'Ao Vivo No Mosh', do Smack: uma pérola do rock underground brasileiro


Na Folha Ilustrada do dia 26 de março de 1985, o respeitado jornalista cultural José Augusto Lemos saudou o primeiro álbum do Smack, Ao Vivo No Mosh, e também o álbum de estreia da Legião Urbana, em resenha conjunta, como uma guinada radical no rock nacional. Por qual motivo? Bem, a cena do rock nacional da época era então dominada pelo padrão raso, engraçadinho, caricato e bobo. Efusivamente José Augusto escreveu: "Até que enfim, agora é sério. Ouça estes dois discos e, na pior das hipóteses, pelo menos há sangue e soda cáustica mais que suficientes para lavar o pop nativo de seu bom mocismo, seu laquê e seu bronzeado”.

O lançamento de obras tão expressivas em termos artísticos não só elevava o nível do jogo, como no caso da Legião, que conseguiu vasta visibilidade nacional, impelia as outras bandas a buscarem o mesmo. O surgimento do Smack representa, ainda, outra grande ruptura: a maior parte do rock praticado em terras brasilis por aqueles tempos era rigorosamente calcado nos padrões de bandas gringas, quase sempre caindo na malha fina do plágio ou cópia. Fazendo uso de referências claras, o Smack conseguiu um som original, no mesmo padrão mundial do que se fazia na época.

O grupo era formado pelo guitarrista e vocalista Sergio Pamplona Jr, mais conhecido como Pamps (que já tinha antecedentes como baixista do Itamar Assumpção no Isca de Polícia), o guitarrista Edgard Scandurra (da banda Ira!), a grande Sandra Coutinho no baixo (Mercenárias) e o baterista Thomas Pappon (que tocava na época com o Voluntários da Pátria e posteriormente formaria o Fellini). Pamps conheceu Sandra quando integrou o grupo que acompanhava Eliete Negreiros, no qual tocou baixo e Sandra, teclado. Com Edgard, tentaram sem muito sucesso montar uma banda. Seguiram persistindo na ideia tocando juntos durante o período de 1983-1984, mas as coisas apenas desempacaram com a entrada de Thomas Pappon. Reunida esta formação, a química e entrosamento fluído entusiasmaram os envolvidos. De fato, Pappon ficou tão animado que abandonou o Voluntários para se dedicar completamente ao Smack (para o espanto de todos, afinal, o Voluntários da Pátria era uma banda respeitada na cena, enquanto o Smack era apenas iniciante). A bagagem sonora de cada um deles convergiu numa mistura musical que rapidamente angariou respeito no underground e que segue cultuada ainda hoje pelos mais letrados em rock brazuca. 

Visando uma otimização de despesas e tomando proveito da afinidade natural entre os músicos, a banda decidiu gravar sua estreia ao vivo no estúdio. Fizeram então uma sessão de várias horas passando o repertório todo várias vezes e depois escolheram os melhores takes para mixar. Pamps e Edgard realizaram ainda uma outra sessão à parte para recolocar alguns vocais, pois no dia da gravação estavam gripados. As gravações ocorreram no estúdio Mosh com a presença de alguns amigos, convidados pela banda para dar mais "clima" para a coisa, e segundo Sandra, tudo foi muito fácil e divertido de fazer.

Lançaram o trabalho pela gravadora independente Baratos Afins em 1985, atraindo atenção tanto da crítica nacional como da internacional - na coluna Underground, da revista americana Spin na edição de julho de 1986, o álbum ganhou uma descrição elogiosa: "Uma vibrante e vigorosa fatia de vinil do raramente exposto rock underground brasileiro. Funky, às vezes sincopado e explodindo em energia lúdica, o som do Smack é duro e seco, com núcleos angulares de guitarra e golpes percussivos de baixo". Hoje, o disco permanece como um dos mais duradouros legados não só da obscura cena paulista underground, como de todo o rock nacional.


O play se inicia com "Fora Daqui", com suas guitarras faiscadas e difusas, baixo em sincopado relevo e bateria sólida como uma rocha em suas dinâmicas, apresentando um som essencialmente denso e obscuro, permeado de contrastes dissonantes que promovem um colorido à paisagem geral. "Onde Li" traz a influência dos Talking Heads e do suingue duro de A Certain Ratio e Gang of Four digeridos e perfeitamente aglutinados à linguagem própria da banda, descambando para o rockabilly em seus segundos finais. "O Clone" segue na linha rockabilly traçada no final da faixa anterior, enquanto "Desespero Juvenil" é conduzida por um caminho sonoro mais pungente com sua comovente letra "beco sem saída". As letras, aliás, são uma espécie de poesia decadentista que, perfeitamente ajustadas ao som praticado pelo grupo, mais sugerem que descrevem.

Segundo os que o conheciam, Pamps era um cara de reais ideias pessimistas, o que fica nítido no tom confessional de versos como "Sei me desesperar só não sei viver / se ninguém me encontrar porque não morrer / não sei, não sei o que vou fazer/ já sei, já sei, mas não pode ser”, de "Desespero Juvenil".

Interessante notar a diferença no playing do Scandurra aqui e no Ira!. Tendo de se ater a um estilo de composição mais tradicional na banda na qual ganhou reconhecimento nacional, no Smack, Edgar aparece com um estilo mais diverso e livre. A instrumental "N° 4" e a cortante "16 e Pouco" são nítidos exemplos disso.

"Limite Eternidade" dá seguimento reunindo tensão e atmosfera climática. "Faça umas Compras", a faixa subsequente, parece uma filha insólita de um casamento entre Talking Heads fase Fear of Music e Jorge Ben, e conta com uma das melhores letras já escritas por Edgar Scandurra. Ameaçadoras, "Chance de Fuga" e "Mediocridade Afinal" encerram o álbum. Todas as canções são de curta duração e a maneira como foram produzidas as coloca sob um clima de constante urgência. Se a ansiedade compulsiva pudesse ser ouvida, este seria o som.

Cada vez mais ocupado com o Ira!, Edgar teve de abandonar a banda, que continuou como trio. O grupo remanescente lançou no ano seguinte o álbum Noite e Dia, tão bom quanto o primeiro. Depois, pelo esgotamento da relação entre os integrantes e as muitas ocupações de cada um deles - todos tinham emprego e faziam parte de outras bandas, com exceção do Pamps, o único exclusivo do grupo -, o Smack acabaria por encontrar seu fim.

Em 1996 se reuniram para uma apresentação no Aeroanta, em São Paulo, sem Thomas, que havia se mudado para a Inglaterra. Já em 2005, com Pitchu Ferraz assumindo as baquetas, realizaram alguns shows, e em 2008 soltaram o EP Smack 3 pela gravadora Midsummer Madness, que teve seu lançamento sucedido por algumas apresentações.

No ano de 2015 Pamps veio a falecer, causando grande comoção entre seus colegas e os admiradores na cena e encerrando definitivamente esse capítulo essencial e pouco reconhecido do rock brasileiro.

Por Artur Barros

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