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Quando o rock virou diagnóstico: a atualidade assustadora de Jesus Não Tem Dentes no País dos Banguelas (1987), o álbum mais político dos Titãs


Jesus Não Tem Dentes no País dos Banguelas
não é apenas um disco: é um estilhaço de realidade arremessado contra o rosto do Brasil dos anos 1980. Lançado em 1987, no meio da ressaca da ditadura e antes da institucionalização do rock nacional como produto de varejo, o quarto álbum dos Titãs captura um país em frangalhos, ainda tateando o que significava ser livre — e usando a música para denunciar que a liberdade, sozinha, não resolve nada. É o disco mais agressivo, político e artisticamente ousado da banda, e talvez o mais necessário.

Depois do impacto de Cabeça Dinossauro (1986), os Titãs poderiam ter seguido pelo caminho mais fácil: repetir a fórmula do rock cru e direto e colher os louros. Em vez disso, dobraram a aposta no risco. Chamaram novamente o produtor Liminha, mergulharam em texturas eletrônicas, samplers, sintetizadores e arranjos percussivos que refletiam tanto a influência industrial quanto a música brasileira subterrânea e urbana que fervilhava nas ruas. O resultado é um álbum que soa como um cruzamento entre colagem sonora, rock nervoso e crítica social embebida em ironia.

A pancada começa com “Todo Mundo Quer Amor”, uma mistura de funk, guitarras tortas e vozes processadas que já coloca o ouvinte em território estranho. Mas é em “Comida” que o disco ganha ares de manifesto: uma música política disfarçada de pop, urgente, direta, ainda atual a ponto de assustar. “Nome aos Bois” é um desfile de figuras históricas e controversas, um inventário caótico da humanidade que funciona como sátira e acusação. E “O Inimigo”, com sua pulsação rígida e climão paranoico, encapsula o espírito do álbum — desconfortável, tenso, inquieto.


Outros destaques mostram a pluralidade criativa da banda no auge. “Corações e Mentes”, com sua letra afiada e musicalidade intensa, se transformou em um dos maiores hinos do rock brasileiro. “Desordem” é quase uma música de guerrilha urbana. “Diversão”, uma crítica inteligente do tédio e do escapismo, virou um dos grandes clássicos dos Titãs. A música que dá nome ao álbum une letra econômica com uma espécie de desabafo instrumental. E “Lugar Nenhum”, com sua energia explosiva, é uma síntese perfeita do desalento brasileiro daquele período.

Comercialmente, o álbum não repetiu os números gigantescos do rock nacional em sua fase mais pop, mas, artisticamente, consolidou os Titãs como a banda mais criativa, ousada e intelectualmente provocadora do país. O disco ajudou a abrir portas para experimentações no rock brasileiro e segue influenciando músicos que buscam unir contundência e invenção.

Jesus Não Tem Dentes no País dos Banguelas permanece atual justamente porque o Brasil continua repetindo seus próprios erros. As críticas à desigualdade, à alienação, ao controle e à desinformação — tudo embalado em uma sonoridade futurista para sua época — soam assustadoramente contemporâneas. Para quem coleciona e para quem ouve música como documento, Jesus Não Tem Dentes no País dos Banguelas é peça fundamental: um retrato incômodo, brilhante e necessário de um país que, até hoje, luta para entender e conseguir enxergar a sua verdadeira cara no espelho.


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