Bruce Springsteen: crítica de High Hopes (2014)

No futebol, quando um jogador está vivendo uma fase onde tudo dá certo, onde basta a bola bater em seu corpo que já entra, há uma gíria que define esse momento: ele está “fedendo” gol. É um termo pitoresco mas totalmente apropriado, que usa a linguagem popular para explicar, de maneira simples e direta, a fase iluminada que o atleta vive.

Na música, Bruce Springsteen atravessa algo semelhante há mais de uma década. Desde The Rising, disco lançado em 2002, Bruce está “fedendo” música. Não que não estivesse antes, mas a solidez e a constância encontradas nos oito álbuns lançados por Springsteen no período fazem com que o seu momento atual possa ser classificado, sem exagero algum, como um dos mais criativos de sua longa trajetória.

A música de Bruce Springsteen começou a fazer sentido para mim em 2006, e não foi através de suas próprias ideias, mas sim por meio das composições de outro artista. É claro que eu conhecia e já havia tido contato com inúmeras faixas do filho mais ilustre de New Jersey, mas foi com o álbum We Shall Overcome: The Seeger Sessions que as coisas mudaram de figura para este escriba. A maneira arrebatadora com que Bruce reinterpretou o catálogo de Seeger, um dos principais nomes da música tradicional norte-americana, fez não apenas com que este disco figurasse fácil entre os meus preferidos mas, principalmente, me levou até a obra de Springsteen de maneira definitiva. Desde então, acompanho com expectativa, alegria e uma inevitável satisfação cada novo lançamento seu. Foi assim com Magic (2007), Working on a Dream (2009) e Wrecking Ball (2012). E, para minha alegria, essa sensação se repetiu com High Hopes (2014).

O novo álbum de Bruce Springsteen, o décimo-oitavo de sua discografia, traz doze faixas. Destas, nove são composições que estavam no arquivo de Springsteen - algumas já haviam sido registradas, outras não -, e três são de outros autores: “High Hopes” (Tim Scott McConnell), “Just Like Fire Would” (Chris Bailey) e “Dream Baby Dream” (Martin Rev e Alan Vega). Como cereja do bolo de todo o projeto, um toque de mestre: Steven Van Zandt, o guitarrista titular da E Street Band (para quem não sabe, a banda que acompanha The Boss há décadas), também é ator (assista a cultuada série The Sopranos e encontre-o por lá) e está trabalhando em uma nova série de TV intitulada Lillyhammer. Para o seu lugar, Bruce chamou um dos instrumentistas mais originais da história da guitarra: Tom Morello, do Rage Against the Machine, que toca em dez das doze faixas. A adição de Morello à azeitadíssima E Street Band é um dos fatores responsáveis por fazer High Hopes elevar-se a um nível superior, mantendo a alta qualidade dos trabalhos lançados por Springsteen nos anos 2000.

Isso fica claro em canções como a excelente faixa-título, que abre o CD com a exuberância musical habitual da E Street Band - fato comprovado nos incríveis shows realizados por Bruce no Brasil em 2013. E, já de saída, percebe-se o quanto a contribuição de Morello é decisiva para High Hopes, com intervenções certeiras nas bases e solos cheio de melodia e personalidade. Levando o ouvinte através de composições de alto quilate como “Harry’s Place”, “American Skin (41 Shots)”, “Heaven’s Wall” e “Frankie Fell in Love”, Springsteen consegue emocionar até quando apela para o sentimentalismo barato de “Dream Baby Dream”, composição mediana que encerra o álbum.

Mas o grande momento de High Hopes, lado a lado com a faixa-título, não poderia ser outro a não ser a releitura de “The Ghost of Tom Joad”, uma das melhores canções que Bruce Springsteen deu ao mundo. Lançada originalmente em 1995 no álbum que a batiza, a faixa foi inspirada na composição homônima de Woody Guthrie e traz uma das letras mais inspiradas do artista. Ela é o elo que liga Springsteen a Morello, pois o Rage Against the Machine a regravou no álbum de covers Renegades (1997). O que Bruce e Tom fazem com “The Ghost of Tom Joad” é admirável, conduzindo a canção ao paraíso alternando-se nos vocais e com solos de guitarra em dueto que soam absolutamente brilhantes e arrepiantes. Sozinha, essa versão de “The Ghost of Tom Joad” já seria capaz de sustentar o álbum completo, mas, para alegria de quem gosta de música, o disco vai além.

High Hopes é mais um capítulo inspirado da discografia de Bruce Springsteen, e um dos documentos da esplêndida e iluminada fase vivida pelo músico norte-americano nos últimos anos, com álbuns excelentes e shows antológicos em todo o planeta. Bruce é hoje uma das mais perfeitas traduções do poder transformador da música, em como a arte pode mudar a vida de milhões de pessoas ao redor do planeta. Como um líder conduzindo seus soldados, Springsteen marcha impávido e colosso mundo afora colocando sorrisos no rosto das pessoas e enchendo de cores os dias cinzentos com uma bagagem carregada por toneladas de criatividade, sentimento e inspiração. Neste sentido, um álbum com o título de grandes esperanças não poderia soar mais apropriado.

Nota 8

Faixas
1 High Hopes
2 Harry’s Place
3 American Skin (41 Shots)
4 Just Like Fire Would
5 Down in the Hole
6 Heaven’s Wall
7 Frankie Fell in Love
8 This is Your Sword
9 Hunter of Invisible Game
10 The Ghost of Tom Joad
11 The Wall
12 Dream Baby Dream

Por Ricardo Seelig

Comentários

  1. Esse álbum ficou sensacional! E, no todo, superou o anterior. Por conta dele, fui conhecer Working on a Dream e Magic, os quais eu também adorei.

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  2. Excelente artigo!!

    Típico artigo que faz com que a percepção sobre a obra mude, sabendo desses bastidores, e faça com que uma segunda ouvida seja obrigatória.

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  3. Para um excelente album, um excelente texto! Parabéns Ricardo Seelig.

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  4. Bruce, geralmente, não decepciona. Agora citar que "Dream Baby Dream" é sentimentalóide é, no mínimo, equivocado. Pelo menos, não a versão original do Suicide.

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  5. Na minha opinião a versão do Bruce ficou mela cueca, Fabio.

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