King Biscuit Flower Hour: tradição roqueira dominical


Por Vitor Bemvindo
Historiador e Colecionador
Mofodeu

As noites de domingo são caracterizadas por um tédio e mau-humor de quem já está pensando na fatídica segunda-feira. Normalmente, tira-se esse momento peculiar da semana para relaxar, procurando-se algum programa de entretenimento nos meios de comunicação. O baixo nível de nossa produção dominical, ao contrário, frequentemente deixa o sujeito mais entediado e mal-humorado ainda. Mas, durante mais de vinte anos, os norte-americanos que apreciavam rock and roll de alta qualidade tinham uma oportunidade de começar a semana de uma maneira mais agradável: era o King Biscuit Flower Hour.

Inaugurado em 1973, o King Biscuit Flower Hour era um programa de rádio, transmitido para diversas partes da América do Norte, que reunia a nata do rock mundial em apresentações ao vivo exclusivas. O programa virou uma tradição norte-americana. Bruce Pilato, produtor e empresário, compara a tradição de ligar o rádio para ouvir o Biscuit com o hábito das famílias se reunirem em frente à TV para assistir I Love Lucy, uma das mais populares séries televisivas da história.

O alcance do programa era enorme, já que o mesmo chegou a ser retransmitido para todos os estados americanos por cerca de 300 estações de rádio, chegando à casa de mais de três milhões de pessoas. A popularidade era tamanha que ele se tornou referência até mesmo para as bandas, que sabiam que estar no Biscuit era estar divulgando sua arte de maneira amplamente massiva.

Mas, nem por isso, o King Biscuit Flower Hour era focado somente em grupos consagrados e populares. Ao contrário, o programa foi responsável por lançar e disseminar o trabalho de diversos artistas que normalmente não tinham grande espaço na mídia. Exemplo disso foi o episódio de estreia, que contou com os woodstoquianos do Blood, Sweat & Tears, com o novato Bruce Springsteen e com os experimentos da The Mahavishnu Orchestra.

O espectro de bandas era bastante amplo, conseguindo englobar um universo de mais de 450 artistas durante o tempo em que o programa esteve no ar. Estima-se que haja cerca de mil horas de shows gravados, de grupos que variam entre Black Sabbath e U2, Frank Zappa e The Police e Beach Boys e Motorhead.

Gimme Shelter: o documentário sobre Altamont inspirou o Biscuit

O curioso é que os idealizadores do projeto tiveram a inspiração para o programa após assistir o filme
Gimme Shelter, que retrata o fracasso da organização do Festival de Altamont, em 1969, que tinha a pretensão de ser o Woodstock do oeste. Aquele evento, idealizado pelos Rolling Stones, simbolizou a queda de um ideal de transformação política e cultural através da música, e os produtores viram na possibilidade de criar um programa de rádio um meio de resgatar a credibilidade do lema hippie “paz e amor” (saiba mais sobre o Altamont Free Concert, ouvindo o MOFODEU #077)

O nome do programa foi inspirado em outro grande sucesso radiofônico surgido nos anos 1920, chamado
The King Biscuit Time. O Biscuit original levava esse nome por ser patrocinado pela King Biscuit Flour Company, e reunia grandes expoentes do blues, como Sonny Boy Williamson. A ideia de trocar o “flour” (farinha) por “flower” (flor) serviu justamente para resgatar os ideais do flower power, ruídos pela tragédia de Altamont.

Ao contrário de diversos programas, tanto televisivos quanto radiofônicos, que recebiam os artistas para performances em auditórios ou estúdios, o
King Biscuit Flower Hour ia atrás das bandas, durante as suas turnês, registrava as apresentações e depois as reproduzia. Isso conseguia trazer um ar mais autêntico para o programa, já que os artistas não estavam apenas se apresentado para a audiência de casa, mas também para uma plateia de pessoas que pagaram ingressos para assistir mais um show de determinada excursão daquele artista.

Esse formato, no entanto, não foi sempre assim. Nos primeiros programas, o
Biscuit reunia um compilado de gravações ao vivo de diversos artistas. Aos poucos, a produtora responsável conseguiu montar uma estrutura móvel capaz de ir aos shows e executar gravações com qualidade, podendo reproduzir os shows praticamente na íntegra.

Alguns artistas eram habitués do
Biscuit, entre eles os Rolling Stones, que por ironia haviam inspirado a criação do programa. O grupo londrino registrou pelo menos três apresentações nos Estados Unidos para o King Biscuit, que compiladas circularam durante muito tempo no mercado negro como objeto de desejo dos fãs.

Uma das capas do bootleg do Biscuit da The Band

O programa, por sinal, foi um dos responsáveis pela disseminação da cultura de bootlegs nos Estados Unidos. Os bootlegs são, geralmente, discos não-oficiais que são distribuídos, trocados e vendidos entre fãs, e que acabaram criando um grande mercado. As gravações do
King Biscuit Flower Hour giravam o mundo de forma clandestina, sendo distribuídas na base de trocas ou através do mercado informal.

Outro bootleg que possui grande valor no mercado é a gravação de uma apresentação da The Band, registrada durante a última turnê do grupo canadense pelos Estados Unidos (a banda interrompeu sua carreira em 1976, mas depois se reuniu novamente por diversas ocasiões). Esses bootlegs começaram a ser disseminados através de fitas cassetes e, com o advento do CD, ganharam impulso com a distribuição através de CD-Rs.

Alguns álbuns da primeira série da King Biscuit Records

Notando esse mercado informal das gravações do
Biscuit, os produtores do programa resolveram, nos anos noventa, fundar uma gravadora para lançar alguns dos shows gravados para o rádio. A King Biscuit Flower Hour Records lançou entre meados e fim daquela década uma série de CDs oficiais com as gravações de diversos dos shows veiculados pelo programa. Entre os mais populares estiveram os lançamentos do Uriah Heeo, Bachman-Turner Overdrive, Robin Trower, Rick Wakeman, Deep Purple, Motorhead, Humble Pie, entre muitos outros. Por motivos de direitos autorais a Biscuit Records não conseguiu lançar os populares bootlegs do The Band e dos Rolling Stones.

No começo dos anos 2000, a mesma gravadora começou a lançar uma nova série de álbuns chamada
Greatest Hits Live, formada de compilações de apresentações de vários artistas, entre eles o Mountain, David Crosby e Molly Hatchet, entre outros.

Álbuns da série “Greatest Hits Live” da King Biscuit

O programa deixou de ser produzido em 1993, mas até 2007 ele era reprisado por diversas rádios em todo os Estados Unidos. Hoje em dia, a produtora responsável pelo
Biscuit concentra-se no lançamento dos álbuns com as gravações e na distribuição dos mesmo pela internet. Através do site Wolfgangs Vault é possível escutar praticamente todos os shows do King Biscuit Flower Hour, mas a qualidade sonora deixa a desejar (é transmitido em 96 Kbps). Porém, alguns desses shows podem ser baixados (download pago), em uma qualidade melhor.

Para acessar o catalogo da King Biscuit no Wolfgangs Vault, clique aqui.

O MOFODEU produziu um podcast inteiramente dedicado ao
King Biscuit Flower Hour, somente com gravações originais do programa. Há tantos shows bons que vimos que um só episódio não será capaz de reproduzir o quanto o Biscuit era importante, portanto, em breve, faremos um segundo volume.

Para ouvir, acesse:
www.mofodeu.com

Comentários

  1. Vendo o logo do BTO nessa matéria, lembrei-me do Engenheiros do Hawaii, seria mera coincidência?? Parabéns pela informação concedida aqui, o blog está melhor do que nunca.

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