Vitor Ramil - Délibáb (2010)


Por Rafael Manfrim Froner
Colecionador
Os Armênios


Cotação: ****1/2


São raros os casos onde uma reinvenção musical é vista com bons olhos. Mais raros ainda são os casos onde essa reinvenção dá certo e projeta o artista para outros universos. Vitor Ramil se encaixa no segundo caso. Mesmo tendo uma carreira de relativo sucesso nacional desde os anos oitenta, foi a partir do seu disco Ramilonga, de 1997, que ele desenvolveu sua chamada Estética do Frio e remodelou seu som.

A Estética do Frio pode ser conceituada como algo que é definidor e modelador do Rio Grande do Sul, mas que Ramil se deparou apenas anos após, vivendo no Rio de Janeiro. As diferenças do RS perante o Brasil (ou ´brasis`) podem ser produtos de muitos fatores, mas são primordialmente ligadas ao clima e à geografia, e que o gaúcho não se encontra na periferia de um centro distante ao norte, nem ao norte de um outro centro ao sul, mas sim no centro – que une os universos distintos da pampa fria, do prata introspectivo e da extroversão lírica das regiões tropicais ao norte.

A partir de Ramilonga Vitor gravou outros três álbuns: Tambong (2000), Longes (2004) e Satolep Sambatown (2007), todos os três com o elemento circular e orgânico da milonga com uma roupagem sofisticada e limpa. Aliás, ele utiliza elementos que poderiam soar um pouco descontextualizados em um trabalho de tal temática – como a cítara indiana -, mas que acabam casando perfeitamente justamente por não se tratar de um disco de milongas campeiras e nativistas, mas de uma milonga que descobriu o asfalto, o apartamento, o computador – uma milonga que mudou de ares.


É impossível falar de seu último lançamento sem citar esses precedentes. Délibáb é a consolidação da milonga como vertente principal da obra de Vitor Ramil, que optou por musicar doze poesias e milongas alternadas de dois pampeanos: o aclamado escritor argentino Jorge Luis Borges e o celebrado poeta campeiro pelotense João da Cunha Vargas. Algo que se nota de primeira é a ausência de percussão. Isso torna o disco muito mais leve que os antecessores. Magistralmente bem tocado, percebe-se que houve um cuidado especial na elaboração das linhas de violão e seus timbres.

Não sei se foi intencional, mas as milongas do argentino e do riograndense possuem suas diferenças. As de Borges certamente encontram-se numa atmosfera mais urbana, e até mesmo mais fria. Músicas como “Milonga de Los Orientales”, “Milonga de Albornoz”, “Milonga de Los Hermanos” e a regravação de “Milonga de Manuel Flores” - que já era uma bela peça e melhorou em relação à versão original dos anos oitenta – não nos lembram campos ensolarados, mas ruas em meio ao nevoeiro. Em contrapartida, a melhor execução borgeana do álbum me pareceu “Milonga de Los Morenos”, cuja participação vocal de Caetano Veloso se encaixa como uma luva no clima tropical da faixa.

Mas as faixas dos poemas de Cunha Vargas são o grande destaque do disco. Milongas de levadas rurais, tons bucólicos e melodias mais doces, se adequando à temática folclórica do autor e à língua, como “Pé de Espora”, “Pingo à Soga”, “Chimarrão” e “Tapera”. Talvez pelo próprio Ramil ser lusófono – ou talvez pelo próprio autor deste texto o ser -, há algo nas milongas de Cunha Vargas que faz o ´enganche` e deixa o centroavante na cara do gol.

O único destaque do disco que eu realmente poderia chamar de negativo é a regravação de “Deixando o Pago”. Mesmo sendo tradicional de Ramil regravar suas músicas, essa nova versão tornou-se quase desnecessária, já que a única mudança realmente notória é no andamento mais lento, que acabou desagregando em qualidade.


A ausência de elementos adicionais universais, tão característicos nas milongas de Ramil, pode ser sentida, mas não ressentida, nesse álbum justamente por sua proposta. Délibáb é um disco de milongas por excelência: rigoroso, profundo, claro, conciso, puro, leve e melancólico.

Enfim, um trabalho de alto nível e muito bom gosto. Vitor Ramil vem junto com uma geração de artistas gaúchos, uruguaios e argentinos provando, álbum após álbum, que a milonga e o folclore não devem ser encarados apenas como representações de um estilo de vida antigo, música de bombachudos, dos CTGs ou dos churrascos de domingo, mas sim como um estilo musical que nos define culturalmente e geograficamente no mundo.

Essa aproximação da cultura rural e folclórica do mundo platino e pampeano, no qual o Rio Grande do Sul está irremediavelmente inserido, com o universo urbano que envolve grande parte da população, está ocorrendo e é, de certo modo, necessária no infindável ciclo da renovação cultural, tornando este disco de Vitor Ramil não um registro isolado, mas sim um novo capítulo na vida do artista e de uma tendência musical que vem se consolidando paulatinamente nesse canto da América do Sul.

Faixas:
1.Milonga de Albornoz – 2:31
2.Chimarrão – 4:34
3.Milonga de Los Morenos – 3:01
4.Mango – 3:34
5.Milonga de Los Hermanos – 3:48
6.Tapera – 3:45
7.Un Cuchillo en el Norte – 3:19
8.Deixando o Pago – 4:20
9.Milonga de Manuel Flores – 2:27
10.Pé na Espora – 3:28
11.Milonga de Los Orientales – 4:18
12.Pingo à Soga – 3:48

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