A última loja de CDs


Eu compro CDs. Compro vinis também, mas compro muito mais CDs. Quando menciono o fato em qualquer conversa, não há quem consiga disfarçar a surpresa. É uma frase que desperta a curiosidade alheia. As reações variam de “Mas por quê?” a “Nossa, mas por quê…?”, passando por “Eu hein, por quê?”. Pagar por música nos dias hodiernos é um conceito meio alienígena à maioria das pessoas. Sobre o compact disc, em tempos de playlists, torrents e streamings, a fidelidade a um formato fonográfico dado como morto e enterrado causa estranheza ainda maior. (Eu mesmo,  já em 2002, escrevia sobre a “morte do CD”.) Ninguém tem mais CD player, nem no computador. Ninguém mais quer CDs, nem de graça.

Ninguém, não; eu os quero. E sigo comprando-os, principalmente usados, mas de vez em quando novos também. Por sua praticidade, pelo fato de eu ser um cara apegado ao formato físico e sobretudo pela relação custo/benefício. Por que dar R$ 80 num LP se o CD custa R$ 20, ou às vezes menos?

Para achar CDs novos por R$ 20, ou às vezes menos, eu vou à loja Escuta Som, no Centro do Rio. Fica (ou ficava — o futuro agora é incerto, como vocês verão) na Rua do Rosário, quase esquina com Primeiro de Março, pertinho de onde tinha um (lindo) prédio antigo com uma agência do Bradesco que foi demolido. Nenhuma ida ao Centro é completa sem uma passadinha na Escuta Som. O espaço é pequeno e fica menor ainda com os balcões apinhados de CDs, organizados hoje da seguinte forma: na parede à esquerda de quem entra, artistas internacionais; no balcaozão no meio, de um lado, mais discos internacionais; do outro, nacionais. Na parede à direita, CDs brasileiros. Tudo a R$ 10. Coisas novas, algumas até lacradas, misturadas a usados e, eventualmente, uma ou outra raridade. No último cantinho à direita, algumas ofertas especiais: lançamentos recentes em CD, DVD e blu-ray, discos que na Cultura ou na Fnac não saem por menos de R$ 35 ou R$ 40 oferecidos a R$ 18, R$ 20, R$ 25. Transbordados para a calçada, outros dois balcões oferecem mais pilhas de CDs, esses a R$ 5 cada. Aí a tranqueira impera, mas se você tiver tempo disponível, sempre dá pra pegar alguma coisa. Na minha última visita, por cinquinho eu descolei essa pequena pérola. Importado, hein!


O dono da loja era o Cláudio. Eu conheci o Cláudio quando minha coleção de CDs, que hoje me causa sérios transtornos por falta de espaço, cabia toda numa única e pequena prateleirinha. Pelos idos de 1994, eu vivia duro, tinha acabado de comprar meu primeiro CD player (um discman genérico vagabundíssimo) e tentava catar todo e qualquer trocado para atravessar a Baía de Guanabara e ir à loja do Cláudio. Era a época em que eu brincava de ser DJ em uma boate em Niterói, botando som toda quinta-feira; o nome da festa era Quinta dos Infernos. Chegava em casa na madruga e acordava cedo, contava os trocados arrecadados na noite anterior e partia para o Cláudio. Havia até uma aura de clandestinidade nessas excursões. Pois a loja ainda não era a Escuta Som, era apenas uma portinha no terceiro andar de um prédio de escritórios na Buenos Aires (a uma esquina da Rua do Rosário). O porteiro olhava desconfiado e perguntava: “Vai lá no Cláudio, né?”, enquanto verificava meu RG. Claro. O dia bom de ir era a sexta-feira, quando, segundo o próprio Cláudio, “chegavam as novidades”. Era quando, milagrosamente, os CDs que na Grammophone ou nas Americanas custavam R$ 18, R$ 21 eram vendidos a R$ 5 (importados a R$ 10). Como? Além de alguns esquemas meio nebulosos com as gravadoras, Cláudio ainda revendia CDs de segunda mão… e era um dos principais revendedores dos discos “promocionais” recebidos pelos jornalistas cariocas.

Passaram-se as décadas. De lá pra cá, o CD, que estava no auge naqueles distantes anos 1990, veio levando lambadas que o feriram de morte: pirataria física, Napster, iPod, Spotify. Até o vinil levantou da tumba para pisar no irmão mais novo. Suas vendas não param de cair e entre 2000 e 2015, o número de unidades comercializadas encolheu quase 75%. E eu com isso? Eu continuei indo ao Cláudio. Acompanhei-o em suas andanças (acho que antes da Escuta Som ele chegou a abrir uma outra loja, ali pelas redondezas) e sempre fazia uma visitinha. Seus concorrentes sumiram. Quer dizer, ainda existe um ou outro sebo no Centro, mas nunca chegaram a ser concorrência ao Cláudio, nem em preço, nem em acervo. Com o tempo, passei não apenas a comprar, mas também levava umas coisinhas pra vender e trocar.

Em pleno ano 2017, quem visita a Escuta Som tem motivos para duvidar desses papo de “o fim do CD”. A loja está sempre lotada. Tem a freguesia habitual, malucos como eu, que frequentam a loja pra ver as novidades e jogar conversa fora. A maioria é de cinquentões e quarentões, mas de vez em quando aparece uma molecada. E tem gente que, pasmem, ainda entra em loja de disco cantarolando uma música e pergunta ao vendedor quem é o artista que a interpreta, e se ele tem o disco pra vender.

Quer dizer, quem visitava. Hoje, uma segunda-feira, 13 de fevereiro, fiquei sabendo que o Cláudio morreu no fim de semana. Teve uma trombose, parecia ter se recuperado, mas piorou de repente e se foi. Eu estive na Escuta Som menos de duas semanas antes, bati um papo rápido com ele, e levei o Shabba e mais umas tranqueiras. Parei para olhar minhas estantes de CDs e nem consegui dimensionar exatamente quantos títulos foram comprados na mão do Cláudio. Centenas, decerto. É quando você percebe que o cara, a quem na verdade você não conhecia — só via ali, nas visitas ocasionais — faz, sim, parte importante da sua vida, por ter lhe proporcionado o acesso a outras partes importantes da sua vida. O azulzinho do Weezer eu comprei lá (e depois dei pra uma garota e tive que comprar outro). O Grand Prix do Teenage Fanclub, eu comprei lá. Muita MPB. Uma leva boa de discos do Sinatra da fase Capitol. Muitos discos de black music (aliás, o estilo favorito do Cláudio). Uma caixa com todos os álbuns do Madness (e que custou, adivinhem, R$ 10). Montes de trilhas sonoras. A edição de 45º aniversário do The Velvet Underground and Nico. Paixões mais recentes, como Kendrick Lamar e Tame Impala.

Pois é, falam tanto do fim do CD, há tantos anos, e o CD não acabava nunca porque o Cláudio não deixava. Agora, já não sei mais.

Por Marco Antonio Barbosa




Comentários

  1. Bom dia! Que bela história. Me identifiquei nela, não tanto como você, mas também comprei bastante coisa legal lá quando trabalhava no Centro do Rio. Há 4 meses que a minha empresa se mudou para o Recreio. Sinto bastante falta do Centro, por não viver mais histórias como essa, e principalmente sentir a alegria de estar em uma loja de discos. Sobre o Claudão, uma perda enorme. Que Deus o tenha!!! Conversava bastante com o funcionário dele, que por sinal, também mora aqui em Realengo. Enfim, vida que segue. Valeu! Grande abraço!!

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