Pepeu Gomes no Rock in Rio I: Deus e o Diabo na Cidade do Rock


Por Flávio Ottoni
Colecionador
Collector´s Room

Imagine que você tem uma banda que faz um som bem brasileiro, misturando vários ritmos nacionais (baião, chorinho, frevo, samba-reggae, etc) com o bom e velho rock de virtuoses como Jimi Hendrix, Jeff Beck e Santana. Além disso, o início da década de oitenta está sendo ótimo para você comercialmente, pois outras músicas suas de caráter mais pop estão tocando muito nas rádios e a vendagem de seus discos está detonando. 

Pois bem, como montar um repertório de show que inclua o pop e o instrumental MPB (que são as características do seu som) para um público em torno de 250 a 300 mil pessoas (com muitos headbangers) que irão nas duas noites de um festival (em que você tocará especialmente para assistir a bandas que tem um som pesado, como Iron Maiden, Ozzy Osbourne, AC/DC, Scorpions, Whitesnake e Queen? 

Esse público, conhecido como "metaleiro", é uma novidade em terras tupiniquins, e a sua forma de se vestir é agressiva, soturna (roupas pretas, braceletes pontiagudos de metal, etc e tal). Ahh, tem mais um detalhe: nessas duas noites, além de tocar com a sua banda, você acompanhará como guitarrista convidado a banda de sua mulher, que está grávida. Além do mais, a música que ela faz é bem mais pop do que a sua. Como o público reponderá a tudo isso? Vão vaiar, xingar, jogar objetos no palco?

Como tragédia pouca é bobagem, você ficou sabendo que as únicas pessoas habilitadas a manusear a mesa de som são os técnicos gringos e tudo indica que eles estão boicotando a performance dos artistas brasileiros. Ouviu falar que em pleno show de artistas nacionais esses técnicos desplugam alguns fios da mesa e o resultado produzido é um som com volume baixo e pouco equalizado.

Está chegando a hora de você tocar no show de sua mulher. As notícias das atrações anteriores não são muito boas - são péssimas, aliás!  Ney Matogrosso foi escorraçado pela platéia - jogaram tudo o que foi possível em cima dele - e como Ney é um cara de talento que não se intimida, continuou o show, deu uma bronca daquelas na platéia e se mandou. Na sequência, o visual de metaleiro (de roupa preta e braceletes pontiagudos) e as músicas pop do Tremendão não convenceram a platéia, que foi muito desrespeitosa com um dos reis da Jovem Guarda. 

Pois é, chegou a sua hora e de sua mulher entrar no palco. O clima é de adversário do Boca Juniors na Libertadores, jogando em La Bombonera, tal a animosidade da platéia. E agora, Baby? "Já sei, vamos tocar pra valer, não vamos nos intimidar, e para segurar a onda vou fazer solos bem nervosos e distorcidos de guitarra e a banda vai ter que entrar com veia rockeira total" - é o que deve ter dito Pepeu Gomes para sua mulher e sua banda. 

Enfim entraram no palco, e com o virtuosismo, qualidade e energia do grupo seguraram o público, que até respondeu bem. Foi um show sem incidentes, seguindo com um padrão mais rockeiro em comparação com o show anterior. Pepeu Gomes entrou no palco e fez uma apresentação bem enérgica e vibrante, com muitas músicas instrumentais e longos solos de guitarra virtuosíssimos, dando pouco espaço para as faixas mais pops de sua carreira.

Tudo estava indo muito bem, com a platéia respondendo com palmas ao pedido de Pepeu Gomes para agitar. O clima não era mais de guerra. Será? De repende, lá pelo finalzinho do show, na execução de uma música, a estrutura modular do palco começa a se abrir e rapidamente vários buracos no meio do palco começam a se formar e a aumentar de tamanho. Era a senha para a banda sair, pois se continuasse os músicos poderiam literalmente cair nesses vãos. Finalizaram a música rapidinho e caíram fora da estrutura transformer assassina. Depois, ficou se sabendo que os técnicos de som gringos foram os que ocasionaram esse ato de sabotagem, pois a apresentação de Pepeu Gomes havia se excedido um pouco além do programado, e esse ato truculento foi uma forma de expulsá-lo do palco.

Fim da batalha da primeira apresentação do guitarrista no
Rock in Rio, no primeiro dia do festival. Entre mortos e feridos, vários quase mortos e feridos pela falta de dignidade e respeito desses técnicos estrangeiros com os artistas brasileiros.


Oito dias depois, Pepeu Gomes e Baby Consuelo iriam encarar mais uma vez aquele palco (que quase engoliu a banda do guitarrista). A estratégia deo show (para não dizer tática de guerra) para o dia 19 de janeiro de 1985 já estava muito bem definida. Fatos chocantes e bizarros durante o festival ajudaram muito a definir a tática que a dupla iria seguir para o penúltimo dia do festival . Ficou confirmado que os gringos estavam realmente sabotando os artistas nacionais ao diminuírem o volume e desplugarem alguns fios da mesa de som bem na hora da apresentação dos brasileiros. O comentário era de que como era possível num mega show daqueles o som das bandas brasileiras sair tão baixo. 

Outra reclamação era de que os músicos brasileiros tinham um tempo minguado para a passagem de som, enquanto que, por exemplo, roadies de uma banda internacional gastavam até duas horas para afinar o som de uma única guitarra. Mas a máxima "o inferno é aqui" se confirmou: Lulu Santos afirmou categoricamente que estorou o tempo do seu show e então o palco modular começou a se movimentar e a se abrir. Teve que abandonar o palco com sua banda para não cair nos buracos abertos, não havendo tempo hábil para terminar a música.

Chegou o dia D, com a tática de combate já armada por Pepeu. Entrou como guitarrista convidado de sua mulher, seguindo a mesma fórmula do primeiro dia em que tocaram no festival. Mas só que agora a banda executava as músicas com mais ênfase rockeira. Tudo transcorreu de maneira normal, com o público metaleiro não vaiando o show. Em pensar que após Pepeu Gomes entrarariam no palco Whitesnake, Ozzy Osbourne, Scorpions e, fechando, o AC/DC, com o tilintar do sino de "Hell's Bells" no fundo do palco e explosões de canhão.

Após Baby Consuelo, chegou a hora de Pepeu Gomes, banda e "soldados" entrarem na área de guerra. Receita do show: quase composto inteiramente por músicas instrumentais, recheadas com solos muito longos e nervosos de guitarra, e uma cozinha instrumental com uma forte levada fincada no rock. Não faltou baião, afoxé, samba-reggae, chorinho, frevo e clássico, movidos a 120 watts de pura distorção. Ele tocou a épica instrumental "Rock in Rio", composta especialmente para o festival, e também músicas de outros instrumentistas, como Jeff Beck (com "Blue Wind"). Os solos de guitarra estavam bem pesados, pareciam até de bandas que se apresentariam na sequência. 

Pesado também estava o clima nos bastidores, pois Pepeu contratou seguranças para impedir que os técnicos gringos acionassem o mecanismo do palco modular. Parece que ouve tentativa de se acionar o palco, prontamente bloqueada pelos seguranças, que disseram que se os gringos movimentassem o palco iriam se arrepender. Não se sabe, mas falam que rolou pancadaria entre os seguranças do guitarrista e os técnicos, e no final das contas Pepeu Gomes conseguiu terminar seu show sem contratempos, sem vaias, com aplausos e com a galera conquistada e estimada em torno de 250 mil pessoas. Se ele já tinha fama de virtuoso, com esse show esse prestígio cresceu ainda mais, pois não há como errar ao seguir o lema "fazendo música, jogando bola" e marcando vários gols de placa no Rock in Rio I".


Discografia sugerida para entrar no clima instrumental da apresentação no Rock in Rio I:

Geração de Som (1978)

Na Terra a Mais de Mil (1979)

Ao Vivo em Montreaux (1980)

Pepeu Gomes - 20 anos - Discografia Instrumental (com a faixa "Rock in Rio") (1998)

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