A crise da meia idade da crítica musical


Recentemente o crítico norte-americano Joseph Schafer, da Decibel Magazine, escreveu um texto (brilhantemente traduzido pelo Ricardo Seelig aqui na Collectors) falando sobre a necessidade de transformação da crítica musical. Caminhando para um destino nebuloso – que não conseguimos definir se será o esquecimento, o descrédito ou mesmo a morte –, a crítica vive um momento muito específico, que Schafer ilustra no texto com base na cronologia dos fatos que moldaram a indústria fonográfica na segunda metade do século passado e no início do atual. De forma bastante clara e razoável, ele atribui à crítica o papel realizado pelos algoritmos que indicam toda sorte de produtos na internet, só que em um mercado muito mais específico. Trocando em miúdos: antigamente a crítica te dizia o que comprar, quais eram os lançamentos onde valia a pena enfiar o seu dinheiro sem se arrepender (quando se pagava por um disco e não pelo acesso mensal a todos).

Até aqui, 100% de concordância. 

No entanto, existe um aspecto que merece mais atenção nessa discussão, porque talvez ali resida o cerne do debate: o que é a crítica musical? Nós sabemos o que é a crítica musical? Mais que isso: nós entendemos a crítica musical? Ou nós enxergamos o crítico – qualquer crítico, a palavra crítico – como algo ruim? Pense na imagem do crítico na sua mente e tente não ver um velho rabugento. Difícil, não? Pois é. Temos um bom começo.
Quem é o crítico musical?

Antigamente – não envelhecemos, foram as coisas que mudaram rápido – existiam duas doisas que vendiam muito e que geravam muito, muito dinheiro: discos e publicações impressas. LPs e CDs, jornais e revistas. Hoje, a indústria fonográfica e a mídia impressa ainda movimentam milhões, porém de forma muito mais modesta - ou menos obscena. Dentro dessas indústrias, existia uma correlação: a mídia falava, o disco vendia, o disco vendia, a mídia falava, e assim sucessivamente. Pessoas fizeram fama e fortuna falando de música, pois existia orçamento para isso. Subprodutos dessa relação também surgiram, incluindo o estereótipo do crítico babaca: o cara que falava mal de tudo sempre seria lido, afinal, as pessoas amam ter alguém para odiar. Talvez o artista se manifestasse na edição seguinte, e isso também geraria receita, e assim por diante.  Bons tempos, não? Dá uma saudade até. Mas muita coisa mudou. E a gente precisa entender melhor a crítica musical.

Crítico musical não é mais profissão. 

Hoje, o cara que escreve sobre música não se parece com aquele que habita nosso imaginário. Primeiro porque, em tempos de grana mais curta, não faz sentido pagar alguém pra ser ranzinza (tem gente que faz, aqui no Brasil mesmo, mas é caso raro). Segundo porque, tendo menos gente paga para fazer isso, tem mais gente fazendo para a música e não para manter a própria carreira. A pessoa que vai para a internet publicar uma crítica, uma resenha, uma apreciação, não é necessariamente um profissional. E, honestamente? Isso é bom. Porque distancia o conteúdo do interesse comercial, focando naquilo que realmente interessa: a música. Se foi “o que fulano vai pensar disso”, porque fulano não apita mais nada. Fica só o que está no fonograma. O que interessa é o som, é o que está entre 20 e 20 mil hertz e ponto final. 

Crítica não é a sua opinião. 

Um crítico musical – ou um bom crítico, pelo menos – não é um ególatra por natureza. Posso admitir que ele é, talvez, um pouquinho arrogante por julgar que a sua apreciação de música é embasada e válida a ponto de publicá-la com a expectativa de que ela seja relevante e influente para alguém, porém ele não é um perseguidor da verdade absoluta. O crítico, o cara que escreve sobre música, o cara que escreve uma resenha é, acima de tudo, um devoto. Um devoto da música, um cara que vive a música a ponto de abrir os ouvidos para o que é novo, de ouvir o disco do Metallica antes do lançamento porque ele quer escrever (mesmo que ele não goste de Metallica), de querer saber o que está acontecendo em Porto Alegre e por que tantas bandas incríveis estão surgindo lá ao mesmo tempo (mesmo que ele more em Roma). É alguém que quer entender a música. É alguém que tem a música no centro de sua vida. Para o crítico, música é coisa séria, não é som ambiente. E, por isso, ele a analisa sob aspectos diversos, que vão muito além do mero “gostei” ou  “não gostei”. E é exatamente esse levar a sério que faz com que ele, às vezes, seja firme: seja no elogio, seja na hora de dar porrada.

Mas crítica ainda é uma opinião.

Por outro lado, a crítica ainda é uma opinião. Embasada, detalhada, fundamentada, mas ainda assim uma opinião. Acredito que não exista jornalismo imparcial e que o grande desafio (e a beleza) do jornalismo seja, exatamente, a busca pela menor parcialidade possível. E a busca pela imparcialidade é outra coisa que torna a crítica musical importante, já que o fã é passional. Quando um fã ouve um lançamento da sua banda preferida, seu viés de confirmação é o da aprovação. O contrário, da mesma forma, também acontece: aquela banda que você detesta tem tudo para desagradar logo de cara, por mais que o disco tenha todos os predicados de um clássico. Um fã não tem condição alguma de escrever uma boa resenha de um show ruim, já que ele não vai enxergar a ruindade em questão. O crítico, não. O crítico tem que ir no show do Justin Bieber e falar bem, tem que ir no show do Misfits e falar mal, e arcar com as dores das duas coisas. Tudo em nome do profissionalismo.

Gosto não se discute. Qualidade, sim. 

Por fim, a crítica vem, muitas vezes, sim, por mais que doa, para tentar separar o joio do trigo. Um jornalista musical sério tem essa missão. Contribuir para a qualidade do que é produzido (embora o impacto seja ínfimo) em matéria de música. Gosto não se discute, qualidade sim. Gosto é gosto, é o impacto positivo de determinada música no seu ouvido e na sua alma. Qualidade depende de vários aspectos. Composição, execução, melodia, energia, mixagem, masterização e por aí vai. Beethoven tem muita qualidade, mesmo que muitas pessoas não gostem. Já o MC (insira o nome de um aqui - só não insiram o número 5) tem pouca qualidade mesmo que muitas pessoas gostem. E é com essa certa frieza que se escreve sobre música. Tentando deixar, o máximo possível, o gosto de lado.

O crítico musical é isso, é um arrogante, que acha que pode avaliar a arte de outra pessoa (via de regra muito mais bem sucedida que ele), mas que faz isso na linha que divide a emoção da razão. Hoje a crítica musical vive sua crise da meia-idade, sua época de crise de identidade e até de alguma confusão mental. Antagonicamente, é exatamente quando a crítica é menos relevante para a indústria que ela se torna uma ferramenta ainda mais útil e interessante para quem, assim como nós, ama a música. E em tempos onde somos bombardeados com lançamentos a cada dia e com uma infinidade de opções que chega a gerar uma paralisia que faz predominar os clássicos em muitas playlists mundo afora, a crítica musical acaba, também, por ter a função de ser um oásis de sensatez onde impera a paixão, e de movimento onde impera a inércia. Pelo menos é isso que a gente tenta, enquanto faz de tudo continuar contribuindo de forma positiva com conteúdo musical. 




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