Rebirth: um álbum conceitual de trás para frente


Em 2001, a banda brasileira de power metal e metal progressivo Angra lançou o seu quarto álbum de estúdio, Rebirth. Esse foi o primeiro a contar com o Edu Falaschi, que assumiu os vocais após a saída de Andre Matos no ano anterior. O disco foi bem recebido pela crítica e pelos fãs, que compraram essa nova fase do Angra e fizeram com que atingisse 100 mil cópias vendidas em menos de dois meses. O registro traz grandes músicas que entraram para a história do grupo, como “Nova Era”, “Acid Rain”, “Rebirth” e “Running Alone”.

O guitarrista Rafael Bittencourt, que assina as letras de todas as faixas de Rebirth, já afirmou que o álbum é conceitual, contando uma história que começa de trás para frente. No entanto, isso não fica muito claro nas letras, passando aos ouvintes a missão de imaginar a história por contra própria, e é isso que proponho nessa matéria. Com o pouco que se sabe sobre cada música, mais a interpretação que podemos fazer das respectivas letras, por que não ir mais fundo em busca dessa história que a banda tenta nos contar?

A partir da última faixa, “Visions Prelude”, até a que abre o CD, “In Excelsis”, vou analisar as letras e tentar ligar os pontos nesse texto, da maneira que eu achar mais sensata. Mas deixo todo e qualquer um que ler isso livre para interpretar as mesmas de maneira diferente- até por que era isso que o Bittencourt queria, não é mesmo?

A história de Rebirth fala sobre um mundo destruído, e os esforços que os seres humanos que restaram fazem para reconstruir a sociedade e os valores de uma nova maneira, mais humana e correta.

Visions Prelude 

Trazendo o título de “Prelúdio das Visões”, a faixa apresenta o início da história. Um homem tem visões da terra após a mesma ter sido devastada, mostrando todos os tormentos que levaram a sua destruição.

Visão da terra após o horrendo fim 

Essa visão tenta cegamente alertar as pessoas dos riscos que a humanidade está correndo, mas poucos parecem ouvir o alarde. 

Tormentos trouxeram o fim
Nós construímos novamente do princípio
Santo coração indulgente

Ao fim dos versos alguém clama por ajuda, por uma divindade que consiga os perdoar e os livrar daquele fim. Mas ao mesmo tempo que a visão mostra o horrível destino do nosso planeta, ela também diz que as pessoas conseguirão retomar o rumo de suas vidas em uma nova sociedade que elas erguerão das cinzas, acendendo a esperança nos poucos que dão ouvidos a profecia. 

Running Alone 

Depois do prelúdio, a profecia começa a se concretizar. Vemos o ponto de vista de um soldado que foge da grande guerra por não ver mais motivos pelos quais lutar. Versos falam sobre como essa guerra dividiu a humanidade. 

Apressando nosso destino de agora
Dividindo todos nós

Velhos amigos como inimigos, seja forte!

Ao perceber o quão sem sentido e suicida era aquela guerra, o soldado tenta avisar alguns de seus companheiros, mas eles parecem não lhe dar ouvidos.

Responda-me, o que aconteceu com sua vida? 

Você não vê salvação sem luta?
Você não vê que está cego? 

Depois disso, ele foge da guerra, sozinho. Os versos que se seguem mostram como ele não sabe bem para onde está indo, sabe apenas não podia mais ficar lá e lutar. 

Embaixo do sol em um mundo solitário
Eu estou correndo sozinho
Cicatrizes na minha face
Mãos cansadas de escavar sujeira
Eu estava morrendo sozinho

Sabendo que deixou tudo para trás e que agora é o único sobrevivente, ele procura por outras pessoas que tentem, como ele, achar uma maneira de recomeçar em meio a tudo aquilo.

Deixei eu futuro para trás
Eu não sou nada além do único sobrevivente

Judgement Day

A letra dessa música fala sobre um prisioneiro que espera pelo seu julgamento, e alterna seus pensamentos entre ódio e esperança. Às vezes ele teme o futuro, outras vezes aceita o seu destino de modo otimista. Mas com todo esse papo de morte e julgamento, talvez algumas pessoas deixem passar batida a primeira estrofe da música, que pode nos dar uma visão diferente dessa história.

Dentro da prisão da sua mente
Esperando pelo dia
Apenas uma vítima da culpa
Vivendo no desespero

O primeiro verso já diz que o homem está dentro da jaula de sua mente, e a estrofe segue a falar que o mesmo é uma vítima de sua culpa e vive no desespero. Isso leva a entender que talvez essa “pena de morte” seja apenas uma metáfora para a aceitação pessoal de quem se sente imensamente culpado. O homem que fugiu da guerra em “Running Alone” agora se culpa por tudo que fez, por todas as pessoas que matou, pelas atrocidades que cometeu.  

E sua consciência não está segura
Levando você à loucura

O dia do julgamento, que na verdade, é feito por nós mesmos, passa a atormentar esse homem, que resolve ir para o tudo ou nada e aceitar o seu destino. A letra segue falando sobre como não há maneiras de fugir do julgamento, e que todos nós passaremos por ele, dando a entender que talvez a melhor saída seja aceitar, como o personagem faz. 

Ele mostra-se apreensivo quando o momento chega, pede por mais tempo. Logo após vê que como aquele pode ser seu último momento antes de ser acometido pela insanidade, deve aproveitar e sentir-se um homem livre, tudo que no momento ele não é. 

Um último minuto passa pela sua alma
Só mais um minuto no horizonte

Quando você encarar o dia do julgamento
Grite livremente pelo ar
Não haverá mais tempo para rezar

Rebirth 

A faixa que dá nome ao CD talvez seja a que mais fala por si mesma. O homem passou pelo julgamento e agora está renovado. As primeiras estrofes falam sobre um novo dia, reconfortante, agradável. 

Refrescante brisa num dia de verão
Ouvindo ecos do seu coração
Aprendendo a recompor as palavras
Deixo o tempo voar

Ao dizer “deixe o tempo voar” ele expressa um sentimento total de liberdade, de alívio. Não há mais culpa, nem preocupação, ele pode deixar o tempo voar livremente para onde ele queira. Agora, renascido, o homem se lembra claramente dos momentos de seu julgamento, descrevendo-o como algo desesperador e torturante. Pode também estar lembrando dos momentos da guerra, que também fazem parte de sua vida passada, mas quando fala “em minha cabeça” eu imagino que seja seu julgamento.

Oh! Minutos giram e giram
Em minha cabeça
Oh! Meu peito explodirá
Caindo em pedaços

Logo após veio o seu perdão, ele se arrependeu de seus pecados e renasceu da culpa, tornando-se um homem livre. 

Um minuto para sempre
Um pecador se arrependendo
Termina minha vulgar desgraça

Lembra-se do último minuto que ele pedia para ver o horizonte? Então, agora que foi perdoado, ele tem esse minuto, que se estende pela eternidade. A música acaba dizendo que após reencontrar a esperança, o homem está livre para buscar seus objetivos e tentar reconstruir a sociedade.

Reencontrei minha esperança e orgulho
Renascimento de um homem
Hora de voar

Unholy Wars 

A faixa folclórica desse CD, como de costume nos registros do Angra. Essa música trata sobre guerras profanas (como diz o título), guerras religiosas. Na história do álbum estas guerras teriam sido fatores para o fim do mundo. Logo, retornamos na cronologia do álbum para entender mais sobre o que causou o fim da civilização que conhecíamos. 

Um raio letal perfura o ar
Como uma estrela cadente
(Jovens olhos observam na escuridão)

Raio letal seria uma maneira de chamar armas como mísseis e bombas atômicas usadas nestas batalhas. A guerra teria chegado a todos os lugares, sem piedade, mostrando que nem os jovens escondidos escapariam da desgraça. 

A humanidade vai aprender logo
Que o fim chegou a tempo

Há tempo o fim teria chegado, pois essas guerras seriam consequências do rumo que a humanidade estava tomando a muito tempo, mas não notou. Ou talvez não quisesse notar.

Dividindo terras, refazendo
Todas as fronteiras irão colidir
Revelando eras em que a ausência
Do perdão governa nossas vidas

As terras foram divididas, unidas de novo por ideais compartilhados e não por suas fronteiras. A ausência do perdão domina nossa era, onde matamos sem pestanejar e não nos importamos com o sofrimento alheio (algo irônico para ideais religiosos, não?)

Perdoe-nos, nosso pai
Por nós termos pecado

Teu reino será feito
Por guerras santas

Em meio a destruição, algumas pessoas tentam buscar o perdão, mesmo não demostrando nenhum arrependimento. A obsessão por defender os ideais da religião acabou os tornando pecadores, e os botou em um beco sem saída. Agora, diz a música, o paraíso estará lotado de almas de pessoas que morreram por guerras santas. 

Heroes of Sand 

Os heróis descritos nessa faixa somos todos nós, pessoas que nascem, crescem, evoluem, tem seus problemas e seus conflitos pessoais, mas acabam achando um jeito de seguir adiante. Nessa história os heróis estão lutando pelo futuro do nosso planeta após a horrível guerra.

Assim como uma vida milagrosa
Começa com a dor
Para sempre será assim

Fecho meus olhos
Os trovões não cessarão

Aqui fala o quanto a dor é recorrente na vida de todos nós, e nós não podemos fugir dela. Por mais que tentemos ignorar, a dor chegará e não esqueceremos dela, mas devemos aprender a conviver com a mesma. Os trovões não param quando se fecha os olhos, esse verso pode se referir aos sons de guerra que não paravam e não podiam ser ignorados.

Grito alto
Movendo em frente
Cavalgo os cavalos da justiça

Como num sonho você está retornando
Voltando dos mortos-vivos!

A música ganha peso e narra agora a volta por cima dos ditos heróis. Seguindo em frente, bradando por justiça sem desistir. Estão retornando da guerra, algo que parecia impossível de se fazer, logo, vivem um sonho simplesmente por estarem vivos e terem passado pela dor.

Todos os heróis caem
Derramando seu sangue na terra
De algum modo sonhando
Que as divindades se ergam

Aqui fica melhor explicado o conceito de herói, como eu frisei no começo dessa interpretação. Todos os heróis caem, derramam sangue, eles não são algum tipo de divindade perfeita, eles são humanos, pessoas como nós. Eles sonham com dias melhores e lutam por eles.

Com seus corações em suas mãos
Construindo seus castelos na areia

Construir castelos de areia seria uma analogia para reconstruir a nossa sociedade. Por mais que um castelo na areia seja algo frágil, eles tentarão de toda forma construí-lo para um bem maior, isso os torna heróis. 

Acid Rain

Essa música, para mim, é a de mais difícil interpretação. A chuva ácida de que o título fala foi sim consequência da guerra, podendo ter se originado de ataques nucleares e coisas do gênero, mas o tempo em que ela se passa na nossa “jornada do herói” é algo meio indefinido. Alguns versos me levam a pensar que essa chuva ácida não volta na linha cronológica da história, e sim, que acontece enquanto o nosso personagem procura pelos “heróis” de quem ele já tem conhecimento, descritos em “Heroes of Sand”. 

Quando o mundo teve um destino trágico

Apenas um de nós sobreviveu

Bem acordado! Eu estou sozinho neste lugar
Alguém me ouve? Minha única esperança! 

Como os versos implicam, o mundo teve um destino trágico por causa da guerra, e ele foi o único sobrevivente entre os homens que lutavam com ele. Durante sua busca por outras pessoas, ele começa a ponderar, e chega a pensar que está sozinho no mundo. Desesperado, grita por ajuda.

A chuva ácida está queimando
Direto dentro de seus olhos
De novo seus sonhos poderão perder o brilho
Deixe a tristeza dos seus pensamentos se reunirem ao nascer do sol

A chuva ácida está caindo, e o homem pode novamente perder a esperança, mas ele já trata aquilo com mais otimismo do que antes. Diz que deve guardar suas tristezas até o nascer do sol, esperar a chuva passar. Pensamentos de um homem renascido da guerra. 

Misericórdia Santa pelos pecados humanos! 

E nos famosos versos em latim da música, ele pede para que Deus tenha misericórdia da Terra, e não a culpe pelos pecados humanos. 
Essa música mostra uma fase difícil na jornada para encontrar outras pessoas em meio a tanta desgraça. 

Millennium Sun

O encontro finalmente aconteceu, e agora temos um grupo de pessoas juntas lutando por um mesmo ideal. É dessa luta que a faixa fala.

Como velas na escuridão
Nós lutamos contra o vento

Quando é dito que “nós lutamos” já sabemos que o nosso homem encontrou a outros. Mas ao mesmo tempo que os sobreviventes da guerra, em sua maioria, tentam reestabelecer a sociedade, alguns tentam se estabelecer como ditadores e tiranos, reis de um novo mundo por meio da alienação. 

A devoção a seus ídolos
Logo derrubará o rei

Alienação da população
Perdendo toda a afeição

Estagnação iminente
Controlada à distância
Pela TV, de novo

Nessa nova luta para que a nova sociedade não surja como uma ditadura, nossos heróis se veem frustrados pela maldade que ainda há no ser humano. Temem que o futuro não tenha realmente chegado como eles tanto imaginavam. Clamam pelo “sol do milênio”, analogia para a esperança de renascimento desse novo milênio (vale lembrar que o álbum foi lançado em 2001).

Então venha, sol milenar
Não vai nos mostrar o caminho?
O futuro começou

Nova Era

Essa música tem em sua letra o final apoteótico e grandioso da história do álbum. As pessoas conseguiram encontrar o otimismo em sua jornada, e agora nasce a nova era descrita ao longo dos versos.

De alguma maneira eu sei
Que as coisas mudarão

Brilha o novo dia, anjos caídos se levantarão
Nova Era traz as cinzas de volta à vida
Tudo acabado, as dores e mentiras
Anjos se erguerão de volta à vida! 

Anjos se levantarão, como se a divindade olhasse novamente com esperanças para o nosso planeta. A forte motivação das pessoas é descrita em mais alguns versos, como que nos convocando a lutar junto. 

Encontre um sentido para sua vida
Não há como limitar nossos objetivos

Agora com tudo a seu favor, a história se concluirá, a nova era será estabelecida graças a luta de todos os sobreviventes da “antiga sociedade”.

In Excelsis 

Apesar de não ter uma letra para se analisar, essa faixa instrumental não está no disco a esmo. Ela abre o álbum com sons mais densos, um clima misterioso, alguns coros ao fundo. Então essa “escuridão” cessa, e um som limpo toma conta. Seria uma representação da história em geral, com um começo tão obscuro, mas que aos poucos teve seu fim, envolta pela esperança, com um sinal divino dando fim à mesma. O próprio nome da faixa, “Nas Alturas” pode nos dizer donde vem esse acordes ao fim da faixa. Seria Deus abençoando a Nova Era? Eu penso que sim.

Depois de ler e interpretar faixa por faixa, você está vendo este álbum do Angra de uma maneira diferente? Da minha parte, fiquei maravilhado ao ter conhecimento de toda essa história por trás do registro, mostrando que o nome para o mesmo não foi escolhido por acaso.  Uma história de renascimento, não só da sociedade, mas do ser humano.  E você? O que vê nas letras do Rebirth?

Por Eduardo Palini

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