O que é solitude e o que é solidão? Steven Wilson foi atrás da resposta


Se você simplesmente resolvesse sumir do mapa, pegasse suas coisas e partisse sem destino. Ninguém seria avisado e ninguém te veria saindo. Você sairia sem celular, rede social, ou qualquer outra forma de contato.

Quanto tempo levaria para sentirem sua falta? Será que rapidamente estariam te procurando? Questão de horas? Dias? Ou semanas? Quem perceberia primeiro? Um parente? Amigos? Seu chefe?

E se você sumisse e jamais sentissem sua falta? E se ninguém te procurasse?



JOYCE CAROL VINCENT

Parece loucura imaginar isso, né? E parece ainda mais insano quando se cogita a possibilidade de não irem atrás de você. Pois bem. Vou te contar a história da Joyce.

Tudo começa em um flat localizado em um distrito londrino chamado Wood Green. A polícia recebeu uma ordem judicial de invadir esse flat, pois o aluguel dele estava atrasado e a dívida já era bastante alta. A ordem era entrar lá e despejar o proprietário.

Após baterem insistentemente na porta, sem respostas, a solução foi arrombar. Havia alguém lá dentro, dava para ouvir o barulho da TV.

Quando entraram, a surpresa. De fato, a TV estava ligada. E no sofá, havia apenas um esqueleto “assistindo” à TV. Do lado do esqueleto, uma sacola com presentes de Natal, que nunca foram entregues.

Esse esqueleto era Joyce Carol Vincent. Ela morreu enquanto assistia TV no seu apartamento. A causa da morte é indeterminada, já que foi impossível fazer uma autópsia, mas especula-se que tenha sido uma crise de asma.

O mais assustador de tudo é que Joyce já estava morta há quase 3 anos! Isso mesmo. Por quase 3 anos ela não fez contato com absolutamente ninguém, e mesmo assim ninguém foi procurá-la.


DOCUMENTÁRIO DREAMS OF A LIFE

Comovida com a história de Joyce, a cineasta Carol Morley resolveu fazer um documentário sobre a garota. De acordo com a cineasta, a vida de uma pessoa não poderia acabar do jeito que acabou. Joyce precisava ser lembrada.

Daí surge o documentário Dreams of a Life. Nele é mostrada a vida reclusa de Joyce. Poucos amigos próximos e praticamente nenhum contato com a família. Em contrapartida, os presentes de Natal encontrados ao seu lado mostram que ela estava longe de ser um monge.

Mas o mais interessante é que quando eram entrevistados, seus amigos não acreditavam que ela havia morrido, e duvidavam que já havia se passado tanto tempo sem notícias dela. Outros acreditavam que Joyce simplesmente tivesse se mudado, ou então arranjado algo melhor para sua vida, e por isso tinha cortado os laços com o passado.


A RELAÇÃO COM STEVEN WILSON

Bem, não contei toda essa história só para te deixar pensando no significado da vida. Contei pois foi após assistir ao documentário Dreams of a Life que Steven Wilson teve a inspiração para escrever o álbum Hand. Cannot. Erase., lançado em 2015.

Steven Wilson é um nome bastante consolidado na cena prog. Ele é conhecido por seus trabalhos como produtor para algumas grandes bandas como Marillion e Opeth. Além disso, é o vocalista, guitarrista, tecladista e mais um monte de coisa do Porcupine Tree. No entanto, sua carreira solo vem ganhando cada vez mais destaque. Esse é seu quarto álbum, e todos mantém um nível impressionante.

Hand. Cannot. Erase. é um álbum conceitual, inspirado na história de Joyce. Note que inspirado não é baseado. A história que ele conta é diferente, apesar das semelhanças.

Há um livro que acompanha a versão deluxe do álbum. Nele fica claro que a personagem central do álbum é H. (uma versão ficcional de Joyce), nascida em 1978. Filha de uma mãe italiana, H. morre (ou desaparece) em 2014. H. possui uma irmã chamada J., que foi adotada por seus pais um pouco antes do divórcio deles, e um irmão distante. Os presentes de Natal encontrados com Joyce são retratados no álbum como um presente que H. daria para seu irmão distante.

Você pode conferir parte dessa trama criada por Steven Wilson em um blog que ele criou (clique aqui para conferir). Esse blog é um registro da personagem principal e funciona como um diário. Nele são mostradas algumas etapas da vida de H. e suas reflexões.


EXPERIMENTAÇÃO E ELEMENTOS CLÁSSICOS

Musicalmente falando, Hand. Cannot. Erase. é construído de uma maneira no mínimo intrigante. O álbum é recheado de loops, e enquanto possui estruturas extremamente simples em certos momentos, a virtuose e complexidade come solta em outros.

Além da mistura do simples e do complexo, Steven mistura elementos clássicos do rock progressivo com elementos mais modernos, que fizeram muitos fãs mais conservadores torcerem o nariz. Como exemplo desses elementos posso citar a forte influência eletrônica, presente em faixas como "Hand Cannot Erase" e "Perfect Life". Aliás, essa segunda possui grandes trechos em que não é cantada, e sim narrada. Por fim, o flerte com o metal em "Home Invasion" deve ter dado úlcera em muitos proggers conservadores.

Eu vejo toda essa ousadia como algo muito positivo. Os elementos clássicos do progressivo já foram explorados à exaustão, e novidades no gênero são sempre muito bem vindas.


MELANCOLIA E EXAGEROS

Uma interpretação muito comum dos ouvintes de Hand. Cannot. Erase. é a de que o álbum aborda como tema principal a solidão. Até porque a história de Joyce leva a entender esse contexto. Pode ser isso mesmo, mas eu interpreto de forma diferente. É muito mais sobre solitude do que solidão.

Parece a mesma coisa, mas não é. Solitude está muito mais relacionada a uma decisão voluntária e não necessariamente acarreta em solidão e/ou sofrimento.

Solitude ou solidão, uma coisa é certa: Hand. Cannot. Erase. é sentimental, íntimo e melancólico. Aqui vai outro ponto para Steven. Ele consegue criar esse ambiente sem soar exageradamente dramático ou emocional. Ao mesmo tempo em que há um tom reflexivo, há certa frieza.

O exagero acontece na parte instrumental. Já comentei outras vezes: é comum os proggers se perderem na própria virtuosidade. Infelizmente isso acontece nesse disco. Não é dominante, só que acontece. Dessa forma, muitas vezes eu me desconcentrava enquanto ouvia Hand. Cannot. Erase., pois alguns trechos ficavam tão maçantes que facilmente minha atenção se voltava para qualquer outra coisa que não fosse a música. E é logo no começo que temos um grande exemplo dessa situação.


FAIXA POR FAIXA

O disco começa para valer na segunda faixa, após uma música introdutória e instrumental. De maneira delicada, "3 Years Older" levanta memórias da infância da personagem, fazendo algumas misturas com memórias mais recentes. Entre elas o desejo de estar sozinha: “Você encontra uma vida mais simples quando não tem ninguém para compartilhar”. Tudo vai bem até o sétimo minuto. Depois a música persiste em um loop de virtuose que nada acrescenta. São três minutos de firula, e aí sua concentração já foi para o espaço.

Voltando à Terra após um instrumental pé no saco, Steven Wilson apresenta a faixa-título. Há a já mencionada presença de influências eletrônicas e uma levada mais simples. Repare que novamente é citado o desejo de estar só: “Se sentindo culpada por às vezes querer estar sozinha”. Por isso digo e repito: o álbum é muito mais sobre solitude do que solidão!

A boa sequência é mantida com "Perfect Life". É nesse momento que somos apresentados à voz de Katherine Jenkins narrando a relação de H. e J. (sua irmã adotiva).

"Routine" talvez seja um dos momentos mais melancólicos e marcantes de Hand. Cannot. Erase. A música conta a história de uma mãe cuja filha e marido morreram (sim, ela escapa um pouco da história do álbum). "Routine" fala da incapacidade dessa mãe lidar com suas perdas, e como resultado ela mantém sua rotina pré-luto, porque ser mãe era seu único propósito. Durante o refrão quem assume os vocais é a excelente cantora israelense Ninet Tayeb, e é difícil não se emocionar enquanto ela canta “A rotina me mantém na linha / Me ajuda a passar o tempo / Concentrar minha mente / Me ajuda a dormir”.

O quase metal de "Home Invasion" é cortado pela ponte instrumental "Regret #9". E é em "Transience" que temos um retorno ao passado. Dessa vez a infância é lembrada com um misto de saudades e amargura.

Lembrando muito o que era feito nos primeiros álbuns de King Crimson, vem o momento menos inspirado e original do disco. "Ancestral" é quase infinita. Seus 14 minutos viram horas e a música evolui sem propósito. Ok Steven, você tem crédito.

A finalização é em grande estilo. "Happy Returns" é minha música favorita. É nessa faixa que a personagem principal está conversando com seu irmão distante (na verdade ela fala com ela mesma, como se estivesse falando com ele). Então, são mencionados detalhes como os presentes de Natal que nunca foram dados, e uma alta dose de sinceridade quando ela explica os motivos de não vê-lo há tanto tempo (“Eu adoraria dizer que estava ocupada/  Mas isso seria uma mentira / A verdade é que os anos passam como trens/  Eu tento mas eles não freiam”).

Tudo se acaba em "Ascendant Here On … ”. Um clima meio fúnebre com vozes de criança ao fundo. É a clara representação do fim de H. e de sua história.


QUE SEJA

Se for sobre solitude, se for sobre solidão ... que seja. Isso pouco importa. O ponto aqui é a impressionante habilidade de Steven Wilson em causar grande desconforto e uma reflexão sobre como estão aquelas pessoas que você não vê faz tempo, e o porquê de não vê-las com maior frequência.

Pelo contrário, o que vou falar pode parecer clichê, mas quanto mais conectados estamos, mais isolados estamos.

“Another day of life has passed me by; but I have lost all faith in what's outside.”


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