Chega de serial killers


Enquanto escrevo esse texto, Dahmer: Um Canibal Americano, série da Netflix sobre o serial killer Jeffrey Dahmer, é um fenômeno de público. A produção de Ryan Murphy estreou dia 21 de setembro na plataforma e está em primeiro lugar como a série mais assistida da Netflix em diversos países. E essa atração não acontece só em relação a Dahmer, mas com praticamente todos os programas que trazem serial killers reais, ou crimes que realmente aconteceram. Há até um termo para isso: true crime. E esse termo está difundido de forma profunda nos streamings, nos podcasts, no YouTube, nos livros. O true crime está inserido na cultura pop.

Nomes como os de Jeffrey Dahmer, Ted Bundy e John Wayne Gacy não deveriam ser lembrados. E, claro, é assustador que esses assassinos doentios tenham se tornado fenômenos pop. Há uma espécie de Serial Killers Corporation, com dezenas de produções contando a história desses caras e muitas vezes os colocando um status que nunca possuíram. Indivíduos como Dahmer, Bundy e Gacy são a escória da sociedade, o lado podre do mundo, e é difícil entender como são tão exaltados por adolescentes, adultos, homens e mulheres de todo o planeta.

O fascínio por serial killers é antigo e nasceu com seus próprios crimes. O choque provocado por ações tão perturbadoras nos levou, quase que por instinto, a tentar entender porque elas foram cometidas. E foi justamente estudando, entrevistando e ouvindo autores de crimes reais que o FBI desenvolveu o método usado até hoje para identificar e monitorar serial killers. E não se iluda: apesar dos assassinos em série mais conhecidos serem norte-americanos, esse fenômeno não é exclusivo dos Estados Unidos. O país da Coca-Cola só os tornou famosos em todo o mundo. Serial killers são um fenômeno global e estão em todos os continentes, inclusive aqui no Brasil. Só não são tão divulgados quanto os serial killers made in America.

Há alguns anos, li vários livros sobre o tema e me aprofundei mais sobre o assunto. Das várias obras que li, duas considero essenciais: Anatomia do Mal – Entre na Mente dos Psicopatas, de Harold Schrechter, e Arquivos Serial Killers, de Ilana Casoy, ambos publicados pela Darkside Books. E ambos com relatos muito pesados, e muitas vezes explícitos, dos crimes cometidos por esses indivíduos. Há trechos perturbadores em ambas as obras, de revirar o estômago e fazer com que você pause a leitura e vá tomar um ar. Schrechter e Casoy não glorificam os assassinos, mas tentam entender como foi possível que eles tenham feito o que fizeram.

Assisti apenas o primeiro episódio de Dahmer, e provavelmente não verei os demais capítulos da produção da Netflix. Me senti em um ambiente claustrofóbico através da ambientação do apartamento de Jeffrey Dahmer, sua casa de horrores com restos humanos espalhados por todos os cantos e um cheiro insuportável escapando pelas frestas, tudo amplificado pela atuação perturbadora de Evan Peters. Decidi que não quero sentir algo assim nesse momento da minha vida. Não quero me sentir mal como me senti assistindo ao primeiro episódio de Dahmer.

Cada pessoa assiste ao que quiser, a questão não é essa. Mas, para mim, alcançamos o ponto de que chega de serial killers na cultura pop. Há uma questão na comunicação que é muito importante e merece ser discutida quando falamos de um assunto tão pesado como assassinos em série: o emissor da mensagem nunca sabe como ela será interpretada por quem a recebe. Não sei se Murphy, que é o criador também das celebradas American Horror Story e American Crime Story, glorifica ou não Jeffrey Dahmer. Mas o ponto não é esse.

O ponto é que os nomes que deveriam estar na ponta da língua do público não são os de Dahmer, Bundy e Gacy. Os nomes que deveríamos saber são os de Steven Hicks, Steven Tuomi, Jamie Doxtator, Richard Guerrero, Anthony Sears, Ricky Beeks, Eddie Smith, Ernest Miller, David Thomas, Curtis Straughter, Errol Lindsey, Anthony Hughes, Konerak Sinthasomphone, Matt Turner, Jeremiah Weinberger, Oliver Lacy e Joseph Bradehoft, todas as dezessete vítimas de Jeffrey Dahmer. Deveríamos ter na memória os nomes das vítimas de Bundy, Gacy, Andrei Chikatilo, Anatoly Onoprienko, Gary Ridgway e tantos outros monstros, mas o que sabemos é a história de quem cometeu esses crimes, e não de quem os sofreu.

Chega de serial killers. A cultura pop é mais que isso. E a nossa vida merece muito mais do que as trajetórias perturbadoras de assassinos em série transformadas em programas de sucesso.

 


Comentários

  1. Eu compreendo o fascínio que uma mente tão doentia possa despertar em pessoas normais, e por fascínio não significo admiração, jamais. Mas não me pareceu que a série exalte de qualquer forma o Dahmer, embora o humanize. Daí vem o seu incômodo, meu caro, da alteridade. Ela não é um ser diferente, é feito do mesmo que nós. Alguns de nós realmente vieram "defeituosos", isso sim é apavorante.

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  2. Dá compreender perfeitamente o incomodo gerado com a série, ainda mais nos tempos sombrios de hoje em que a ''sociedade do espetáculo'' acabou se tornando a ''sociedade da barbárie'' e muitos não dão a mínima, e acabam glorificando certas figuras histórias desprezíveis pra dizer o mínimo...

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  3. Assino embaixo. E, independente disso, a série é uma porcaria

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