Por Uma Fração de Segundo: uma aula sobre a história da fotografia e do cinema (Guy Deslile, 2025, Comix Zone)
Guy Delisle, conhecido por suas crônicas em quadrinhos de viagem como Pyongyang e Crônicas de Jerusalém, mergulha desta vez na biografia de um dos nomes mais fascinantes — e menos conhecidos do grande público — da história da fotografia: Eadweard Muybridge. Em Por Uma Fração de Segundo: A Vida Movimentada de Eadweard Muybridge, Delisle entrega uma obra que, como o próprio título sugere, explora os fragmentos de uma vida marcada por inovação, tragédia e genialidade.
Muybridge foi um dos pioneiros na captura de imagens em sequência para estudar o movimento, especialmente de pessoas e animais. Seu trabalho mais famoso, feito em 1878, foi uma série de fotografias de um cavalo galopando, que provou que em certo ponto da corrida, o animal ficava completamente no ar, sem tocar o chão — algo imperceptível ao olho humano, mas captado por suas câmeras. Esses estudos de movimento foram um marco na história da fotografia científica e serviram como um protótipo técnico e conceitual para o cinema, influenciando diretamente inventores como Thomas Edison e os irmãos Lumière.
Delisle opta por uma abordagem objetiva e didática, mantendo o tom leve mesmo ao tratar de temas pesados como adultério, assassinato e julgamento. A narrativa é linear, mas pontuada por cortes secos, como se o próprio autor estivesse editando um filme — um recurso inteligente que dialoga com o tema central da HQ: o movimento. O roteiro foca menos em romantizar Muybridge e mais em apresentar suas contradições. Ele é ao mesmo tempo um artista visionário e um homem de temperamento difícil, obcecado por seus experimentos e pela busca da perfeição. A obra destaca também o episódio marcante do assassinato do amante de sua esposa, um momento que poderia ter encerrado sua carreira, mas acabou reforçando sua figura pública — e cujos desdobramentos legais (ele foi absolvido) dizem muito sobre a moral da época.
A arte de Delisle é minimalista, com traços limpos e figuras quase caricaturais. A paleta de cores é contida, privilegiando o preto e branco com tons cinzentos e beges, evocando tanto o mundo analógico da fotografia do século XIX quanto o estilo documental característico do autor. Essa simplicidade, longe de empobrecer a obra, acentua a clareza narrativa e dá leveza a uma história densa.
Delisle também recria com precisão os famosos painéis sequenciais de Muybridge, incorporando-os ao design da página com criatividade. Essas recriações são importantes não apenas como ilustração histórica, mas como parte da linguagem visual da HQ, onde a repetição de quadros sugere movimento e reforça o vínculo entre a vida de Muybridge e sua obsessão com o tempo e a imagem. A HQ traz dezenas de fotos originais de Muybridge, o que intensifica a imersão do leitor, que é apresentado ao trabalho real mencionado nas páginas anteriores, e dá ainda mais autenticidade ao trabalho de Delisle.A história não se limita a Muybridge: ela traz à tona nomes relevantes da época, como Leland Stanford, magnata ferroviário que patrocinou os experimentos fotográficos, e Thomas Edison, cuja relação com Muybridge é retratada de forma crítica. Aparecem ainda figuras como o anatomista Étienne-Jules Marey, que também estudava o movimento com métodos distintos, e até os irmãos Louis e Antoine Lumiére, como símbolo da transformação cultural do período. Esse entrelaçamento de personagens históricos enriquece a narrativa e situa Muybridge em um contexto mais amplo de revolução científica, artística e social.
A edição brasileira publicada pela Comix Zone é primorosa. A editora já tem um histórico de lançamentos de quadrinhos de alto nível, e aqui mantém o padrão: papel de qualidade, impressão nítida e tradução fluida, que respeita o estilo coloquial e acessível de Delisle. A escolha de manter o formato original europeu valoriza o aspecto documental da obra, quase como se fosse um diário ilustrado. A edição brasileira tem capa dura, 208 páginas e foi traduzida por Flávia Yacubian.
Por Uma Fração de Segundo é uma reflexão sobre a obsessão humana em capturar o tempo, entender o movimento e fixar a efemeridade da vida em imagens. Guy Delisle faz isso com leveza e inteligência, entregando uma obra acessível, mas rica em camadas. É também uma homenagem merecida a Muybridge, cuja influência ainda ecoa na fotografia, no cinema, nas animações e nas artes visuais contemporâneas.
Para quem se interessa por história da arte, inovação tecnológica ou simplesmente por uma boa história real, essa HQ é um convite irresistível a mergulhar em um dos momentos mais fascinantes do século XIX.
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