Discoteca Básica Bizz #048: Prince - Dirty Mind (1980)



Ele entra na década com um salto, um bote. O que diferencia este seu terceiro LP dos dois anteriores? Está na capa, está no título: a definição de uma identidade - ou imagem ? - e, como frisa seu biógrafo Dave Hill, uma atitude. Um ex-menino prodígio enxuga todos os possíveis excessos cabíveis em um multiinstrumentista que é arranjador de sete fôlegos e infinitas filigranas, vocalista de todas as máscaras, gritos e sussurros e seu próprio produtor. Se há algo que incomoda em Dirty Mind - e até compromete em Purple Rain - é a impressão de se ouvir alguém que pode fazer, em música, tudo o que quiser sem o menor esforço para ser o mais contemporâneo, o mais simples e direto - mais pop, enfim - possível.

Tudo isso é verdade, mas se limita ao primeiro lado do disco. A abertura com a faixa-título não deixa dúvidas. Tudo que era difuso no Prince anterior ganha contornos nítidos e, pela primeira vez, a pulsação de baixo, caixa e bumbo vem descarnada e destacada como esqueleto, um chassi aerodinâmico: o groove, a levada, em sua essência. Um susto maior: a óbvia influência da new wave então vigente, ritmo robótico e pop plástico. Uma ousadia perigosa: talvez o primeiro negro a escancarar influências brancas (a faixa seguinte, "When You Were Mine", vai ainda mais fundo: parece puro The B-52's!).

E, voltando à abertura, o que quer esta "mente suja”? Sexo e confronto. Sexo no banco traseiro do carro do papai (dela). Sexo e saúde, perversão sem neurose, liberdade, igualdade. É na terceira faixa, "Do It All Night", que a farra vai começar: sai o rockinho wave e assume o funkaço que se solta, estica, liquefaz; à tona as fontes básicas, a comunhão desvairada na trilha aberta por Sly Stone nos sessenta e George Clinton nos setenta. Prince Rogers Nelson fixa no terceiro ponto uma linha reta e, a partir daí, vai expandi-lo com a mania perfeccionista de quem constrói um universo.



A base está toda no segundo lado - é quase um disco diferente, como se tivesse passado o lado um a dar munição certeira para programadores de FM e, cumprida a missão, soltasse todas as amarras - menos a da dança compulsiva.

São quatro faixas que se fundem num crescendo acumulativo e de tamanha luxúria que seria capaz de levar um convento à orgia, porque ela é a nova utopia. Entre a cruz e o clitóris, Prince não faz nenhuma opção excludente, e ainda enxerga um casamento livre das angústias que esse conflito - na cultura negra americana, presente desde sempre na divisão entre blues e gospel - trazia a um Marvin Gaye, por exemplo.

"Uptown" remete a um lugar, não identificado, qualquer centro de cidade onde haja gente, festa, dança - nos créditos da capa, "gravado em alguma parte de uptown" - uma folia na qual não haja a menor distinção entre sexo e cor. Ela emenda com as duas canções do miolo - "Head" e "Sister" -, que estigmatizam Prince até hoje. Quando você ler o clichê jornalístico "canções que falam de incesto a sexo oral", saiba que são essas duas. Em inglês coloquial, a expressão "give head" ("dar a cabeça") abrange todas as modalidades possíveis de sexo oral. A letra apresenta uma garota - interpretada por Lisa Coleman - que quer casar virgem. Daí a apologia feita por Prince do sexo oral como capaz de satisfazer ambos, com maior prazer (no fim, ele ainda pede desculpas por ejacular no véu do vestido de noiva). Já "Sister" lista as vantagens de se ter uma irmã mais velha, generosa o bastante pra ensinar tudo que um garoto precisa saber. Desse duplo retiro ente quatro paredes vem o transporte para o transe coletivo iniciando em "Uptown".

Dirty Mind encerra com "Partyup", cantos e contracantos de uma nova explosão impossível de ignorar.

(Texto escrito por José Augusto Lemos, Bizz #048, julho de 1989)

Comentários

  1. Grande trabalho musical, onde Prince chega de sola quebrando barreiras e mostrando o que viria nos anos seguintes a Dirty Mind

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Você pode, e deve, manifestar a sua opinião nos comentários. O debate com os leitores, a troca de ideias entre quem escreve e lê, é que torna o nosso trabalho gratificante e recompensador. Porém, assim como respeitamos opiniões diferentes, é vital que você respeite os pensamentos diferentes dos seus.