Discoteca Básica Bizz #028: Patti Smith - Horses (1975)



Ao contrário do que muita gente pensa, 1975 foi um ano de grandes discos - Physical Graffiti, Natty Dread, Radio-Activity, Another Green World (todos já comentados nesta seção), Live! (Marvin Gaye), Siren (Roxy Music) e Young Americans (Bowie). Todos estes, porém, de grandes artesãos pop em plena maturidade. O que tem essa estreia de Ms. Smith para entrar de sola, em pé de igualdade, com esses (veneráveis) medalhões e virar a mesa?

Ms. Smith, para começar, não tinha mais nada de verde ou inocente (28 anos no lançamento de "Piss Factory", seu primeiro compacto, independente, em 1974). A mitificação "alta sacerdotisa do punk", que acabaria recebendo, é uma camisa-de-força insuficiente para englobar os 1002 universos de suas obras - musicais e/ou poéticas - e toda a influência sobre a geração posterior. Sem ela, não existiriam nem os Banshees nem o U2, para citar só os mais disparatados entre si.

Back to 75. Apesar de bem recebido pela crítica, toda a baba do ano escorreu em cima de Born to Run, manifesto beat requentado do big boss Bruce Springsteen. Patti já era conhecida do meio - desde 1971 fazia críticas e entrevistas para as revistas Creem e Rolling Stone. Tinha três livros de poesia publicados. De vez em quando fazia uma noitada na igreja de St. Mark, no Bowery, declamando seus escritos com acompanhamento da guitarra de Lenny Kaye, colega de jornalismo musical e especialista em reggae e psicodelismo de garagem (foi, mais recentemente, o compilador da série de coletâneas Nuggets e Pebbles, inventário do melhor trash feito nos EUA nos anos 1960).

"Piss Factory" ("Fábrica de Mijo") causara um furor no pequeno circuito que se formava no Bowery - a new wave nascente. Consta que Lou Reed teve de gastar muita saliva para convencer Clive Davis, presidente do selo Arista, a contratar o que já era a essa altura a Patti Smith Band (além de Kaye: Richard Sohl, piano; Ivan Kral, guitarra e baixo; e Jay Dee Daugherty, bateria).


Horses abre com Patti declamando sobre o piano de Sohl: "Jesus morreu pelos pecados de outras pessoas, pelos meus não... espessa, pedra quente, - meu pecado é só meu, eles pertencem a mim." Vai entrando a guitarra de Kaye, punkificando um riff de três acordes que é "Gloria" - original de Van Morrison (1965) que representa para o pop o que Lolita é para a literatura. Uma colegial que não tem medo nem vergonha de sair atrás do que deseja. Patti estende, estica, entra em detalhes e revira a letra, entrando na mente de Gloria e deixando para trás a de Morrison, o autor (há outra versão, improvisada pelos Doors numa passagem de som e que só viria à tona com o lançamento de Alive! She Cried).

"Está na hora de decifrar o que aconteceu nos anos sessenta, estou trabalhando nesse elo", ela resumiria em 1976, no lançamento de Radio Ethiopia, dedicado a Rimbaud, Jim Morrison e à rainha de Sabá. Mais que um elo, Horses é o fio da meada. Mas não era o que ela esperava da produção do ex-Velvet John Cale: "Tudo o que estava procurando era alguém que entendesse o lado técnico das coisas. Acabei com um artista totalmente maníaco."

O delírio alucinatório dos poemas remixados a várias vozes passeia ainda pelo reggae e longos épicos com "Birdland" (morte e ascensão de um pai fazendeiro) e os três atos de "Land", a história de Johnny - uma iniciação surrealista em sodomia, drogas pesadas, incesto e autoflagelação -, que a sacerdotisa/poetisa intercala com a história do próprio rock and roll. Para desembocar em "Elegie", evocação dos mártires dos anos 1960, que ela conheceu pessoalmente: Morrison, Brian Jones, Jimi e Janis. Desce o pano.

(Texto escrito por José Augusto Lemos, Bizz#028, novembro de 1987)

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