A vida nem sempre é justa: grandes canções que nunca se tornaram clássicos - Parte 1


Na primeira parte desta série quero falar um pouco sobre canções do universo hard rock/heavy metal que, apesar de sua qualidade, nunca se tornaram hits ou clássicos das respectivas bandas. Injustiças em minha visão e que fazem parte de minha memória afetiva, que tentarei corrigir um pouquinho a partir deste artigo. Confiram estes sons, mandem as suas listas e comentem.

Kiss - Turn on the Night (Crazy Nights, 1987)

Para começar, uma das músicas que nunca consegui entender como não se tornou marcante, seja comercialmente ou musicalmente, na carreira de Paul Stanley e Gene Simmons. Comparo bastante este som com “Livin’ on a Prayer” do Bon Jovi quanto a alguns aspectos. Duas canções que unem perfeitamente o hard rock com o pop, prontas para o consumo em massa, portanto. Ambas possuem melodias, refrãos e ganchos arrojados e viciantes para colar em sua mente. Ambas tem videoclipes muito legais, super produzidos, com performances energéticas das bandas num palco. Ambas tem riffs e harmonias guiadas por teclados inspiradas e ambas foram compostas por membros das bandas junto a grandes hitmakers da época (Desmond Child no caso do Bon Jovi e Diane Warren no caso do Kiss) mas, em detrimento a tudo isso, uma se tornou um dos maiores hits da história do hard rock e, posteriormente um clássico do Bon Jovi, enquanto a outra se tornou apenas um pequeno hit na Inglaterra (atingindo só o número 41 dos charts de singles de lá por três semanas) e nunca é lembrada pelos fãs (muito por culpa da banda também, que nunca a executou ao vivo) e pelos membros remanescentes da época em que foi concebida.


Warrant - Song and Dance Man (Cherry Pie, 1990)

De uma forma geral esta banda é muito subestimada, bem como muito de seu material. Principalmente, talvez, pelo grande sucesso da canção “Cherry Pie” e seu videoclipe, que deram aos caras uma imagem um pouco estereotipada, deixando de lado o talento musical principalmente de seu principal compositor, o falecido vocalista Jani Lane. Mas no álbum Cherry Pie, bem como em seus outros discos, existem pérolas do hard rock melódico como “Bed of Roses” e “Mr. Rainmaker”m tão subestimadas quanto a canção aqui escolhida como objeto do artigo. “Song and Dance man”, como as outras citadas, tem melodias cativantes, arranjos elegantes e o aspecto lírico, que me levou a escolhê-la para representar a banda neste texto. Lane, além de bom compositor de melodias grudentas, escrevia letras interessantes e bem sacadas, tanto com características sacanas ou românticas como o estilo à época pedia, quanto com conteúdo poético em assuntos mais profundos (“Song and Dance Man”, “Sad Theresa” e “April 2031” do disco Dog Eat Dog e “Stronger Now” do álbum Ultraphobic são bons exemplos). Deixe-se levar pelo som e pela letra e curta este som (e ou outros aqui citados) sem contra-indicações, sem nunca esquecer que “life is poetry in motion”, como Jani Lane nos ensinou nesta canção.


Alice Cooper - Dangerous Tonight (Hey Stoopid, 1991)

Existem artistas de careiras tão brilhantes e prolíficas que, no bojo se sua arte, sempre fica faltando alguma coisa que não teve a atenção devida. Aqui é um exemplo no caso da tia Alice (que deu o lindo nome à minha amada filha). “Dangerous Tonight” é um tema sensacional, com um riff sombrio e vocais soturnos que descambam num refrão empolgante, unidos por uma ponte (”bridge”) melodiosa e envolvente, tudo embalado na característica lírica doentia própria da carreira deste gênio da música e, infelizmente, esquecida no meio de um CD que acabou sendo reconhecido apenas pela música título e “Feed My Frankenstein”, que é uma das canções favoritas de Alice Cooper para tocar ao vivo e até hoje sobrevive no setlist dos shows. Outra deste álbum que também poderia estar aqui é “Wind Up Toy”, também maravilhosa.


Metallica - Wasting My Hate (Load, 1996)

Também sou daqueles fãs do Metallica que nunca digeriu bem o Load, nem tanto pelas músicas, pois temos vários temas interessantes e pesados (sem a velocidade de outrora claro, pendendo mais para uma sonoridade setentista), bem como letras inspiradas e singulares até então não oferecidas por James Hetfield a seus ouvintes. Mas, se algo no disco me lembrou o Metallica oitentista, mesmo que com certa distância, foi “Wasting My Hate”. Provavelmente a mais rápida e pesada composição da banda no período Load / Reload (junto com a maravilhosa “Fuel”), tem em seu andamento um riff mais acelerado que descamba em outro riff mais lento e com pegada setentista na junção ponte/refrão (atinente a característica da música produzida pela banda à época). Tudo isso envolto no ódio lírico despejado por James quanto aos seus traumas de infância e, principalmente, à perda de sua mãe. Posso estar enganado, mas até onde eu sei “Wasting My Hate” foi tocada ao vivo apenas uma vez, no programa de TV do apresentador inglês Jools Holland, em novembro de 1996 - se você for conferir no YouTube, irá atestar todo o aqui exposto de forma mais vigorosa e pesada. Para aqueles que acham que a fase Load / Reload não pode ter headbangin’, moderado talvez.


Testament - Nobody’s Fault (The New Order, 1987)

Fazer versões de canções de outros artistas é sempre arriscado e uma arte que deve ser levada em consideração muito pelo seu executor, aqui no caso o Testament, principalmente de clássicos de bandas clássicas. Não digo que sempre se chegue à excelência do Judas Priest, que na minha opinião forjou os melhores covers da história do metal, mas que se faça a coisa com respeito, coerência e, se possível, sem simplesmente copiar a original, dando sua personalidade e características ao som coverizado. Bem como no caso do Slayer com “Dissidente Agressor” do mestre Priest, o Testament aqui seguiu à risca tais preceitos de qualidade e produziu um petardo de mais peso, mais força e mais vigor para a já anteriormente pesada, forte e vigorosa “Nobody’s Fault”, do Aerosmith. Uma versão totalmente condizente com o estilo musical do Testament, com vocalização rouca e musculosa que, diante da performance anasalada (e brilhante) de Steven Tyler na versão original, parece um, com a devida licença poética, “gutural setentista”, que confere à música um poder que se destaca em um CD tão bom e cheio de canções poderosas mas que, mesmo tendo sido agraciada com um videoclipe muito legal e algumas vezes tocada em shows à época, nunca obteve o reconhecimento e a visibilidade que merece e sempre mereceu, seja pelos thrashers em geral ou ao menos pelos fãs do grupo. 


Slayer - Crionics (Show No Mercy, 1983)

Muitas grandes e influentes bandas, mesmo antes de “achar” seu som, com a devida e completa aplicação da personalidade e dos conceitos musicais de seus compositores à musica a ser produzida, forjam pérolas escondidas em sua discografia que, em muitos casos, pelo sucesso e reconhecimento alcançados posteriormente, ficam quase esquecidas em algum lugar do baú musical destes artistas. Infelizmente isso se aplique a muitos sons do fantástico debut do Slayer (talvez excetuando “Black Magic”, “Die by the Sword” e “The Antichrist”, sempre lembradas pela banda em seus shows até recentemente) mas, principalmente, à maravilhosa peça metálica objeto deste texto. Em “Crionics” (assim como em outras canções do mesmo disco) verificamos de forma mais acentuada a influência da New Wave of British Heavy Metal, principalmente do Iron Maiden, característica essa soterrada entre os decibéis produzidos pelo quarteto californiano, com as melodias mais evidentes junto ao peso e crueza característicos da banda. Em “Crionics” temos até o cavalgar de guitarra e baixo, bem como o duelo harmônico de guitarras, inerentes ao som do Iron Maiden, tudo isso a partir de 1 minuto de 40 segundos exatamente. Escute e tente não lembrar de clássicos da banda inglesa. Mais para frente, na continuidade da carreira do Slayer, tais elementos seriam postos um pouco de lado em detrimento ao som próprio e distinto encontrado pelo grupo, principalmente a partir de Reign in Blood, para alguns melhor, para outros nem tanto, para mim apenas diferente e consequência da evolução musical do grupo que tendeu para algo mais rápido. 


Enuff Z’Nuff - Baby Loves You (Strenght, 1991)

Quando se fala em bandas, músicas ou compositores subestimados no universo hard n’ heavy, é quase mandatório falar do Enuff Z'Nuff. O fato deste quarteto hard rock de Chicago nunca ter feito sucesso comercial em larga escala e não ser reconhecido e/ou valorizado pelos fãs do gênero é um mistério que permeia minha mente desde 1989, quando lançaram seu debut. Existem duas bandas que conseguiram com maestria unir o universo hard e heavy com forte influência da maior banda do universo pop/rock da história da música, os Beatles: uma foi o Cheap Trick e a outra o Enuff (muito influenciada também pelo Trick, claro). Melodias cativantes ao extremo, vocais aveludados, backing vocals harmoniosos e toques sempre florescentes de psicodelia (características inerentes à música do Fab Four) convivem com groove, riffs gordurosos e sensuais, solos ora fritados (shred) ora melódicos e letras com temas sacanas/relacionamento/cotidiano/o rock n roll em si (referências do hard rock, principalmente dos 80’s), bem como vários blues pesados que recheiam seu repertório. A música aqui escolhida, “Baby Loves You”, além de ser um ótimo exemplo de todos os atributos elencados acima, resume bem o som do quarteto americano, foi veiculada como single, divulgada com um videoclipe muito legal e, até hoje, nada aconteceu. A não ser por alguns sortudos que conseguiram ter acesso ao som do grupo prematuramente e fazem parte de um nicho bem específico de fãs de hard rock que absorveram a pequena miscelânea musical que esta banda oferece, nunca sucesso e reconhecimento fizeram parte da história deste combo musical. Se você tiver curiosidade vale muito a conferida, começando com o debut de 1989 (que teve um sopro de reconhecimento e sucesso comercial com seus dois singles – “Fly High Michelle” e “New Thing” -, e que chegaram a figurar rapidamente em alguns charts na época) e o CD que contém a música aqui analisada (Strenght, de 1991), dois dos melhores álbuns desta era (até porque na segunda metade dos 90’s eles perderam o foco, entregando discos ruins que tentavam reproduzir o grunge e o rock alternativo reinantes à época).


Iron Maiden - Reach Out (Wasted Years, single, 1986)

Música subestimada na carreira do Iron Maiden, seria uma blasfêmia? Talvez não. A grande banda inglesa cometeu uma pseudo heresia ao gravar este hard rock extremamente melódico e comercial, cantado supreendentemente bem pela voz rouca de Adrian Smith, que ficou relegado como lado B de um dos maiores clássicos da banda. Todas as características de canções deste estilo estão ligadas neste tema que, principalmente na época, sobressaltou muita gente. Até hoje lembro da primeira vez que a ouvi, junto com outros dois amigos ”maidenmaníacos “, e as feições de nossos rostos, bem como as indagações que nos fizemos: "Que é isso, o Maiden gravando hard rock americano? Nossa isso é quase um AOR!”. Tudo isso foi potencializado pelo fato das experiências com guitarras sintetizadas efetivadas pela banda no álbum lançado a época, Somewhere in Time, além da pegada bem hard de “Wasted Years” (primeiro single e clipe do disco e primeiro contato que os fãs tiveram com a sonoridade do álbum). A despeito de tudo isso, “Reach Out” é uma canção maravilhosa, cheia de melodia, groove, harmonias de guitarra e vocal sublimes que conduzem a música até uma ponte que cria um pouco de suspense e desagua no refrão empolgante e emocionante, perfeito para uma arena ou estádio entoarem em uníssono, reverberado pela segunda voz proeminente de Bruce Dickinson, sintetizando mais uma obra sublime da banda de metal mais amada pelos headbangers brasileiros e de grande parte do mundo.


Judas Priest - Reckless (Turbo, 1986)

Canção subestimada do Judas Priest realmente só poderia vir do álbum mais subestimado da brilhante  carreira dos Metal Gods. Se o tempo se encarregou de reconhecer uma pequena parte do valor de Turbo como o ótimo disco que ele é, fruto de seu tempo, nenhum reconhecimento foi reservado a quase esquecida última canção do lado B do antigo vinil, que foi como a escutávamos na época o que, em minha visão, se mantém como uma enorme injustiça. “Reckless” tem um dos melhores trabalhos vocais de um dos melhores vocalistas da história do rock. Escute-a com fones de ouvido e se deixe emocionar pelas notas alcançadas e pela afinação perfeita, em uma música que tem todas as características do som tradicional dos ingleses, apenas com a guitarra sintetizada. Riffs envolventes, bases pesadas, solo dividido em parte harmônica de dueto das guitarras e parte em que os dois duelam, além da condução musical pelo vocal brilhante e a junção ponte/refrão empolgante, melódica e cativante, colando em sua mente por meses, somando-se ainda uma letra bem bacana sobre velocidade e emoção, temas que também são abordados na faixa-título ("Turbo Lover"). Enfim, mais um tema grandioso da banda que mais simboliza o metal, com o brilhantismo e musicalidade de sempre mas que, diferentemente de outros clássicos do grupo, não tem o reconhecimento devido nem de sua enorme base de fãs tampouco dos fãs de metal em geral. 

Antes de terminar vou contar uma passagem da história dos ingleses que poderia ter mudado completamente este artigo, não constando “Reckless”: Enquanto o Judas estava terminando as etapas finais de gravação do álbum Turbo, eles foram abordados pela Warner para enviar uma música para a trilha do então próximo filme de Tom Cruise, Top Gun, faixa esta que teria que ser “Reckless”, apesar da banda ter oferecido outras três. Nas palavras do guitarrista K.K. Downing (revista Goldmine, 5 de junho de 1998) a explicação/lamento: “Eles expressaram mais do que um simples interesse em usar 'Reckless', mas eles queriam tirar do álbum se eles a usassem. Eles provavelmente teriam comprado a canção diretamente de nós. Nós não teríamos visto o benefício disso, além de vê-la no filme e ter a exposição. Em retrospectiva, provavelmente foi um grande erro na carreira da banda, porque a trilha sonora vendeu mais de 5 milhões de cópias, o que nunca um álbum do Priest vendeu na América. Para ser honesto, quando disseram ‘Este filme tem o Tom Cruise’, não sabíamos quem era a cara ainda”.


Ozzy Osbourne - Never (The Ultimate Sin, 1987)

Aqui temos um caso semelhante ao do Judas Priest já citado. Um ótimo tema do disco mais subestimado da carreira do Madman mas que, diferentemente do caso de Turbo, parece ser mais desvalorizado com o passar do tempo, até pela contribuição de Ozzy neste processo, que teima em desprezar este álbum pelo fato de ter questões judiciais pendentes com Phil Soussan (seu baixista à época, que participa tocando e compondo o grande hit/clássico do play, "Shot in the Dark"). Quando de seu lançamento, e durante um bom tempo, a despeito da inclinação para o som reinante no mercado americano do período e do visual beirando o glam em moda na época, este disco era visto como um bom álbum do Madman, como realmente é. Bem gravado, bem tocado por uma competente e eficiente banda de apoio em que cada integrante tem seu brilho próprio. “Never” representa bem tais competência e eficiência, sendo um tema dos mais pesados do disco (junto a “Secret Loser”), conduzido por um riff que lembra aqueles ágeis e rápidos que Randy Rhoads fazia com maestria, cortesia do brilhante e muito subestimado Jake E. Lee, culminando em um refrão onde a guitarra se une à viradas frenéticas de bateria e que o produtor Ron Nevison exige toda amplitude vocal de Ozzy, que com afinação e potência (nos limites dele, claro) infere sua personalidade única e dá um brilho a mais em toda esta sequência. Além disso, temos a letra bacana que relata aqueles momentos em que todos nós não exteriorizamos nossos sentimentos, positivos ou negativos, e acabamos carregando isso como um fardo. Pena que consta que apenas em um show da tour americana de 1986 “Never” foi tocada ao vivo e depois deixada de lado. 


Aerosmith - You See Me Crying (Toys in the Attic, 1974)

Baladas sempre foram um ponto forte do Aerosmith, durante toda a sua carreira e não apenas em seu período “queridinho da MTV”, como alguns atestam. Este tipo de peça musical ao mesmo tempo favorece e é favorecida pelas interpretações épicas e dramáticas de Steven Tyler, sem dúvida um dos maiores vocalistas da história do rock que, mesmo com 69 anos de idade nos dias atuais, ainda oferece aos fãs performances brilhantes em todos os shows - assista os caras ao vivo e confirme. “You See Me Crying” é uma lindíssima balada, a melhor da banda em minha modesta opinião que, apesar de constar do álbum mais clássico deles (junto com o Rocks, de 1975), foi totalmente ofuscada pelo grande sucesso de outros tema desta natureza na carreira do grupo (principalmente “Dream On”, sua contemporânea) - que, diga-se de passagem, também nunca fez muito esforço para mudar tal panorama. Consta que ela apenas foi executada ao vivo integralmente em poucos shows da tour de 2009 que tocava o álbum Toys in the Attic na íntegra, com a justificativa que exigia muito de Tyler (o que é verdade) cantá-la todas as noites e que grande parte do giro foi feito com um baixista substituto a Tom Hamilton, que estava tratando um câncer. Além disso, em 2011 e 2016 Tyler, como introdução de “Dream On” ao piano, executava os primeiros versos, nada mais. Esquecida como última musica do lado B do vinil original, nunca lançada como single, apesar do potencial até maior que “Dream On”. A bela melodia da canção é enriquecida com um arranjo de cordas inspirado, que mantém a orquestração durante todo o tempo, com exceção do início e fim, onde temos apenas a presença do piano. Tal orquestração entre 2:25 e 3:03 cria um momento de pura beleza, leveza e encantamento musical, com Tyler usando magnificamente o recurso de vocais em falsete até, a partir de 3:04, Joe Perry nos brindar com um solo melódico, conciso e que reitera algumas sequências de acordes anteriormente ouvidas pela orquestra, até o final onde o piano e as cordas se unem para um encerramento doce e singelo de um dos mais belos temas românticos forjados por uma banda de rock na história da música. Sublime e bela, uma canção em que o “estado da arte” é inversamente proporcional ao reconhecimento emanado dos fãs da banda (sendo que muitos que converso nem se lembram de sua existência) ou de boa música em geral.


Gary Moore - Nothing’s the Same (After Hours, 1992)

Gary Moore foi um grande músico, estupendo guitarrista e, com o passar do tempo e experiência adquirida, tornou-se também um ótimo vocalista (bem semelhante ao processo de outro gênio do instrumento, Eric Clapton, que veio a se tornar também um ótimo cantor). Apesar disso, excetuando Japão e algumas partes da Europa, nunca teve seu valor reconhecido nos mesmos termos de outros guitar heroes, especialmente nas Américas. Faleceu muito cedo, deixando fãs bastante saudosos, como o que aqui escreve mas que, pelo menos, tem uma vastíssima obra musical para deleite e emoção. Tudo isso, principalmente a emoção, pode ser atestado nesta lindíssima peça musical criminosamente ignorada no final do lado B do vinil de After Hours, seu segundo disco como bluesman após o estrondoso sucesso de Still Got the Blues (1990). Um tema semi acústico, deitado em uma cama discreta de teclado, sob a condução de um baixo apenas para dar os tons graves, com intervenções e solo fleumático de guitarra, tudo emoldurado com um vocal afetuoso e delicado que quase suplica uma letra comovente sobre a dor da distância da pessoa que um dia foi presente em nossas vidas e compartilhava nosso amor. Tanto os adjetivos como a análise acerca do reconhecimento citados no caso de “You See Me Crying” do Aerosmith são plenamente cabíveis aqui, com o desconsolo que o artista que nos brindou com tal obra de arte musical não está mais entre nós.


Poison - Life Loves a Tragedy (Flesh & Blood, 1991)

O Poison sempre foi a banda que todos amaram odiar durante um bom período dos anos 1980 e 1990, muitas vezes sem sequer ouvir atentamente qualquer disco ou música do grupo. Situações principalmente verificadas na imprensa e entre os fãs de rock brasileiros. Com o passar dos anos e a chegada de novas pragas musicais no meio hard n’ heavy (alguém aí falou new metal?), deixaram um pouco de lado o quarteto americano oriundo da Pennsylvania que, para muitos, foi o percursor e maior representante do que se passou pejorativamente a chamar de hair metal a partir da chegada do século XXI pois, até aí, este termo nunca foi veiculado. Era hard rock americano, glam metal, pop metal, e por aí vai. Mas, para aqueles que não se davam ao trabalho de ficar alimentando sentimentos musicais negativos e tentavam descobrir mesmo nos frascos mais feios boas fragrâncias, se depararam com uma banda muito divertida, com um vocalista limitado mas bom compositor e ótimo entertainer no palco, um guitarrista habilidoso mas exagerado, um baixista na média que cuidava bem de seu trabalho e um bom baterista mas que, juntos, com a experiência e evolução musical adquiridos com o passar dos álbuns e turnês, cresceram como músicos e forjaram boas canções em bons discos, como a aqui sob análise deste escriba. “Life Loves a Tragedy” faz parte do, tecnicamente falando, melhor CD da banda. juntamente com o disco seguinte gravado com o ótimo Richie Kotzen na guitarra (Native Tongue, de 1995), sendo um tema com uma letra que aborda os aspectos que nos norteiam nos momentos de dificuldade e como nossas vidas são suscetíveis a estes momentos, evidenciados por vícios, tragédias pessoais ou relacionamentos que deixaram feridas abertas. Além disso, musicalmente, uma introdução em dedilhado acompanhada do vocal melodioso e emocionado de Bret Michaels adentra. Após, na condução musical orientada pelo riff em staccato de C.C. DeVille e em viradas e levadas interessantes da bateria de Rikki Rocket que nos levam ao refrão com os coros empolgantes para serem entonados em arenas e estádios no estilo “pergunta e resposta” (“Good times - bad times, how life loves a tragedy heartbreaks - heartaches...”) acrescido de um solo melódico e não exagerado na fritação. Bacana como muitos outros sons do catálogo da banda e infelizmente nunca tocada ao vivo ou veiculada comercialmente, apesar do evidente potencial.


Cinderella - One for Rock n’ Roll (Heartbreak Station, 1990)

Esta banda, principalmente no período da segunda metade dos anos 1980 e inicio dos 1990, no que se convencionou pejorativamente a chamar de hair metal, foi, com certeza, a mais rica e variada musicalmente, com forte influência em seu hard rock contemporâneo de blues, country, folk e americana, que formam os pilares da música norte-americana mais tradicional e arraigada, levando seu som a ultrapassar as fronteiras estabelecidas pelo mercado da época. Isso se deve muito ao talento de Tom Keifer, guitarrista, vocalista, pianista e principal compositor, que sempre ditou os rumos que o quarteto da Philadelphia seguia. O problema é que a ótima discografia do Cinderella parou em 1995, não sendo mais nada produzido até hoje, além de tours esporádicas no decorrer dos anos e de um disco solo de Keifer (The Way Life Goes, de 2013) que, na visão do mercado e de muitos fãs, foi pouco para manter o nome do conjunto em evidência e com o reconhecimento que sua obra musical merece. Na esteira disso, em seu terceiro disco, Heartbreak Station, lançado em 20 de novembro de 1990, com mais elementos de country e folk presentes que o anterior que tendia mais para o blues (o excelente Long Cold Winter, de 1988), encontramos esta verdadeira pérola do que poderia ser chamado de cancioneiro. Com uma letra autobiográfica que também é uma declaração de amor ao rock, Tom Keifer nos brinda com um tema bem próximo ao estilo americana (que é a confluência de tradições compartilhadas e variadas que formam o ethos da música estadunidense, especificamente mesclas de sons folk, country, rhythm & blues e rock and roll), orientado por violão dobro (um violão com cordas de aço e com um cone metálico dentro de sua caixa de ressonância), bandolim e a percussão, e que mostra como esta banda e seu líder tinham raízes fincadas na melhor música de seu país, diferentemente do que críticos tolos e intelectualóides (tipo revista Rolling Stone, sacam?) e fãs radicais/cegos os atribuíam, os colocando negativamente no bojo de muitas bandas oitentistas que não mereciam figurar ao lado deles. Grande banda, ótimo álbum, esplêndida canção.


Tesla - Paradise (The Great Radio Controversy, 1989)

Para encerrar este pequeno compêndio um caso semelhante, em termos de qualidade musical, ao Cinderella supra citado. O Tesla, entre as grandes bandas americanas da virada dos 80s para os 90s, sempre foi a mais subestimada em terras tupiniquins, mesmo com seus quatro primeiros álbuns lançados no país à época onde, como em alguns outros lugares do mundo, foi colocada indevidamente no bojo do que se passou a chamar pejorativamente de hair metal - quando nem o visual glam fazia parte de seu metiê, ainda mais o som, totalmente fincado em raízes rockeiras setentistas, country, blues e toques de progressivo aqui e ali. “Paradise” faz parte de seu melhor disco, em minha opinião, e que levou o quinteto de Sacramento à condição de rockstars (muito pelo sucesso da linda balada “Love Song”), não sendo veiculada comercialmente nem tocada ao vivo na tour do álbum em questão mas, alguns anos depois, sendo parte do ótimo CD acústico ao vivo Five Man Acoustical Jam, onde sua versão neste formato, nem de longe comparável a versão elétrica original, chegou a ser veiculada comercialmente (após o grande hit do CD, que foi “Signs”) sem, no entanto, nada acontecer. “Paradise” inicia com um belo dueto harmônico de guitarras (estilo Thin Lizzy, forte influência da banda e de seus guitarristas Frank Hannon e Tommy Skeoch) seguido pela condução ao piano junto a melódica linha vocal do cantor Jeff Keith, dono de voz e interpretação únicas no cenário hard n’ heavy, A canção não tem uma condução tradicional tipo verso/ponte/refrão, evoluindo de forma semelhante a “Stairway to Heaven” do Led Zeppelin por exemplo, quando o tema vai crescendo aos poucos em intensidade, até desaguar em um rock pesado e energético com melódicos solos de guitarra encaixados na batida vigorosa e acelerada de bateria, transição esta enriquecida por viradas técnicas e precisas do baterista Troy Luccketta, que tem participação importante na excelente condução rítmica do tema. Além de tocada no formato acústico para um lançamento específico, como já citado, “Paradise” voltou a fazer parte dos shows da banda brevemente em uma tour americana de 2008, lembrando a maioria dos fãs que ela existe, sendo deixada de lado posteriormente, ficando sempre a sombra dos hits do álbum em questão ("Love Song", "Heaven’s Trail", "Hang Tough" e "The Way It Is"), muito pouco para a excelência que esta peça musical apresenta.





Comentários

  1. Uma das melhores coisas que o site já produziu, muito bom. Espero que mantenha a pegada rock,hard,southern,jazz,blues e metal.

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  2. Excelente matéria! Muito boa mesmo! Já estou aguardando a parte 2! (:

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