Discoteca Básica Bizz #054: Can - Tago Mago (1971)



Em seus dez anos de carreira, no período 1968/1978 (reiniciada em 1989 com o álbum Rite Time), o grupo alemão Can sempre operou no plano da sutileza e do fervor instrumental, fazendo uma música hipnótica, com uma impressionante mistura de ritmos e timbres acústicos alterados, tratados eletronicamente.

Editando tapes, fabricando loops (anéis de fita) e incorporando ruídos e interferências espontâneas, o grupo fez a ponte entre a música erudita contemporânea (Stockhausen über alles) e o rock. O Can foi fundo nas colagens, daí sua forte influência detectada nos anos 1980, a década do sampler, em que a habilidade de compor se traduz na de combinar e colar sons.

Se, com a tecnologia atual, é possível processar sons a partir de tudo (um bumbo de John Bonham, um riff de Hendrix, um "Uh!" de James Brown), o Can tecia sua intrincada tapeçaria com cativante rusticidade. Ambientavam o som de seus instrumentos sem qualquer efeito, ensaiando horas para casar timbres. E foi em aparelhos Revox de dois canais que eles gravaram seus cinco primeiros álbuns, sem mesa de som, sem overdubs, tocando ao vivo e direto.

Foi o "impacto rítmico do rock" que levou Irmin Schmidt (teclados) e Holger Czukay (baixo), ambos alunos de Stockhausen, a formarem o grupo com Michael Karoli (guitarra) e Jaki Liebezeit (bateria) em meados de 1968. Passavam horas tocando e gravando em um castelo - cedido por um mecenas - em Colônia, investigando ritmos e sonoridade. Em 1970, depois do segundo LP (Soundtracks), mudaram-se para um estúdio próprio (o Inner Space), recrutaram o japonês Kenji "Damo" Suzuki - encontrado, casualmente, cantando em uma rua - para os vocais e iniciaram a fase mais instigante de sua carreira, que tem no álbum duplo Tago Mago sua expressão mais completa.



Pela duração um pouco menor e pelas melodias mais ou menos assobiáveis, as duas primeiras faixas - "Paperhouse" e "Mushroom"- são as que mais se aproximam do formato canção. O espírito é free, de criação instantânea, mas os ritmos são estruturados basicamente na repetição de uma única levada, numa onda econômica/minimal. Em "Oh Yeah" e na longa "Halleluwah", Liebezeti catalisa suas pesquisas étnicas em ritmos tribais, enquanto Czukay bombeia o pulso e Schmidt e Karoli solam e tremulam como se estivessem vendo coisas.

"Aumgn" - que ocupa todo o lado três - e "Peking O." são as mais descontínuas e coladas, com climas que variam do barulho às frequências mântricas. Em "Peking O.", além das piradas intervenções de Suzuki - com seu bruhahá misto de inglês, japonês e vozes invertidas por técnicas de edição -, há também a curiosa aparição de um ritmo eletrônico (uma rumba de órgão de churrascaria, devidamente distorcida e acelerada). Fechando o álbum há "Bring Me Coffe or Tea", com seu andamento moroso que funciona como um digestivo para as experimentações anteriores.

Tago Mago é um marco na extensa discografia do Can que, até seu recente retorno, totalizava onze álbuns, além de três antologias e três compilações com gravações inéditas. Dentre estas últimas encontram-se surpresas como uma série de temas improvisados sobre ritmos etno/folclóricos arrolados sob a égide de E.F.S./Ethnological Forgery Series (Séries de Falsificações Etnológicas), pesquisa que poderia ser classificada como uma espécie de precursora da world music. Mais um elemento que faz do Can uma das bandas mais visionárias de todos os tempos.

(Texto escrito por Thomas Pappon, Bizz#054, janeiro de 1990)

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