasil neste ano, e por tratar-se de um disco independente produzido em Buenos Aires, ainda não teve divulgação e distribuição por aqui, nem mesmo através da internet.

Se dependesse apenas da questão estética, entretanto, acredito que o disco não estaria apenas na minha lista. O Arraigo traz uma mistura revigorante de metal com ritmos da região cisplatina (como tango, milonga, chacarera e carnavalitos), envolta por uma atmosfera densa e uma grande carga emocional. O que também impressiona logo de cara é a ampla variedade de cores e tessituras que compõe a paisagem sonora do álbum.

A faixa que abre o disco, "Carnaval de Soledades", já demonstra bem isto. A canção, que liricamente descreve as sensações oníricas e lisérgicas dos carnavais nortenhos da Argentina, integra, no plano instrumental, guitarras distorcidas junto a instrumentos regionais como quenas, zamponãs, charangos e güiros. É um bom cartão de visitas para apresentar a estética da banda, que sofre variações no equilíbrio entre peso e veia folclórica ao longo de todo o álbum. Como ocorre na segunda faixa, "En el Nombre de Padre", uma música mais pesada e bem agressiva.

Já as canções seguintes, "Zamba para los Huerfanos" e "Vidala para que Sigas", possuem uma cadência arrastada que acelera conforme a música progride, além de apresentarem mais elementos regionais. Os versos iniciais da primeira delas oferecem, discursivamente, o mais puro reflexo da mistura proposta pela banda: "Ya he escabiado com Satán / Y fui al funeral del barba / Y ya que tengo rota el alma / Es que aquí me pongo a cantar". Nesta faixa aproveitam-se também as incursões do Arraigo pela luteria. Foi incluído um bumbo legüero, instrumento percussivo argentino, no set da bateria, por exemplo, entre outras peças de percussão étnicas. Um instrumento que merece referência é a charantarra, um instrumento de braço duplo composto por uma guitarra elétrica e um charango eletro-acústico criado pelo grupo, e tocado por Federico Bertoli em diversas faixas.

Escolher apenas uma música de seu disco favorito do ano é sempre uma tarefa ingrata. Me forçando a fazer esta escolha, pra não ficar em cima do muro, eu teria de escolher "Nehuen (Fuego del Alma)", não apenas pela força da composição como um todo, mas também por ser a faixa que melhor sintetiza os distintos sentimentos que brotam durante a audição do disco completo. Vale destacar também a progressiva "Para Aquel que Sabe Oir", com diversas mudanças de andamento e uma letra, paradoxalmente, ambientada de todo a valores nativistas platinos. No arranjo aparece, inclusive, o som de um bandoneón.

A composição mais agressiva do disco é "Dogo", cujo instrumental chega a tomar por empréstimo alguma influência do thrash metal moderno, mesclado às principais marcas da banda. O restante da obra segue demonstrando o grau inventivo do grupo, e sua proposta artística de ligar elementos musicais folclóricos de sua região com características estéticas do metal, formando a base sobre a qual flutuam melodias marcantes.

Mais do que fazer uma análise de faixa a faixa, acho importante destacar as principais características do álbum como um todo. Criatividade e ousadia, em minha opinião, não são as palavras mais comuns ao universo do metal, desde os anos 1990. Isto não quer dizer, claro, que não hajam bandas criativas e ousadas desde lá. Há bastante! Contudo, não é o caso da ampla maioria dos grupos, que apesar de conterem, em geral, excelentes músicos, trilham os mesmos caminhos que já foram desbravados, reproduzindo clichês que, é verdade, já foram motivos para muitos discos e ingressos comprados, mas que não podem ser replicados pra sempre, com o risco de se tornarem estigmas indissociáveis do gênero (o que já gerou uma quantidade suficiente de pastiches, inclusive). Criatividade e ousadia são dois verbetes que não faltam, contudo, ao vocabulário musical de Fronteras y Horizontes.

Como comentado, a fusão que dá origem ao som peculiar da banda também sustenta o conteúdo das letras do grupo, onde se percebe, discursivamente, uma mescla entre temas profundos abordados pelo heavy metal, como a morte, a existência e a demência, e tópicos relativos à sociedade e à identidade latino-americana. "Crías de Crías", por exemplo, é uma faixa que demonstra a veia mais agressiva do disco, com um clima de tensão e aspereza que reflete claramente seu tema lírico: as condições estruturais precárias com que se desenvolve a infância de crianças carentes nos bairros pobres das grandes cidades. O conteúdo é inspirado no trabalho social que os membros da banda sustentam há mais de dez anos no bairro Zavaleta, em Buenos Aires.

As letras são bem trabalhadas e ganham em expressividade através do trabalho do vocalista Pablo Trangone, que canta a maioria das faixas em um registro médio, dosando bem o contraste entre as partes agressivas, mais gritadas, e as mais suaves. Individualizar o desempenho de algum dos membros do grupo soa até estranho, visto que o que mais chama a atenção é, na verdade, o equilíbrio no arranjo das composições. Pode-se destacar, por exemplo, o solo em "Dogo", o mais longo do disco, como um trecho solado bem técnico e veloz. Porém, mesmo passagens como esta não são muito longas, soando na medida certa.

O lado negativo até aqui fica por conta da dificuldade em adquirir o CD. A banda está vendendo, por um preço bem acessível, o disco mais a camiseta da banda através de seu site, porém, resta ainda conseguir contatos com distribuidoras ou lojistas aqui do Brasil para facilitar e baratear o envio do material.

O disco é a estreia em full-lenght da banda, após terem lançado o EP Rancho Sur, em 2006. Foi gravado no estúdio Doctor F., em Buenos Aires, e levou mais de três anos para ser concluído, do início da gravação até a masterização. O álbum foi produzido pelos próprios integrantes da banda. O Arraigo disponibilizou em seu site oficial o álbum quase completo para download em MP3 (dez das doze músicas do CD), pra quem quiser conhecer a obra.

Fronteras y Horizontes é um prato cheio para aqueles que gostam de música pesada, mas que também apreciam a liberdade artística. Afinal, o Arraigo bebe da fonte de outros gêneros, e ficar preso a cânones de um estilo é o que menos interessa. A mistura soa coesa e em nenhum momento forçada. É difícil comparar o disco com outras obras, porém, algumas características, como a adesão de instrumentos étnicos, remetem a bandas como o Orphaned Land, por exemplo. Todavia, o mais importante aqui não é encontrar similares, pois, como dito no começo do texto, com relação ao gênero, a sonoridade da banda soa revigorante. 


Em 2012 foram lançados ótimos discos de artistas reconhecidos e de novos nomes. Em minha opinião, o disco deste grupo de Buenos Aires é um dos mais inventivos. Infelizmente, ele não deve estar presente em muitas listas brasileiras divulgadas ainda neste ano. Quem sabe nas próximas.

Nota 10


 
Arraigo é: 


Pablo Trangone: Voz, bumbo legüero, cajón peruano e teclados.
Federico Bertoli: Guitarras, charantarra e vozes.
Leandro Ramogida: Guitarra e vozes.
Javier A. Espeche: Baixo.
Federico Prieto: Bateria e bumbo legüero.
 

Convidados:
Gregorio Medina: Quena e zamponãs.
Cecilia Cedio: Charango.
Enzo Díaz: Güiro
Damián D´Alessandro e Ramiro Boero: Bandoneón.
Santiago Berni e Cristian Culatina: Bumbo com cymbal e caixa.
Ignacio Larrañaga: Celo.
Lirio Maldonado: Bumbo Legüero.
Facundo Cordero: Piano.
César Pavón: Acordeón.
Diego Gvitko: guitarra e guitarrón.
Tiziana, Sasha y Gabriel Juarez: Gritos em Gritos del sótano
Carlos Funes, Leonel Vieytes Bartolomucci, Matías Moyano Villanueva, Pablo del Pino: Coros em Cadenas y Antifaces
Matías Moyano Villanueva: Arranjos em Cadenas y Antifaces.

Escute se você gosta do trabalho feito por bandas como: Orphaned Land, Opeth, Huaska, El Efecto, Puya.

(por Eduardo Harry)

Comentários

  1. Parece ser muito interessante a proposta da banda. Vou baixar o cd e dar uma conferida, pois acho o folk metal um dos estilos mais surpreendentes na atualidade.

    Ah, e parabéns pela resenha. A tempos não lia algo tão cativante.

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