Discoteca Básica Bizz #062: Jorge Ben - Samba Esquema Novo (1963)


O Brasil do início dos anos 1960 era um país de grande efervescência cultural, onde o folclore e as artes populares não haviam ainda sido condicionados em frascos de formol e serviam de matéria-prima para as novas gerações. Nesse caldeirão quente cabiam tanto a reinvenção do samba com a bossa nova, quanto os primórdios da sensibilidade pop e rock and roll da Jovem Guarda. E durante décadas estes extremos - na época, ideologicamente inconciliáveis - só se tocaram na música de Jorge Ben.

De nobre linhagem etíope e musicalidade maturada na noite carioca, Jorge Ben trouxe para o samba pós-bossa um novo violão - tão original quanto o de João Gilberto. Foram os dois, aliás, mais Tom Jobim, os grandes artesãos do "samba híbrido", sincrético, desfolclorizado. Em comparação com a minuciosa dissecação harmônica de João Gilberto, o violão de Jorge Ben também fazia a festa nas síncopes e contratempos. A diferença estava justamente nesta costura: o bordão injetou tanto veneno rítmico que acabou dispensando qualquer tipo de contrabaixo para as gravações. A voz de Jorge recebe apenas um sedoso colchão formado por uma bateria mezzo jazzy, encorpada com chocalhos e tamborins e entrecortada por ocasionais frases de piano e do naipe de metais - além, claro, do violão alquímico de Ben.

Quando Samba Esquema Novo foi para as lojas, a fissura já estava devidamente instalada pelo sucesso do compacto que o antecedeu: "Mas Que Nada!" e "Chove Chuva". Tamanho foi o impacto que dois anos depois Jorge estava nos Estados Unidos desfrutando o status de hitmaker, ainda que através das pasteurizadíssimas versões de Sérgio Mendes para estas duas canções.


“Mas Que Nada!" abre o disco embalando um êxtase de longos melismas para, no final, entrar em órbita com o scat singing. Nesse tipo de alucinação vocal - e em suas particularíssimas letras - Jorge Ben deu um salto poético enorme. Espécie de novo Noel Rosa, mandou para o espaço preciosismos, parnasianismos, concretismos e entronizou uma fusão da gíria e da prosa malandra de esquina com um vocabulário próprio. Palavras como "saiubá" e "sacundin" talvez não signifiquem nada, mas moduladas melódica e ritmicamente podem explicar para nossos Olavos Bilac niu-uêive-pós-pânqui a fundamental diferença entre versos para ler e versos para cantar. "Por Causa de Você, Menina", que seria seu terceiro hit, radicaliza essa prosa intergalática ao pronunciar: "Voxê passa e não me olha, mas eu olho pra voxê".

Ao longo da década, enquanto João Gilberto isolava-se cada vez mais no resgate e copydesk dos anos dourados da MPB, Jorge Ben soltava todas as amarras para experimentar. Retornando dos EUA, encostou o violão e passou a tocar uma guitarra elétrica - só por essa foi expulso do pseudo-refinado, pseudo-revolucionário programa O Fino da Bossa. Jorge foi jogar no time adversário, num outro programa chamado Jovem Guarda. O resultado dessa associação - o LP O Bidú: Silêncio no Brooklin, de 1967 - merece ser ouvido: tem baião psicodélico, muita eletricidade e efeitos de gravação de fazer inveja aos californianos da época. 

Daí para a confraria tropicalista foi um pequeno pulo, sinalizando uma safra sensacional que amarra o final dos anos 1960 ao início dos 1970. Basta citar "Que Pena", "Que Maravilha", "Charles Anjo 45" (talvez seu magnum opus), "País Tropical", "Fio Maravilha" e ''Taj Mahal". Mesmo na década de 1980, o alquimista entrou de sola com discos pioneiros na utilização de samplers - Dádiva (1983) e Sonsual (1984). O que veio depois não está à altura, infelizmente. Mas quem se arrisca a prever o que ainda vem por aí?

Faixas:
A1. Mas Que Nada - 3:02
A2. Tim Dom Dom - 2:21
A3. Balança Pema - 1:29
A4. Vem Morena,Vem - 1:59
A5. Chove Chuva - 3:06
A6. É Só Sambar - 2:06

B1. Rosa, Menina Rosa - 2:15
B2. Quero Esquecer Você - 2:22
B3. Uála Uálal - 2:09
B4. A Tamba - 3:04
B5. Menina Bonita Não Chora - 2:07
B6. Por Causa de Você - 2:47

Texto escrito por José Augusto Lemos e publicado na Bizz #062, de setembro de 1990

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