Cynic: crítica de Kindly Bent to Free Us (2014)



O Cynic é uma banda de contratempos. Seja em sua proposta musical, ou em sua trajetória ao longo dos anos. Afinal de contas, entre a sua idealização em 1987 até o retorno das atividades em 2006 transcorreram-se praticamente duas décadas, durante as quais Paul Masvidal e Sean Reinert não apenas estiveram envolvidos em inúmeros projetos, como deixaram um legado ao heavy metal com Focus, trabalho de estreia da banda em 1993, considerado um dos marcos mais importantes do progressivo – e cuja história daria facilmente um texto a parte.

Acompanhados do baixista Sean Malone, o grupo vem caminhando em marcha lenta desde a reunião, tendo lançado o álbum Traced In Air em 2008, seguido por Re-Traced e Carbon-Based Anatomy, dois anos depois. Porém, esse grande espaço de tempo é justificado pela proposta adotada pelo Cynic, que pretende não apenas repetir a exaustão o que já foi feito em seu debut, mas estar constantemente se reinventando e aglomerando novas influências ao redor de sua música. O novo resultado desta postura está em Kindly Bent To Free Us, terceiro álbum dos americanos, lançado pela Season of Mist no dia 14 de fevereiro.

Seguindo o fluxo de pensamento apresentado nos dois recentes EPs, há uma harmonia principal em “True Hallucination Speak”, um trilho que serve de guia para qualquer exacerbação virtuosa que possa ocorrer por todo o álbum. E talvez esta simplicidade na linha comum seja o segredo para manter os eixos um tanto quanto menos dinâmicos, ainda que a técnica instrumental ainda esteja ali. Ao mesmo tempo em que o lado mais extremo ecoa de forma distante pelo espaço, a miríade de camadas construídas pelas linhas dos instrumentos não ergue-se apenas em cima da complexidade rítmica. De estruturas muito mais simples, mas ainda próxima ao rock progressivo conduzido pela veia jazz, “The Lion’s Roar” soa tão semelhante à primeira faixa, que chega a ser fácil achar que o álbum ainda não avançou.

A faixa-título, porém, cria uma ambientação flutuante, resgatando um pouco dos ritmos mais velozes ao mesmo tempo em que incorpora bem vindas trilhas espaciais, deixando aquela sempre incomoda sensação de estar vagando completamente desorientado pelo universo. O tom cósmico praticamente assombra cada segundo do álbum, ainda mais palpável na sugestiva “Infinite Shapes” e suas intervenções psicodélicas trazidas pelos timbres sintetizados, assim como em “Moon Heart Sun Head” e o relativo resgate da sonoridade de Traced In Air (o interlúdio com discurso de Alan Watts torna tudo ainda mais profundo, diga-se de passagem).

Novamente adepta da simplicidade, “Gitanjali” é um dos momentos mais amigáveis aos menos habituados à proposta do Cynic, com mudanças de andamento facilmente identificáveis, sem se desligar das impressões alienígenas que o álbum construiu até o momento. “Holy Fallout”, por outro lado, chega a soar inexplicavelmente difícil de ser acompanhada no decorrer de seus quase sete minutos, devido à sucessão instrumental quase desconexa, que muda como uma incontrolável sequencia de reações químicas, sob um jogo de vozes ainda mais hipnótico.

Aproximando perigosamente do post-rock e no formato de uma canção de ninar, o álbum encerra com “Endlessly Bountiful” e seus ruídos e melodias que abandonam para trás a sensação de estar atravessando as últimas fronteiras do universo enquanto lentamente se desintegra, restando apenas poeira ao passo em que a música diminui.

Tratando-se de um álbum do Cynic, tudo parece em seu devido lugar: eles deixaram de ser uma banda de heavy metal com influência de jazz e progressivo há muito tempo, para se tornarem uma banda de jazz e rock progressivo que acidentalmente inclui elementos próprios do heavy metal em sua música. E neste quesito, Kindly Bent To Free Us consegue ir a locais até então inexplorados pelo trio, embora fosse um rumo já esperado considerando o desenrolar de seus últimos trabalhos.

Muito mais atmosférico, preocupado em criar a ambientação necessária para a sua exploração musical, eventualmente desacelerando o excesso técnico (considerando de quem estamos falando, você já deve imaginar que o resultado não é exatamente simples), o grupo esbarra em diversos momentos com as interestelares camadas características de um space rock, com serenidade típica do que o post-rock desenvolveu ao longo dos anos. As linhas vocais e de vocoder, como se em câmera lenta, catalisam o efeito hipnótico da música ao ser combinada nos diversos níveis sonoros. Porém, a linha guia que percorre todo o disco, acaba por deixar uma impressão de homogeneidade, uma constância que por mais condizente que seja com a sensação de estar perdido no espaço, parece tornar o álbum muito mais longo do que realmente é.

O Cynic sempre foi notável por ser uma banda desafiadora, claro. E Kindly Bent To Free Us permanece com esta mesma ideia, em cada uma de suas músicas, que soam individualmente impecáveis, mas enfrentam um sério problema ao funcionar como um todo. Mesmo contando com alguns memoráveis momentos e a execução técnica sempre perfeita, ainda parece faltar algo que preencha alguns espaços vazios entre as composições. Algo que complete os conceitos líricos e transmita um sentimento forte o suficiente para que a experiência não pareça interminável e incômoda às nossas mentes. Falta uma alma que as conecte.

Não encare como a mais agradável das jornadas. Ainda não sabemos se ela tem volta.

Nota 7

Faixas:
1 True Hallucination Speak
2 The Lion’s Roar
3 Kindly Bent To Free Us
4 Infinite Shapes
5 Moon Heart Sun Head
6 Gitanjali
7 Holy Fallout
8 Endlessly Bountiful

Por Rodrigo Carvalho

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