Desatando o nó da orelha

Quem acompanha a Collectors Room sabe que, desde o início do site, sempre propagamos aos quatro ventos a ideia de que existem apenas dois tipos de música: a boa e a ruim. Por este motivo, aqui você sempre irá encontrar matérias tanto de rock quanto de blues, de heavy metal e jazz e assim por diante, procurando colocar no ar textos que mostram o que há de melhor nos mais variados estilos.


Agora, falando de forma bem pessoal, eu possuo as minhas manias, assim como todo mundo. Uma delas é ter um certo delay, um atraso, em relação aquilo que é elogiado pela maioria e que, via de regra, acabo sempre desconfiando. É o famoso “don’t belive the hype” perpetuado pelo Public Enemy com o single de mesmo nome presente em seu segundo disco, It Takes a Nation of Millions to Hold Us Back, de 1988.


Tudo isso pra dizer que só agora, em meados de 2012, é que fui ouvir o celebrado segundo disco de Criolo, Nó na Orelha, com a devida atenção. Lançado há mais de um ano atrás, em 25 de abril de 2011, o trabalho foi exaltado por grande parte da imprensa musical brasileira, que elogiou o álbum sem economizar adjetivos. O play foi inclusive eleito pela Rolling Stone como o melhor disco brasileiro de 2011, e uma de suas faixas, “Não Existe Amor em SP”, a melhor música brasileira do ano passado.


Nó na Orelha me impressionou demais. Estou há dias ouvindo o álbum sem parar. O que mais chama a atenção é que não é um disco de rap. Ou melhor, não é um disco apenas de rap. Kleber Cavalcante Gomes, nome de batismo de Criolo, conseguiu gravar um CD que transita com qualidade e autoridade inquestionável por todos os gêneros por onde se aventura. Do afrobeat da faixa de abertura - “Bogotá” - ao quase bolero de “Freguês da Meia Noite”, dos ecos de Chico Science e Nação Zumbi ouvidos em “Mariô” ao reggae de “Samba Sambei”, fechando tudo com o samba malandro “Linha de Frente”, Criolo faz em Nó na Orelha uma espécie de inventário da atual música brasileira. Essa variedade de caminhos sonoros é uma das principais forças do trabalho.



O outro, como não poderia deixar de ser, são as letras. Muito bem escritas, inteligentes e com ótimas sacadas, vão de críticas sociais a causos do cotidiano, tudo com autenticidade e uma proximidade desconcertantes. É poesia concreta sem arrogância, brincando com a linguagem das ruas sem cerimônia, muitas vezes não respeitando a gramática mas sempre alcançando o público, que é o que realmente importa.


As canções, em sua maioria, são construídas a partir de bases tocadas por músicos de verdade. Os samples e batidas eletrônicas estão presentes, é claro, mas são apenas mais um elemento da musicalidade de Criolo e não o elemento principal. Isso faz com que o disco soe de maneira orgânica, viva e profunda, com uma harmonia que torna tudo ainda mais forte.


Há algumas obras-primas em Nó na Orelha. A principal delas é a belíssima “Não Existe Amor em SP”, uma das mais lindas músicas gravadas por um artista brasileiro nos últimos anos. Criolo declara o seu amor pela capital paulista de um ponto de vista único, não economizando na melancolia e declamando versos inspirados sobre uma melodia que evolui em um arranjos de cordas. De arrepiar!


Outros grandes momentos ocorrem na já clássica “Subirusdoistiozin”, em “Mariô”, e “Freguês da Meia Noite” (com outra letra apaixonada pela terra da garoa). E claro, as investidas no rap são tiros fortes que acertam o alvo de primeira. “Grajauex” tem uma letra sensacional, enquanto “Sucrilhos” fala do preconceito racial sem soar panfletária, cantando o orgulho da pele negra na manha e com carinho, alcançando um resultado final que faz pensar. “Lion Man” é outra que está entre as grandes faixas de Nó na Orelha, um rap com estrutura clássica onde Criolo recita as desventuras não apenas suas, mas também de seus semelhantes.


E usando como pano de fundo o universo criado pelo Walt Disney brasileiro, Maurício de Souza, encerra o disco com o samba de fundo de quintal “Linha de Frente”, onde os personagens que fazem parte da mitologia de pelo menos duas gerações ganham novos e inesperados contornos.



Com Nó na Orelha, Criolo alcançou algo extremamente difícil: o disco é capaz de agradar tanto um adolescente quanto a sua avó. Você irá curtir, e seu pai também. Essa aceitação unânima ajuda a desmistificar a ideia equivocada de que o rap tem que falar sempre de temas sociais e violentos. Existe espaço para um cara como Criolo criar um álbum que parte do gênero e trilha diversos caminhos para contar a sua história, assim como existe espaço para um Racionais MC’s seguir o seu objetivo e denunciar as mazelas que passam diante de seus olhos. 


Você pode gostar de Criolo assim como pode curtir Mano Brown, tudo junto e ao mesmo tempo. Afinal, como nós dois sabemos, existem apenas dois tipos de música: a boa e a ruim, não é mesmo?

Comentários

  1. Fala Pessoal do Collectors Room, blz?

    Realmente esta matéria esta um pouco "atrasada", mesmo assim muito bem feita e, como é de costume, muito rica.

    Parabéns por ela. Este disco pra mim não é somente o melhor do ano passado, é um dos melhores da minha coleção, rivalizando lado a lado com os grandes.

    Fico feliz pelo respeito empregado ao artista, que não é só músico, é ativista da periferia e movimento negro.

    Parabens!

    Abraços

    Mumu Silva
    www.obenedito.com

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  2. E acrescento que toda essa riqueza musical pode - e deve - ser conferida AO VIVO também! Altamente recomendável e empolgante!

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  3. Ouvi essa belezinha no ano passado mesmo...fiquei de queixo caído...entrou fácil na minha lista de melhores do ano...

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  4. Boa Ricardo, que você consiga desatar o nó na orelha de pelo menos uma parte do público bitolado do heavy metal.

    Abraços e parabéns!!!

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  5. É incrível, foi só o cara lançar um álbum com uma pegada mais MPB, ou cult, como os intelectuais e pseudos chamam, que o cara é enxurrado de elogios, sei que é muito difícil de perceber, mas o álbum Ainda há tempo, é muito melhor do que esse, há, tinha me esquecido, não é "cult" o suficiente pra vc não é.

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