A história de Betty Davis, o furacão que mudou a vida de Miles Davis

Linda, sensual e com uma voz única, Betty Davis é uma das figuras mais influentes da história do funk. Nomes hoje consagrados como Red Hot Chili Peppers, Prince, The Roots, Rick James, Outkast, Erykah Badu e Macy Gray apresentam inegável influência da música repleta de personalidade e sensualidade da cantora, e não soariam como soam hoje caso Betty Davis não tivesse existido.

Nascida em 26 de julho de 1945 na cidade de Durham, no estado norte-americano da Carolina do Norte, Betty Mabry (seu sobrenome de batismo) mudou-se para Nova York no início da década de 60 e lá começou a trabalhar como modelo, realizando editoriais para revistas como Seventeen, Ebony e Glamour. O trabalho como modelo a projetou no cenário de celebridades da Big Apple, e a partir de 1966 Betty passou a frequentar as festas mais disputadas da cidade. Foi nesses eventos badalados que a bela modelo topou com artistas do porte de Sly Stone, Jimi Hendrix e Miles Davis, encontros que mudaram a sua vida para sempre.

A afinidade com Hendrix e Miles foi quase instantânea. Logo transformou-se em grande amiga do primeiro, fazendo parte do seu círculo íntimo. Em relação a Miles, a amizade evoluiu para um tórrido romance e os dois acabaram se casando em setembro de 1968. Com o casamento, Betty alterou o seu sobrenome para Davis, enquanto Miles mergulhou em uma das fases mais criativas e inovadoras de sua longa carreira.


O impacto do relacionamento entre Miles e Betty pode ser sentido com bastante evidência na trajetória do mítico trompetista. O álbum Filles de Kilimanjaro, lançado em 29 de janeiro de 1969, traz uma foto de Betty Davis na capa, além de uma faixa chamada "Mademoiselle Mabry (Miss Mabry)", gravada no mesmo mês do casamento dos dois e dedicada à cantora. Em sua autobiografia, Miles Davis credita a Betty, sua segunda esposa, a semente fundamental que o levou a explorar novos caminhos musicais no final dos anos sessenta, apresentando-o ao rock psicodélico da Jimi Hendrix Experience e ao funk inovador de Sly & Family Stone. A influência da música de Hendrix e de Stone na obra de Miles pode ser sentida em toda a sua plenitude no fantástico álbum duplo Bitches Brew, lançado em abril de 1970. Nesse disco, Miles Davis reinventou sua música, fundindo o jazz ao rock e ao funk em um trabalho que é considerado por muitos como o responsável pela criação de um novo gênero, o fusion.

Betty Davis também influenciou o visual de Miles no período em que esteve casa com o músico. Seu cabelereiro e seu estilista transformaram-se também no cabelereiro e no estilista de Miles, renovando a imagem e o figurino do trompetista, que passou a desfilar com um visual que refletia as inovações sonoras que estava produzindo naqueles anos, contrastando com o modo de vestir sóbrio e elegante dos tempos de Kind of Blue, de 1959.

O casamento chegou ao fim devido aos boatos e às desconfianças de Miles a respeito de um provável caso de Betty com Jimi Hendrix, affair esse sempre negado pela cantora. O fato é que Miles e Hendrix haviam se aproximado bastante e alimentavam a ideia de gravar juntos, plano esse que não se concretizou devido à morte precoce do genial guitarrista, em 28 de setembro de 1970.


Com a separação, Betty Davis mudou-se para Londres, onde retomou a sua carreira de modelo. Os anos ao lado de Miles fizeram com que Betty, que sempre gostou de música, se interessasse ainda mais pela coisa, e ela começou a compor algumas canções ainda na Inglaterra. De volta aos Estados Unidos, rumou para Los Angeles com a intenção de gravar um álbum ao lado do guitarrista Carlos Santana, mas isso acabou não acontecendo. A cantora, então, reuniu um grupo de talentosos músicos de funk da costa oeste e, com a ajuda de feras como Neal Schon (na época na banda de Santana), Larry Graham, Sylvester e as Pointer Sisters, registrou as canções que iriam fazer parte de seu primeiro álbum.

Lançado em 1973, Betty Davis, o disco, é um clássico incontestável do funk setentista. A principal característica do play é a alquimia perfeita entre grooves cheios de balanço e guitarras pesadas, como fica claro na faixa de abertura, a antológica "If I´m Luck I Might Get Picked Up". A voz de Betty varia entre momentos mais raivosos e gritados (como na já citada faixa que abre o disco) e outros mais sensuais e sussurrados, como em "Anti-Love Song". Outros destaques são "Walkin´ Up the Road", "Your Man, My Man", "Steppin´ in Her I Miller Shoes" (que fala sobre uma jovem garota vinda do interior com grandes sonhos, mas que acaba sendo vítima da indústria do entretenimento - segundo a própria Betty, a música fala de Devon Wilson, que namorou Jimi Hendrix no período em que o guitarrista e Betty eram grandes amigos. Wilson também foi homenageada por Hendrix na canção "Angel") e "Game is My Middle Name".


O álbum gerou reações contraditórias na imprensa. Ao mesmo tempo em que elogiavam os dotes vocais de Betty e o talento dos músicos de sua banda, os críticos reclamavam das letras sugestivas, repletas de insinuações sexuais, e da própria postura de Betty Davis, sexualmente explícita. Lembrem-se: estamos falando de uma cantora negra no início dos anos setenta nos Estados Unidos, falando abertamente de sexo. Imaginem só o reboliço que isso não causou!

O disco gerou dois singles, "If I´m Luck I Might Get Picked Up / Steppin´ In Her I Miller Shoes" e "Ooh Yeah / In the Meantime". "If I´m Luck I Might Get Picked Up" tocou bastante nas rádios, indo além dos limites da audiência negra. Mesmo assim, o trabalho não vendeu muito e acabou ficando fora de catálogo por quase vinte anos, até ser relançado em 1993 pelo selo Vinil Experience em CD e LP. Em 2007 o álbum ganhou uma bela versão em CD e LP pela gravadora Light in the Attic, que trouxe como bônus três faixas - "Come Take Me", "You Won´t See Me in the Morning" e "I Will Take That Ride".


Em 1974 chegou às lojas o seu segundo álbum, com o provocativo título de They Say I´m Different, embalado em uma capa onde Betty está vestida com um figurino que remete à mitologia egípcia. Menos rock e mais funk que a estreia, They Say I´m Different abre com a sensualíssima "Shoo-B-Doop and Cop Him", recheada pelos vocais manhosos da cantora. Esse segundo disco mantém a consistência do trabalho de Betty Davis e apresenta várias faixas de destaque, como a já citada "Shoo-B-Doop and Cop Him", "He Was a Big Freak", a sensacional "Don´t Call Her No Tramp", "70´s Blues", a balada "Special People" e a poderosa faixa-título.

Foi lançado apenas um single para o play, da faixa "Git in There", e a boa repercussão do álbum, aliada às performáticas apresentações ao vivo de Betty, fizeram seu nome crescer bastante entre os aficcionados pelo funk e pela então nascente cultura da dança, que levava multidões de jovens aos clubes noturnos de Nova York naquela primeira metade dos anos setenta e que culminaria, alguns anos mais tarde, com o surgimento da disco music.

O impacto positivo fez com que Betty Davis fosse contratada pela Island Records, deixando a Just Sunshine, gravadora que havia lançado seus dois primeiros discos. A estreia da cantora em uma major ocorreu com o lançamento de Nasty Gal, em 1975. O álbum mantém as características marcantes dos dois primeiros trabalhos, acrescentando marcantes tintas psicodélicas ao funk rock sensual de Betty. A capa explorava mais uma vez seu sex appeal, e o conteúdo do disco deixava isso ainda mais evidente. Entre as dez faixas do play, destaco a que dá nome ao álbum, "Talkin´ Trash", "Dedicated to the Press", a espetacular "F.U.N.K." - uma paulada visivelmente influenciada por Jimi Hendrix, e onde Betty clama pela presença do guitarrista de forma personalíssima -, a contagiante "Shut Off the Lights" e "This is It!". Dois singles foram lançados - "Shut Off the Lights / He Was a Big Freak" e "Talkin´ Trash / You and I" -, sendo que "Shut Off the Lights" tornou-se uma faixa obrigatória nos sets dos DJs mais antenados daquela época.

Ao mesmo tempo em que caía na graça de DJs e da juventude mais mente aberta, Betty Davis sofria críticas e boicotes por parte de grupos religiosos conservadores, que não gostavam nada de sua atitude abertamente sexual e de suas performances provocativas em cima dos palcos. Betty gravou em 1976 seu quarto álbum, Crashin´ from Passion, mas o trabalho não chegou a ser lançado. Desanimada, a cantora retirou-se da cena musical.


Com o passar dos anos os discos de Betty Davis foram redescobertos por colecionadores de todo o mundo, e um culto em torno da cantora começou a surgir. Esse renascimento alcançou o seu ápice em 1 de maio de 2007, quando a gravadora Light in the Attic Records relançou os dois primeiros LPs, Betty Davis e They Say I´m Different. A demanda foi tamanha que a Light in the Attic repetiu a dose em 2009, recolocando no mercado o terceiro disco de Betty, Nasty Gal, e o até então quarto trabalho dela, cujo título original era Crashin´ from Passion mas que foi relançado como Is It Love or Desire?. Todos esses relançamentos foram remasterizados e incluem extensos encartes com muitas informações. Um fato interessante é que Crashin´ from Passion, considerado por uma grande parcela dos críticos e pelos próprios músicos que o gravaram como o melhor trabalho da carreira de Betty, não viu a luz do dia por longos 33 anos, já que foi gravado em 1976 e lançado apenas em 2009. Para quem se interessar, em 2000 foi lançada uma excelente coletânea chamada Anti-Love: The Best of Betty Davis, que serve como perfeita introdução ao universo sonoro da cantora.

Betty Davis é, indiscutivelmente, uma das artistas mais influentes surgidas nos anos 1960 e 1970. Figura fundamental na transformação estética e sonora de Miles Davis, mutação essa que gerou obras-primas como In a Silent Way, Bitches Brew e Tribute to Jack Johnson, possui também uma ótima, apesar de curta, carreira solo, com discos sensacionais que merecem ser descobertos por toda e qualquer pessoa que gosta de música. Se você é uma delas, mergulhe agora mesmo em seus discos e descubra um universo repleto de balanço, groove e muita sensualidade.

Comentários

  1. Uaalll muito obrigado pela postagem....eu conheci ela esse ano e estou louco com essa mulher rs...grande influência 😉

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  2. Betty Davis foi uma alquimista musical ,descontruiu e reconstruiu o que já existia musicalmente. Influencio a liberdade de direito feminista, através de seu poder construtivo imaginário musical.
    simplesmente fantástico.

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