Alcest: crítica de Shelter (2014)



Não simplesmente uma manifestação musical, o Alcest é desde a sua concepção um instrumento artístico de Stéphane “Neige” Paut, a ferramenta utilizada para descrever experiências que ele define como jornadas vividas em um sonho, em outro mundo durante a sua infância. Este conceito foi cada vez mais desenvolvido na combinação com o black metal em suas interpretações mais etéreas e atmosféricas, enveredado com as harmonias provenientes das influencias do post-rock e do shoegaze, resultando na fórmula que explica como cada um de seus discos foi cada vez mais cultuado ao longo dos anos.


E menos de dois anos após seu último álbum, Les Voyages de l’Âme, Neige e o baterista Winterhalter passaram dois meses no estúdio islandês Sundlaugin (que pertence ao Sigur Rós) acompanhados do produtor Birgir Jón Birgisson. Invariavelmente, tanto a cultura quanto o clima e a paisagem da isolada ilha serviram como inspiração para o que é apresentado em Shelter, quarto álbum do Alcest, lançado em janeiro pela Prophecy Productions. E isto se torna claro logo aos primeiros segundos.


Como se flutuando vagarosamente no oceano, aonde permaneceu estático durante incontáveis eras, sendo carregado sem rumo pelo movimento das águas, “Wings” é conduzida por vozes que lentamente se erguem até o inevitável despertar no início de “Opale”. Deixando a sensação de ter acordado perdido, ainda desnorteado entre o mundo desperto e o onírico, percebendo que o ar começa a lhe faltar, a faixa é praticamente a busca pela superfície e a retomada pelo controle enquanto os pulmões voltam a se encher e você boia, apenas olhando o sol em um céu límpido.


A insistente melodia em “La Nuit Marche Avec Moi” acelera o andamento dos eventos, como um turbilhão de lembranças voltando ao cérebro enquanto se olha ao redor desesperadamente em busca de um destino, e de alguma memória mais palpável. “Voix Sereine” é como o fim de uma exaustiva jornada, aonde estafado tanto física quando psicologicamente, alcança-se a terra firme depois de quase desistir e ser tragado mais uma vez pelo mar.


Interessante notar que até este momento, por mais suave e contemplativo que o Alcest esteja se apresentando, com as camadas atmosféricas de guitarra apenas criando um pano de fundo para as ecoantes melodias e a voz em sua interpretação cada vez mais etérea, em questão de imersão a experiência ao redor de um trabalho dos franceses permanece o mesmo.


Uma mudança de ato, “L’éveil des Muses” resgata um pouco do clima mais negativista presente nas obras anteriores, mas dentro da proposta de remodelar a sonoridade do grupo, um choque de realidade ao perceber que se encontra em um interminável deserto, um caminho incerto, quando voltar não é mais uma opção. Seguindo com um dos mais bonitos trabalhos instrumentais do disco, a faixa título carrega certo tom de nostalgia, como se fizesse referência ao próprio início, mas que de alguma forma também visualiza-se no futuro (ou ao menos se espera).


Contando com a participação de Neil Halstead, vocalista e guitarrista do Slowdive (banda apontada como a maior influência durante a concepção deste álbum - e que se reuniu recentemente, aliás), “Away” é uma balada que foge um pouco do molde do restante das faixas presentes aqui, tomando caminhos baseados no escapismo que os acordes acústicos conseguem proporcionar por si só.


A jornada se encerra com o crescendo de “Déliverance”, um contemplativo clímax que não apenas resume tudo o que foi apresentado ao longo de cada música, mas que de alguma forma também soa como o objetivo final, como o grande propósito da obra, apoiado em todas as outras. Não coincidentemente, a impressão de estar perante um abismo sem fim, apenas observando o horizonte dividido pelo céu e o mar cresce a cada mudança de andamento em seus dez minutos que fecham o disco.


Shelter representa muito mais do que uma mudança no paradigma sonoro do Alcest. Não apenas a banda inicia um processo traumático (mas recompensador) de desconstrução da sua identidade ao fazer referência à simplicidade apresentada no início da carreira, como volta ao básico para iniciar uma viagem completamente nova. Essa intenção talvez explique como cada composição parece estreitamente ligada a um sentimento de nostalgia, memórias de tempos mais simples, que, se encarado como tal, promovem a criação de imagens mentais adaptadas a realidade de cada um.


A escolha por abandonar os elementos mais extremos, do trabalho de vozes aos blastbeats, assim como a complexidade estrutural (predominante em Les Voyages de l’Âme) afastam cada vez mais da explorada fórmula do post-black metal/blackgaze, porém em nenhum momento em detrimento das melodias, que ganham ainda mais destaque sobre as etéreas e crepusculares camadas que acompanham todo o disco.


Neige recentemente declarou que não consegue vislumbrar o Alcest abordando o black metal em sua sonoridade novamente. E se esta nova jornada mantiver o nível de imersão e qualidade de Shelter, o mais belo álbum de 2014 até o momento, há todo um oceano à frente a ser explorado pelos franceses.


Nota 9


Faixas:
1 Wings
2 Opale
3 La Nuit Marche Avec Moi
4 Voix Sereine
5 L’éveil des Muses
6 Shelter
7 Away
8 Déliverance


Por Rodrigo Carvalho

Comentários

  1. Realmente, impressionante este disco. Não conhecia a fundo o som deste grupo, mas me interessei bastante!

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  2. Excelente! Uma banda original e ousada, que entende sua música como arte e não como religião ou ideologia, como mutas bandas oriundas do black metal. Nota 10!

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