26 Bandas para o Matias: D de Deep Purple

Éramos dois. Eu e o Cris. Amigos, adolescentes, e ambos colecionadores de discos. Estávamos descobrindo juntos o mundo do rock, conhecendo novas bandas todas as semanas. E, como tal, trocávamos muitas figurinhas. Eu apresentava novos sons para ele e vice-versa, em uma relação benéfica para ambos.

Então, em um certo dia, fui até sua casa para pegar uns discos emprestados e levar alguns da minha coleção para deixar lá, quando ele veio com o papo: “Tenho uns vinis novos que comprei, acho que você vai gostar”. Sua coleção ficava em cima de um móvel em seu quarto - a minha também -, mas aqueles LPs que ele havia falado não estavam ali, misturados no meio dos outros. Eram discos especiais e estavam em um lugar especial. Ele abriu o guarda-roupa, meteu a mão lá no fundo e pegou um punhado de álbuns. Folhou aqueles títulos e parou em um que me entregou. “Toma, ouve, é demais!”.



Era um álbum duplo com capa marrom. No centro, uma foto dos músicos em cima do palco. Nunca tinha ouvido falar daquela banda, uma tal de Deep Purple. Mas mesmo assim segui a dica e levei o disco pra casa. Cheguei, coloquei pra rodar e deu o que deu: amor à primeira vista.

Aquele som era totalmente diferente de tudo que eu havia escutado até então. Era pesado, mas era solto, repleto de feeling, com improvisações que enfeitiçavam. “Highway Star” dava início aos trabalhos com uma espécie de jam, que logo evoluía em uma porradaria antológica, capaz de levantar até defunto. Passada a avalanche, iniciava uma música calma, com acordes vindos de um teclado. Mas, ao contrário do que se poderia supor, aquela faixa dava um giro e se transformava em uma das canções mais pesadas que eu já havia ouvido, com um vocalista ensandecido gritando com todas as suas forças. “Child in Time” logo se transformou em uma das minhas preferidas.

E então você virava o lado e já dava de cara com outro momento pra lá de marcante. “Smoke on the Water” e seu riff clássico entrando em contato pela primeira vez com um adolescente fã de rock é uma das experiências mais intensas que se pode ter. A vida passa a fazer sentido quando descobrimos faixas como essa. Um solo matador de bateria conduzia “The Mule”, que era seguida por “Strange Kind of Woman” e o seu inacreditável duelo entre guitarra e vocal.

E, fechando a audição, aquela que logo se tornou a minha música favorita do Purple: a longa “Space Truckin’”, com solos enormes de teclado que me faziam viajar para universos e dimensões até então inéditas. Talvez tenha nascido aí a minha paixão por faixas longas e repletas de passagens instrumentais. Sim, é bem provável que tudo tenha nascido aí.



Escutei por uns dias o Made in Japan e gravei uma fita k7 antes de devolver o LP para o Cris. Na busca seguinte por discos, encontrei o duplo Anthology em uma loja e comprei na hora. A capa era preta e também tinha uma foto da banda em cima do palco no centro. Mas aqui descobri que aquele grupo era bem mais do que eu imaginava. Havia sons que remetiam diretamente aos anos 1960 como “Hush” e “Emmaretta”, versões de estúdio de canções que eu já conhecia como “Child in Time” e “Highway Star” e um novo som, totalmente diferente e que me fisgou na hora, cujos principais exemplos eram “Might Just Take Your Life” e “You Keep On Moving”.

O passo seguinte foi outro disco ao vivo, e com outra capa com uma foto do grupo em seu centro. Ela era cinza agora, e se chamava Made in Europe. Meu deus, que arregaço! Apenas cinco músicas, todas até então inéditas para mim. “Burn”, “Mistreated”, “Lady Double Dealer”, “You Fool No One” e “Stormbringer” me mostraram uma nova faceta do Deep Purple, e essa sonoridade logo se tornou a minha favorita. E o que era aquele solo de guitarra em “Mistreated”? Subitamente, Ritchie Blackmore era o meu novo deus.

O interessante dessa minha primeira fase com o Deep Purple é que toda a relação que construí com a banda na adolescência foi baseada em discos ao vivo e em coletâneas. Aterrisaram na minha coleção, além dos já citados, os LPs Powerhouse (1977), Singles A’s & B’s (a primeira versão lançada em 1978 e com uma modelo vestida com um maiô púrpura na capa), Deepest Purple (1980) Deep Purple in Concert (1980), Live in London (1982) e Nobody’s Perfect (1988). Estava tudo ali, e aquilo era o suficiente para aquela época da minha vida.



Segui tendo contato quase diário com a banda, seja através dos discos que possuía ou com a minha turma de amigos, onde o Purple era onipresente. Mas algo foi mudando na minha percepção. À medida que crescia, a produção da MK II foi se afastando do meu aparelho de som, muito provavelmente pela mega exposição que aquelas músicas tiveram durante vários anos em minha vida. Mas isso não significava um afastamento do Purple, muito pelo contrário. Em seu lugar, emergiu a descoberta e a identificação profunda com três álbuns excelentes, e que são já há muitos anos os meus favoritos do grupo: Burn (1974), Stormbringer (1974) e Come Taste the Band (1975). A união entre o peso do hard rock e o balanço do funk caiu de maneira definitiva no meu gosto, e de lá nunca mais saiu.

Hoje, quando quero ouvir algo do Purple, recorro a esses três discos. Na verdade, Stormbringer e Come Taste the Band frequentam de maneira assídua a minha vida, batendo ponto constantemente em minhas audições. Não acompanho a fase atual da banda, não tenho interesse no que eles estão produzindo, não faz a minha cabeça. Mas a produção entre 1974 e 1975 soa atual e sempre renovada para os meus ouvidos.

O Deep Purple ainda não chegou até o Matias. Ele ainda não descobriu a banda. E, sei lá, talvez a descubra só daqui alguns anos, quando estiver mais crescidinho. Ele tem apenas 4 anos agora, quase 5, com um longo tempo ainda pela frente. Mas é certo que o riff de “Smoke on the Water” ou os gritos de “Child in Time” não passarão incólumes pela sua vida. E a razão para isso é bem simples: descobrir e ouvir o Deep Purple pela primeira vez é como ter contato com uma disciplina fundamental da sua vida, da sua educação, como português ou matemática. A vida passa a ter mais sentido, fica mais completa, revela toda uma nova gama de cores.

Assim é o Deep Purple, e isso é algo tão certo quanto o frio na barriga na primeira paixão e o gosto do primeiro beijo: não tem como esquecer.

Por Ricardo Seelig

Comentários

  1. O Deep Purple é a típica banda 3 em 1...melhor 5,6, 7 em 1 ...nunca vi uma entidade tão mutante no rock/heavy ... do som psicodélico do inicio de carreira...passando por uma espécie de jazz metal (rs rs rs)...música clássica...funk...soul...heavy metal...AOR... até o hard extremamente técnico dos dias de hj... acho que nenhuma outra mudou tanto

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  2. Como diria o Alex: "Posta um comentário", daí vim eu aqui e... Postei.

    Obrigado.

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