Review: Quarup - Quarup (2016)


Os últimos anos tem sido marcados pela crescente redescoberta, por parte das novíssimas gerações de ouvintes e artistas brasileiros, do vasto e precioso legado musical, poético e estético das efervescentes décadas de 1960 e 1970. Nomes como Arnaldo Baptista, por exemplo, tem voltado às rodas do culto - com muita justiça, diga-se de passagem. Cresce, impressionantemente, a curiosidade e o fascínio pelas transformações que foram impostas nestes dois importantes decênios.

Só que, com as devidas exceções, o resultado da exploração de referências tão ricas, por parte dos artistas, tem sido aquém do que se poderia esperar, com o bom-humor se perdendo em meio a uma irritante vontade de soar engraçadinho, a candura tendo seu lugar ocupado por uma docilidade afetada e a leveza da fluidez e da espontaneidade, sendo destituída em prol de uma cansativa pretensão ao artístico.

Num panorama tão desanimador, discos que se alimentam dessa matéria-prima, mas que rompem com a toada da presunção, como este auto-intitulado primeiro álbum de estúdio da banda paulistana Quarup, proporcionam uma lupada de frescor em meio à tórrida estufa da grandiloquência oca.

Honesto, o grupo formado por Guta Batalha (vocais), Ione Aguiar (guitarras, violões e vocais), Beni Teixeira (piano, teclados e vocais), Marcelo Maia (baixo e vocais) e Lucas Cassoli (bateria, percussão e vocais), apresenta neste trabalho, lançado no mês de outubro e produzido por eles mesmos, um cardápio sonoro muito mais que interessante, que logra na dura arte de buscar a coesão artística sem incorrer no pedantismo de se levar a sério demais.

Jogam aberto: "Quarup são cinco amigos que tocam juntos há oito anos", deixam claro. E o que transparece é justamente isso, cinco músicos fazendo música, pela pura vontade de fazer. A pretenciosidade dá vez à naturalidade, e o resultado é apaixonante.

A faixa de abertura, "O Mensageiro", é um empoeirado tema psicodélico. Competente, surge mesclando o vertiginoso colorido sonoro claramente inspirado na cena hippie da São Francisco de 1967 (especialmente Jefferson Airplane) à releitura mais "cinzenta" proposta deste mesmo som por gente como o Caetano Veloso e a Gal Costa nos fins da década de 1960 e início dos anos 1970, num todo espantosamente compacto.

Ione Aguiar, a guitarrista, faz os vocais principais aqui, e sua voz é algo realmente especial. Com timbre doce, transmite uma sensível, curiosa e até impressionante amálgama entre a cândida fragilidade e a imponência, explorando sem medo nuances retrô numa performance tão peculiar quanto encantadora.


O trabalho instrumental, com timbragem bem escolhida, demonstra unidade e maturidade. Os músicos apostam mais no feeling que na técnica, usando o bom gosto como tática para transcender as limitações. Como legítimos herdeiros do espírito pós-punk, buscam na simplicidade uma delicada confecção esmerada da manufatura de minúcias sonoras.

Se a faixa anterior recriou o passado, por entre o folk, o rock, sutis flertes com o jazz e sob atmosfera psicodélica, "Foi Isto Um Homem" traça uma aproximação gradativa com o presente em mais uma ótima canção. "O Pântano do Céu", a faixa subsequente, promove um refrescante, e até ousado, intercâmbio entre o indie rock de guitarras pujantes (sustentadas por límpida e suave seda guitarrística, de fato, uma construção tão tênue e de elevada beleza da maneira que você só vai conseguir ouvir nas gravações de Steve Cropper, o gênio guitarrista das sutilezas) e o axé (!!) de sua época de ouro, quando ainda não havia aberto mão de suas nobres raízes afro e de seu envolvente acento latino para assimilar o que de mais insosso existe no pop norte-americano. Além do belíssimo trabalho de guitarras, há de se destacar a bonita letra, a grande desenvoltura do baterista Lucas Cassoli no andamento percussivo certeiro (não sei tanto sobre seu currículo, mas já vi músico experiente queimando a mão ao tentar reproduzir tal levada), e a excelente performance vocal de Guta, que encontra seu ponto na singeleza. A Guta, inclusive, tem um precioso e raro senso melódico, guiado sempre pelo sentido da beleza, conduzindo o ouvinte por memoráveis harmonias vocais.

"Pedra Rara" vai por caminhos pop à brasileira, sendo seguida pela fugaz e contemplativa "Nino", um curto tema instrumental. "Uma Amizade Que Veio do Mar" e "Baleiro" são dois lindos e aprazíveis temas que convergem o indie pop ao pop autenticamente brasileiro - aquele que na primeira metade dos anos 2000 se fazia aos montes, e cuja fórmula foi se perdendo no tempo, para a infelicidade dos ouvintes. São duas canções, de fato, aprazíveis demais, com destaque para as belíssimas harmonias vocais em dueto entre a Guta Batalha e o Beni Texeira.

A beleza prossegue na encantadoramente amena "Lila" e no flerte com o climático da desconcertante "Estrela da Manhã" (parceria da banda com a cantora Ná Ozzetti). A influência do axé ressurge na deliciosa "Quero Ir Pra Bahia Com Você", e na faixa seguinte, "No Dia Em Que a Terra Parou", o samba de contrapontos sofisticados pela bossa nova dá as caras numa agradável canção, cujos vocais principais ficam a cargo do Beni. Com seu pop atmosférico, "Três da Tarde" é uma das melhores músicas do registro, que remata, por fim, com "Homem-Rã", que esboça uma ligação com climas bucólicos, em outro dos mais inspirados momentos do trabalho.

Importantíssimo frisar a intensa e desconcertante carga de carisma de todas as letras, claramente alinhadas à escola Luiz Galvão de poesia, passando longe do óbvio ao passo que mantêm uma impressionante proximidade do universo cotidiano.

Este é um trabalho de procura, por meio do qual a banda notavelmente buscou explorar ao máximo o seu leque de possibilidades. O resultado é um álbum rico, diverso mesmo. E este é um grupo com um raro senso do belo. É nítido o esforço individual de cada um dos membros no trabalhar de cada sutil pormenor em prol de um coletivo muitíssimo bem-acabado.

Não se pode saber quanta exposição este disco conseguirá, afinal. Mas, o fato é que ele eleva o nível do jogo na música pop brasileira atual. Será interessante assistir o desenrolar do que virá pela frente. E eu estou ansioso.

Por Artur Barros

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