Lançado em 2011, Heritage é o décimo álbum do Opeth e um ponto de inflexão definitivo na trajetória da banda sueca. Até então, o grupo havia se destacado por sua habilidade singular de mesclar death metal progressivo com passagens acústicas e melancólicas, sempre envoltas em atmosferas sombrias e letras existencialistas. No entanto, Heritage rompe radicalmente com esse passado, abrindo caminho para uma nova fase artística guiada por influências do rock progressivo dos anos 1970, jazz fusion e música clássica europeia.
A mudança mais evidente em Heritage é a completa ausência dos vocais guturais que haviam se tornado marca registrada do vocalista e guitarrista Mikael Åkerfeldt desde o início da banda. Também se nota o abandono dos riffs de death metal, das explosões brutais e da típica dinâmica “luz e sombra” que marcava discos como Blackwater Park (2001), Deliverance (2002) e Ghost Reveries (2005). No lugar disso, o que ouvimos em Heritage é uma imersão profunda em timbres analógicos, pianos de cauda, órgãos Hammond, guitarras limpas, harmonias intrincadas e uma abordagem composicional que evoca nomes como King Crimson, Camel e Gentle Giant. A produção, assinada pelo próprio Åkerfeldt, reforça esse caráter retrô, com uma mixagem quente, orgânica e livre dos artifícios modernos de compressão.
A faixa-título abre o disco de forma instrumental, com um piano solo melancólico que evolui para uma composição camerística. É uma introdução contemplativa e solene, estabelecendo o tom introspectivo do álbum. "The Devil’s Orchard" foi lançada como primeiro single e é uma das canções mais acessíveis, com riff marcante, clima jazz-rock e a refrão (se é que dá pra chamar assim) “God is dead” como ponto central. É um manifesto niilista que já mostra que o Opeth pós-metal não será menos provocativo. "I Feel the Dark" alterna entre passagens acústicas suaves e seções elétricas com guitarras dissonantes. A canção aborda o medo do desconhecido, da morte e da mudança – temas recorrentes no disco.
A composição mais enérgica do álbum, "Slither" homenageia diretamente Ronnie James Dio, falecido no ano anterior, com uma pegada mais hard rock, remetendo ao Rainbow. É o momento mais direto e menos enigmático de Heritage. "Nepenthe" é o nome da droga mítica que alivia a dor no poema Odisseia, de Homero. A faixa traz flertes com jazz fusion e psicodelia, num arranjo que evoca um sentimento de letargia e confusão emocional. Já "Häxprocess" é melancólica e experimental, inicia com flauta e piano e cresce com camadas suaves e vocais sussurrados. O título (“processo da bruxa”, em sueco) sugere uma alusão ao julgamento, à culpa e à purgação espiritual.
"Famine" é uma das composições mais ousadas do álbum. Abre com percussão tribal e flauta, evocando rituais pagãos, e caminha para um jazz sombrio e atonal. A letra é densa, sobre escassez, opressão e sofrimento existencial. Contrastando, "The Lines in My Hand" é curta e inquieta, com linhas de baixo frenéticas. A letra fala sobre destino e autoconhecimento, dialogando com o próprio título do disco, como algo que se carrega nas mãos e não se pode evitar. "Folklore" é uma das mais longas e épicas. Passeia por climas diversos, com mudanças abruptas e solos elaborados. Parece costurar as diversas facetas do disco em uma mini-sinfonia progressiva. E "Marrow of the Earth" é um tema instrumental acústico que encerra o álbum como uma epifania pastoral. É como se, após tanto caos e inquietação, o ouvinte encontrasse repouso no âmago da terra – o “marrow”, a medula, o núcleo essencial.
As letras de Heritage abandonam o terror sobrenatural e as imagens sombrias dos álbuns anteriores para mergulhar em temas filosóficos, existencialistas e até políticos. Há uma constante sensação de questionamento sobre identidade, legado, fé e a decadência das instituições (especialmente religiosas). Åkerfeldt não oferece respostas, mas convida à reflexão – algo que se alinha perfeitamente com a abordagem progressiva da música.
O impacto de Heritage foi profundo e polarizador. Muitos fãs, acostumados com o Opeth extremo, reagiram com estranhamento ou rejeição. Outros abraçaram a guinada como uma evolução artística corajosa. O próprio Mikael Åkerfeldt deixou claro que essa mudança não foi estratégica, mas necessária – ele simplesmente não se sentia mais inspirado pelas fórmulas anteriores. Se álbuns como Still Life (1999) e Blackwater Park (2001) consolidaram o Opeth como mestres do death metal progressivo, Heritage redesenha o mapa sonoro da banda e abre caminho para trabalhos posteriores como Pale Communion (2014), Sorceress (2016) e In Cauda Venenum (2019), que aprofundam a veia progressiva e psicodélica.
Heritage é um álbum que exige escuta atenta e mente aberta. Ele pode soar desconcertante à primeira ouvida, mas revela camadas de sofisticação e emoção com o tempo. Longe de ser uma simples homenagem ao rock progressivo dos anos 1970, ele é um manifesto pessoal de liberdade criativa.
Em última análise, o “legado” a que o título se refere pode ser o próprio ato de se libertar dos grilhões da expectativa – algo que poucos artistas têm coragem de fazer em pleno auge da carreira. Para o Opeth, a herança não é só o passado que se carrega, mas a coragem de transformá-lo.
Heritage seguia inédito no Brasil até 2025, quando finalmente ganhou uma edição nacional pela Warner/Wikimetal em CD slipcase com encarte trazendo todas as letras.
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