Heavy metal, é preciso pensá-lo


Por Miguel Pacífico
Jornalista
Delfos


Com alguma frequência no mundo da música pesada nos deparamos com discursos inflamados sobre a qualidade e a longevidade da mesma. Quase sempre o argumento primeiro é a fidelidade que o público desse gênero musical é capaz de construir em torno daqueles músicos cujo trabalho admiram. Qualquer pessoa minimamente familiarizada com o que falamos aqui sabe que, guardadas as devidas proporções, o que foi dito acima é facilmente passível de demonstração e, se necessário fosse, recorreríamos a inúmeros exemplos para tanto.

Porém, se queremos, nós, os envolvidos de alguma maneira com esse tipo de manifestação cultural, inseri-lo de maneira séria no rol dos gêneros artísticos relevantes, é necessário pensá-lo. Antes que o leitor diga que se trata tão e somente de uma forma de entretenimento, reafirmo e insisto que é necessário pensá-lo. Outros gêneros musicais que igualmente apresentavam-se como forma de entretenimento já foram, e ainda são, objeto de reflexão, então por que não nosso querido heavy metal?

Reafirmo: é necessário levá-lo às raias da reflexão sócio-cultural e fugir das armadilhas do discurso juvenil que busca conferir-lhe relevância comparando-o ao mundo efêmero de determinados nichos da música pop, cuja preocupação maior é descobrir quinzenalmente a grande novidade que vai tornar obsoletos todos aqueles trabalhos que você ou eu tanto consideramos.

Gravadoras, músicos, programas de rádio, grandes conhecedores do assunto e os seus muitos apreciadores construíram uma sólida rede paralela à grande mídia (ainda que com vícios próprios), e torna-se urgente pensar os mecanismos que sustentam e fazem funcionar todo esse submundo. É possível, e necessário, pensá-lo para assim conferir-lhe a legitimidade que tanto defendemos (qual de nós ainda não passou pelo constrangimento de tentar convencer alguém de que gostamos de algo que vai muito além da “
barulheira produzida por sujeitos de aparência duvidosa”?).

Utilizar a superficialidade da música pop como forma de defesa é estratégia obviamente fácil e igualmente frágil. Mas como nos sairíamos se tivéssemos que compará-lo a outros gêneros musicais detentores de maior profundidade? Gêneros que foram construídos e sustentados por nomes como Handel e Strauss, Robert Johnson e Muddy Waters, Charlie Parker e Duke Ellington, ou os nossos Noel Rosa e Pixinguinha? Gêneros que foram e são ainda hoje pensados, vide o conclusivo
História Social do Jazz, do reconhecido historiador Eric Hobsbawn, e a extensa bibliografia produzida a respeito da música erudita, dos grandes nomes da música popular brasileira e até mesmo sobre o movimento punk (foi de fato algo passível de ser classificado como movimento?).

Certamente que temos nossos referenciais: Ritchie Blackmore, Tony Iommi, Ronnie James Dio, Rob Halford, Ozzy Osbourne, Bruce Dickinson, Steve Harris, James Hetfield e tantos outros. Temos nossas raízes socialmente relevantes: porque, repentinamente, filhos de trabalhadores e ex-trabalhadores ingleses da indústria metalúrgica decidiram demonstrar sua visão de mundo através da música a partir da segunda metade dos anos setenta? E que características teria essa música? Porque, em uma determinada região metropolitana dos Estados Unidos avassaladoramente castigada com problemas sociais das mais diversas ordens no início dos anos oitenta, os jovens se apropriaram da estética criada pelos ingleses uma década antes e acrescentaram a ela doses cavalares de fúria e velocidade, gerando trabalhos que primavam por uma ferrenha crítica social?

Temos diversas variáveis estilísticas que vão do virtuosismo musical absoluto a demonstrações de musicalidade quase que instintivas, o que demonstra a flexibilidade interpretativa desse gênero musical. Temos a assimilação de influências advindas de outros gêneros, e é possível mencionar a citação de músicas típicas de diversos países ao redor do mundo. Temos uma preocupação da indústria que envolve esse segmento, no sentido de fazê-lo e apresentá-lo como algo economicamente viável, vide as estratégias de marketing e acabamento dos produtos atualmente colocados no mercado.

O que ainda não temos é uma reflexão séria e intelectualmente fundamentada no sentido de conferir ao heavy metal um lugar entre as manifestações culturais relevantes. Alguém se habilita a fazê-la?

Comentários

  1. Pra quem não ligou as coisas, a foto desse post é a capa original do livro Heavy Metal: A História Completa, lançado recentemente no país.

    Abraço.

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  2. As coisas vem melhorando neste ponto...ja temos livros como o próprio citado e alguns documentários como o Head Bangers Journey....
    o tempo é o melhor remédio pra essas coisas...com ele até o preconceito da midia vai acabando (ou diminuindo um pouco pelo menos) e estes movimentos passam a ser estudados de forma mais séria.....

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  3. O livro Heavy Metal: A História Completa é uma leitura recomendadíssima para quem quer entender o heavy metal, suas origens e influências. Muito bom, repleto de fatos e análises históricas. Estou na metade ainda, mas já recomendo para todos.

    Sempre postamos reviews de livros aqui na Collector´s, e vamos continuar fazendo isso. Gosto muito de ler sobre música, e acho que essas obras são fundamentais para entender os gêneros que gostamos.

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  4. Muito interessante esta postagem!Na minha opinião o heavy metal é um dos generos que mais preocupa em fazer uma música com alguma critica social.
    Mas,mudando de assunto,será que o blog aceitaria publicar uma resenha minha?E que achei um CD de Singles do Deep Purple num sebo aqui de Curitiba,e acho que o conteúdo dele deveria ser partilhado com mais pessoas.
    Se houver possibilidade de que minha resenha seja publicada,e s[o entrar em contato comigo pelo e-mail(maxsilva24@hotmail.com)que eu mando a resenha pra alguém ai.

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  5. Este comentário foi removido pelo autor.

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  6. Pensar o Heavy Metal é um trabalho árduo, requer dedicação, conhecimento, capacidade, discernimento e muito mais.

    É necessário vê-lo como um todo, o Heavy Metal em geral, mas também especificamente cada um de seus mais importantes sub-gêneros, e tentar entender como e porque black sabbath virou metallica, cannibal corpse, mayhem, slipknot, system of a down, etc.

    São infindáveis os pontos a discutir: as bandas, as músicas, as vertentes, as técnicas, a originalidade, o momento histórico, a relevância social/intelectual/artística, um sem números de coisas a avaliar.

    Porém, para se pensar seriamente sobre o Heavy Metal como produção humana relevante de alguma forma é indispensável uma coisa mínima e que depende exclusivamente do indivíduo: tolerância.

    Um clamor generalizado de todos que ouvem rock/metal em geral é a discriminação perpetrada por ainda grande parcela da sociedade.

    Porém dentro do próprio ambiente "reservado" aos apreciadores do gênero é que se encontram as mais brutais formas de preconceito, incluindo manifestação de agressividade de fato.

    "Melódico é melhor que thrash", "black é melhor punk", "new metal é pior que tudo", "quem ouve death não pode se vestir assim", enfim, é necessário entender que o único que tem um gosto relevante e que consegue apreciar todas as características importantes da música é o seu próprio "eu".

    Pior que o desrespeito aos gostos/opções alheios é querer impor o que pode ou não aos outros.

    "O Metallica se vendeu no black album", "quem ouve darkthrone não pode ouvir pearl jam", "cristãos não podem ouvir metal"... são inúmeros dogmas, criados de forma tão aleatória que quem se propor a seguir todos simplesmente não vai poder fazer nada na vida.

    A pressão dentro do meio é tão intensa que muitos preferem se esconder a assumir determinados aspectos de sua personalidade.

    A questão é absurdamente ampla até para imaginar esgotá-la em um simples comentário, então alguns exemplos de coisas que não seriam toleradas (pessoalmente já vi literalmente tiros e sangue em muitos shows por menos) se os autores não fossem pessoas de muito renome. Apenas fatos sem juízo de valor:

    - Black Sabbath deveria se chamar Earth e tocar blues;

    - Alex Skolnick saiu do Testament da primeira vez e foi tocar jazz;

    - Tom Araya (Slayer), Dave Mustaine (Megadeth), David Ellefson (Megadeth), Peter Steele (Type O Negative), entre muitos outros são cristãos;

    - Quorthon (Bathory) gravou albuns de música pop/rock/grunge;

    - Bruce Dickinson (Iron Maiden) gravou albuns de hard rock e grunge;

    - Nick Holmes (Paradise Lost) se diz grande fã do Trouble (banda cristã);

    - Nergal (Behemoth) é amigo dos integrantes do As I Lay Dying (banda cristã);

    - Carcass e Pain (banda de Peter Tägtgren, líder do Hypocrisy) gravaram músicas da Björk;

    - Children of Bodom gravou covers de Britney Spears e Ramones;

    - Paul Di'anno (Iron Maiden) tinha assumidamente mais identificação com o punk que com o metal;

    - O Megadeth gravou cover do Sex Pistols;

    - O Slayer gravou um album inteiro só com covers de bandas punk/hardcore;

    - Rob Halford (Judas Priest) e Gaahl (Gorgoroth) são gays;

    - Rob Halford tirou grande parte de suas inspirações para seus figurinos do "submundo" gay/fetichista britânico;

    - Kerry King (Slayer) gravou participaçam em uma música e clip do Sum 41;

    - System of a Down e The Cardigans gravaram covers do Black Sabbath;

    - Luiz Caldas foi ao Silvio Santos descalço e com uma camisa do Kreator.

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  7. (...concluindo...)

    Então quando você vê aquele emo, souber que aquele cara que toca em uma banda de death metal foi em um show de funk, aquele seu conhecido prefere banda A a B, aquele fã de Satyricon ouve também Limp Bizkit, conversar com seu amigo que só ouve pagode, quando você se irritar com qualquer coisa assim lembre-se daquela pessoa que lhe disse que rock é barulho e reflita que é necessário respeito para ser respeitado, e quando você tiver esse respeito, que na verdade é a parte mais fácil, tente entender o resto, antes disto só sairá ignorância, intolerância e ufanismo.

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  8. Seguindo a linha dos comentários do Julio eu gostaria muito que alguem escrevesse algum texto sobre uma história que conversamos em um dos encontros do pessoal da Collector´s Room no começo desse ano.
    Alguem comentou sobre integrantes das bandas de metal extremo europeu visitando a Galeria do Rock e procurando discos das bandas glam. Isso é senssacional...Seria muito engraçado algum relato nesse sentido.

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  9. Muito bom seu comentário, Júlio. Penso por aí mesmo - e não apenas em relação ao metal, mas à música como um todo.

    E é claro que os músicos não ouvem e consomem apenas aquilo que tocam. Seria bem interessante um relato como o citado Fernando por aqui.

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  10. Essa foi uma das melhores semanas da collectors....muitas discussões importantes e relevantes

    abraços

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  11. Sem dúvida é relevante o estudo sócio-cultural do heavy metal como sugerido, mas isso já é feito no meio acadêmico, talvez o ponto seja como se chegar a esses estudos. Não dá para nós pobres leigos fazermos esse trabalho, pois para ter validade teria que ser feito cientificamente e não de forma empírica.

    De qualquer forma, penso que o que pode ser aprofundado seria por que nós ouvintes temos a tendência à segmentação e ao preconceito. A questão transcende inclusive o âmbito musical e segue para outros campos. Por que o que é de meu gosto e interesse presta e o resto não?

    Valeu!

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