Rigotto´s Room: Joe Strummer, o chefe militar do punk rock!


Por Maurício Rigotto

Estou de volta, após um mês de férias, período em que não escrevi uma única linha sobre música e me dediquei a escrever mais um conto para uma futura antologia.

Confesso que até o inicio dessa semana eu não tinha ideia sobre qual seria o tema de minha próxima coluna, até que assisti a um dos melhores documentários já feitos sobre um artista de rock. Não restava mais dúvidas, a pauta estava escolhida. Estou falando de The Future is Unwritten, filme dirigido por Julien Temple sobre a efêmera, porém intensa vida de Joe Strummer, líder do The Clash.


Descobri o Clash ainda criança, quando comecei a me interessar por rock. Eu já tinha alguns discos do Led Zeppelin, Pink Floyd, Rolling Stones e outros, e quando vi um álbum do Clash em uma loja me chamou a atenção que os integrantes tivessem cabelos curtos, corte moicano e doses cavalares de brilhantina. Até os meus onze anos acreditava que todos os roqueiros fossem cabeludos com visual hippie. A capa de Combat Rock foi meu primeiro contato com o punk rock. Levei o disco para casa e ao ouvir “Rock the Casbah”, “Know Your Rights” e “Should I Stay or Should I Go” fiquei imediatamente fã do grupo, o mais significativo surgido com o rótulo de punk rock.

Deixando para trás minhas reminiscências de garoto e voltando ao início dessa semana, fiquei emocionado ao ver esse documentário sobre um de meus heróis. Riquíssimo em imagens raras, The Future is Unwritten conta que John Mellor era filho de um indiano que se tornou cidadão inglês dois anos antes dele nascer. Seu pai, um diplomata de extrema esquerda, foi enviado para a Turquia, onde John nasceu em 1952. Durante sua infância, John morou por dois anos em Cairo, no Egito; dois anos na Cidade do México, onde frequentou uma escola onde ninguém falava inglês, somente espanhol; e dois ou três anos em Bonn, na Alemanha Ocidental.


Quando finalmente John veio para a Inglaterra, foi enviado com David, seu irmão dezoito meses mais velho, a um internato, onde somente veria seus pais nas férias, uma vez por ano. Isso mudou sua vida. John se deu conta que se o mandaram para longe, deveria esquecer seus pais e se virar sozinho. Enquanto David era um garoto muito tímido, calado e introvertido, John era o oposto, um rebelde, provocador, péssimo aluno, que não tardaria a formar uma gangue e se tornar o líder dela.

Nas férias, foi enviado para encontrar os pais em Malawi, na África. Impressionado com a cultura local tão diferente de seu país, essa viagem e as anteriores trouxeram a John uma outra perspectiva do mundo em uma idade muito precoce. De volta às aulas, trouxe muitas histórias exóticas e uma coleção de discos com todo o tipo de música, como o africano Mzikayifani Buthelezi e um novo grupo inglês chamado The Rolling Stones.

O filme mostra imagens caseiras de John e David na infância, filmadas em super 8. Alterna depoimentos de seus amigos reunidos em um luau em roda de uma fogueira com analogias com o livro A Revolução dos Bichos, de George Orwell.

Na adolescência, um dia entraram no quarto do pacato David e encontraram um ambiente sombrio, com suásticas nazistas, material fascista, o livro Mein Kampf de Adolf Hitler e muito material de extrema direita. David então se suicidou com uma overdose de pílulas. John foi quem encontrou o corpo. Embora nunca tenha entendido o que se passou com o irmão, e jamais tocasse no assunto, foi uma experiência traumática que marcaria toda a sua vida.


O jovem John passou a viver como um hippie rebelde, viajando de carona e exibindo uma vasta cabeleira. Ao lado de moradores de rua, arromba um apartamento desocupado e passam a morar no local como uma comunidade, muitas vezes sem terem o que comer. Lá John forma a banda The 101’ers (pronuncia-se em inglês: "the one o oners").

Em abril de 1976, os 101’ers tocaram com os Sex Pistols no Nashville Room, quando John descobriu o punk rock e viu ser esse o caminho a ser seguido. John acabou com os 101’ers, mudou seu nome para Joe Strummer, cortou os cabelos e rompeu com a estética hippie, o que seria visto por muitos como uma traição a ideologias do grupo a qual ele fazia parte.


Joe Strummer então conhece Mick Jones e Paul Simonon e formam o The Clash. Completaria a banda o baterista Topper Headon. O The Clash logo chama a atenção pela sua postura politizada e contestatória, além de se destacar no cenário punk por ter um conteúdo bem mais rico que os dois ou três acordes básicos que as outras bandas apresentavam. Joe passou a se auto-denominar o Chefe Militar do Punk Rock. Dinheiro não importava, fama sim. A partir de 1977, o Clash conquistaria a Grã-Bretanha, os Estados Unidos e o mundo todo como uma das melhores e mais bem sucedidas bandas de rock do planeta.

Após dois álbuns incendiários, onde o Clash cantou as desventuras da classe operária explorada por patrões inescrupulosos, raras oportunidades de carreira e confrontos entre polícia e ladrões de banco, a banda lança o álbum duplo London Calling, um dos melhores discos de rock já lançados, que além do punk rock apresentava uma variada gama de estilos como reggae, dub, rockabilly, jazz e hip-hop.

Em 1980 o Clash veio ainda mais audacioso com Sandinista!, um disco triplo que a banda exigiu que fosse vendido pelo preço de um álbum simples, para terror da gravadora. Nos shows, Joe Strummer e Mick Jones passaram a usar lenços vermelhos nos rostos como os sandinistas, guerrilheiros de esquerda que formaram um movimento político armado com a finalidade de derrubar o ditador Anastasio Somoza do governo da Nicarágua, na América Central, chamando a atenção do mundo para a guerrilha civil que até então a imprensa mundial teimava em ignorar.


Tensões começaram a aflorar nas gravações de Combat Rock, em 1981. Enquanto Mick Jones se sentia satisfeito e acomodado como um rock star milionário, Joe se sentia péssimo, como alguém que havia se transformado em tudo que ele mesmo repudiava. Não se sentia mais confortável cantando canções como “Career Opportunities” e “Clamptown”, que criticavam e ridicularizavam os ricos, sendo ele agora um deles. O dinheiro não importava para Strummer. Joe na época era visto em companhia dos ícones beatnicks Allen Ginsberg e William Burroughs.

Em 1982 o baterista Topper Headon deixou a banda – ou foi demitido – para tratar o vício em heroína. Joe Strummer pegou um trem para Paris sem avisar ninguém e foi dado como desaparecido. Apelos por alguma notícia de seu paradeiro foram divulgados pela imprensa e geraram dúvidas se não seria alguma jogada de marketing. Até mesmo um detetive foi contratado para descobrir o que teria acontecido com Joe. Quando Strummer retornou, as brigas entre Joe e Mick chegaram a níveis insuportáveis, culminando na expulsão de Mick Jones no ano seguinte. Era o rompimento definitivo entre os dois líderes do Clash. Joe Strummer e Paul Simonon ainda recrutaram três novos integrantes e lançaram o álbum Cut the Crap, um disco horrível que somente serviu para manchar o nome da banda. O próprio Strummer renegaria o álbum mais tarde. Era o fim da linha para uma das melhores bandas de rock que já existiram.


Strummer vagou perdido por vários anos após o fim do Clash. Precisava exorciar o fantasma de sua ex-banda e recuperar a auto-confiança de outrora. Participou em 1987 do filme Straight to Hell (nome de uma música do Clash) de Alex Cox e compôs a trilha do filme Walker, também de Cox, onde apresenta uma mescla de música tradicional centro-americana com música mexicana, com resultado bastante interessante onde percebe-se o ecletismo musical que Joe consolidou ainda na infância.

No ano seguinte Joe arriscou um disco solo, Earthquake Weather, acompanhado pela The Latino Rockabilly War. Strummer ligou para o guitarrista Zander Schloss e disse empolgado que havia contratado um baterista chamado Ramon Bajaranda. Quando Zander perguntou se ele era bom, Joe respondeu: “Sei lá, nunca vi tocar, mas o nome dele é Ramon Bajaranda, onde vou encontrar alguém com um nome desses? Tem que ser ele ...”.

Strummer voltaria a fazer cinema figurando em Mystery Train, do diretor e seu amigo pessoal Jim Jarmusch. Joe então foi convidado a substituir o guitarrista do The Pogues em uma turnê, o que lhe devolveu a confiança de formar uma banda e voltar a fazer shows.


Após dez anos perdido e desorientado, o músico forma a banda Joe Strummer & The Mescaleros, que lançaria três bons álbuns e seguiria na estrada até 2002. Joe também passou a comandar um programa da rádio, o Joe Strummer’s London Calling. No dia 15 de novembro de 2002, em um concerto beneficente de Joe Strummer & The Mescaleros em prol ao Corpo de Bombeiros, seu ex-parceiro Mick Jones estava na plateia. Mick e Joe não se falavam desde a briga que culminou na saída do primeiro do The Clash vinte anos antes. Durante a canção “Bankrobber”, do Clash, Jones não resistiu e invadiu o palco. Mick Jones tocou com Joe Strummer as canções “White Riot” e “London’s Burning”. O encontro histórico dos líderes do Clash está registrado em The Future is Unwritten. Uma semana depois, no dia 22 de novembro, Joe Strummer & The Mescaleros fariam o seu último show.

Exatamente um mês após seu derradeiro show, em 22 de dezembro de 2002, Joe Strummer morreu repentinamente, vitimado por um defeito congênito no coração que jamais havia sido diagnosticado. Estava com 50 anos. Uma de suas últimas gravações foi um dueto com Johnny Cash, uma regravação de “Redemption Song” de Bob Marley. Curiosamente, Cash também morreria meses depois. No filme, uma das amigas de Joe da época em que moravam no apartamento invadido conta que, em sua última conversa, Joe brigou com ela porque ela estava tentando parar de fumar, argumentando que todos os escritores que admiramos no século XX não seriam nada se não houvesse a nicotina. Inclusive acreditava que os fumantes deveriam ser proibidos de comprar coisas de não-fumantes. Era mais uma forma da rebeldia irônica e excêntrica de Strummer se manifestar.


The Future is Unwritten é dirigido por Julien Temple, que tem em seu currículo filmes como The Great Rock’n’Roll Swindle (1979), The Filth and The Fury (2000) e There’ll Always Be an England (2008), todos sobre os Sex Pistols; Absolute Beginners (1986) com David Bowie; Running Out of Luck (1986) com Mick Jagger e Stones at The Max (1991) com os Rolling Stones. Julien é filho da ex-atriz mirim Shirley Temple. Em The Future is Unwritten há depoimentos de fãs de Strummer como os atores John Cusack, Steve Buscemi, Matt Dillon e Johnny Depp (travestido como o pirata Jack Sparrow); os diretores Jim Jarmusch e Martin Scorcese e músicos como Mick Jones e Topper Headon (The Clash), Steve Jones (Sex Pistols), Bono (U2), Bobby Gillespie (Primal Scream) e Flea e Anthony Kiedis (ambos do Red Hot Chili Peppers).

O filme estreou em 20 de janeiro de 2007 no Festival de Sundance e foi projetado no mês seguinte no Dublin Filme Festival. Recebeu bons comentários da crítica inglesa e norte-americana e ganhou o prêmio de melhor documentário no British Independent Movie Awards de 2007.

Realmente, o futuro não está escrito, o futuro é a gente quem faz.

Comentários

  1. Belo texto, e o meu contato com o Clash foi parecido. Durante minha adolescência o Clash foi minha banda favorita, e continua figurando entre as "prediletas da casa". Ainda não assisti o filme, mas pretendo fazer isso em breve. E parabéns pela coluna, com ótimos textos sobre os melhores sons.

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  2. Eu curti muito clash quando criança (eu tinha o q, 5, 6 anos). O Micael tinha uma fita com o Story of the Clash q eu furei ela de tanto que ouvi!

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  3. Na minha opinião, o Clash foi uma das melhores bandas da história do rock, e London Calling é um dos discos mais fantásticos já gravados.

    Ótimo texto, como de costume.

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  4. Rigotto, que baita texto... Quase fui às làgrimas ao ler o mesmo...

    London Calling está no meu top 5 de melhores de todos os tempos, e o Clash... bem, o que dizer de uma das melhores bandas da história, aquela que definitivamente provou que o punk rock não era apenas barulho e rebeldia adolescente, mas sim um estilo importante e com um lugar merecido na história do rock?

    Não sabia da existÊncia deste documentário, bem como de muitas das informações que constam no texto... e olha que ouço o Clash há uns 20 anos, portanto não sou "fã novo", não... agora é correr atrás e tentar garantir uma cópia...

    Ah, e Julian Temple tratando de música normalmente é sinônimo de material de qualidade...

    Só para constar, o Mairon não chegou a furar a fita, porque eu proibi ele de ouvi-la pouco antes de a mesma se partir... nossa família que nos aturava ouvindo e cantando Clash... não devia ser fácil...

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  5. Texto muito bem sintetizado, realmente citando coisas relevantes sobre a carreira tanto do Strummer quanto a do Clash. Só tenho um adendo: o título do último disco do Clash é "Cut The Crap", não "Cup", provavelmente um erro de digitação.

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  6. Obrigado pelas palavras elogiosas.

    A Bárbara tem toda a razão, o correto é "Cut" e não "Cup". Foi um erro de digitação e me passei na correção, quando eu vi, era tarde e o texto já estava postado. Obrigado pelo adendo!

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  7. The Clash não é das bandas que sou fascinado, mas gosto pakas do London Calling, e esse texto me dxou louco pra conhecer o documentário!
    Parabéns ao Maurício por mais uma ótima matéria!

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