Os Armênios - Some Time in the City: disco renegado é o caralho!


Por Rodrigo de Andrade (GARRAS)
Jornalista e Historiador
Editor d'Os Armênios

Quando se procura material sobre a carreira solo de John Lennon, um álbum em particular é pouco documentado - ao menos com textos em português. Trata-se de Some Time in New York City, disco duplo lançado em 1972. Os motivos dessa carência de informações são vários. Porém, é de se estranhar que um LP tão rico em histórias, controvérsias, curiosidades e – principalmente - música seja tratado com tão pouca importância pelos fãs, críticos e jornalistas musicais.

Em primeiro lugar, é providencial fazer uma rápida retomada da discografia de Lennon até então. Assim, temos os clássicos feitos com os Beatles, quatro trabalhos “alternativos” em parceria com Yoko (antes da separação oficial dos quatro cabeleiras) e dois discos solos geniais (Plastic Ono Band e Imagine, de 1970 e 1971 respectivamente). Porém, pela primeira vez desde a separação da maior banda da terra era lançado um álbum comercial creditado com a parceria da esposa. Os quatro LPs anteriores feitos pela dupla eram de caráter experimental, com baixa tiragem e distribuição. Por isso, a carreira solo de John começa a ser considerada a partir do rompimento com Paul, George e Ringo.

Yoko foi transformada em Cristo desde que entrou na vida de Lennon. Todos, “amigos”, fãs e a imprensa, culpavam-na por tudo de ruim que acontecia na vida do artista: o divórcio com a “figurante” Cynthia, as brigas, drogas e até o fim da maior banda do mundo era tido como obra da “mulher-dragão” (o termo é da imprensa da época). Não é objetivo desse texto analisar até onde essas acusações são procedentes (mesmo porque outros já fizeram isso), mas é necessário considerar que grande parte do público não via Yoko com bons olhos. Sem dúvida, colocá-la como co-autora afetaria Some Time in New York City de alguma maneira.

O fato é que esse álbum foi um fracasso comercial. A crítica não poupou comentários maldosos. Para completar, John Lennon anunciara publicamente que o segundo disco era um brinde, e por isso não seria cobrado o valor de um LP duplo, o que realmente aconteceu. Porém, o disco era mais caro do que os outros lançamentos da época. Na Inglaterra, por motivos editoriais, levou três meses a mais para ser lançado. No Brasil, Some Time in New York City chegou ao mercado apenas em 1973, e com o preço dobrado mesmo.

Além desses fatores, os mais especuladores chegaram a afirmar que existia toda uma conspiração, por parte do governo, contra o álbum. Isso tudo porque John havia se mudado para Nova York fazia pouco tempo e estava encontrando empecilhos para regularizar o seu visto de permanência no país. Nesse período ocorreu uma série de processos para que Lennon fosse deportado (geralmente envolvendo drogas). Porém, ele recorreu e, depois de muitos trâmites legais, conseguiu permanecer nos Estados Unidos.

Como todo artista famoso, John Lennon era muito paranóico. Vinha afirmando que estava sendo seguido, que seu telefone estava grampeado ... Isso causou tanta repercussão que o governo Nixon chegou a se pronunciar publicamente afirmando que não existia nenhuma implicância com John, e que tudo não passava de bobagem. O que, na verdade, era uma grande mentira. Posteriormente, seriam revelados documentos oficiais que provavam uma perseguição, por parte do FBI, contra a pessoa de Lennon.

Essa preocupação com o artista realmente tinha motivo. Desde que se envolveu com Yoko, John vinha se engajando cada vez mais em atividades políticas, usava e abusava de sua fama a fim de chamar atenção para temas que considerava importante, como a promoção da paz mundial. Os outdoors com “War is Over,” entrevistas ensacados, o Bed-In ... já fazia um bom tempo que os dois conseguiam publicidade para suas causas.

Porém, 1972 foi o auge das manifestações políticas deles, marcado por palestras e protestos. Aliás, o próprio estereótipo de beatnik esquerdista, que Raul Seixas encarna na capa de Gïtã (de 1974), foi firmado pelo John militante desse período. Por todos esses motivos, Lennon era visto como encrenqueiro, agitador e perigoso para a ordem pública. Com sua mudança para Nova York (num apartamento em Greenwich Village, o bairro mais doidão da costa leste, que logo foi transformado em quartel-general para agitadores e revolucionários), o governo ficou temeroso do que ele poderia provocar e cismou em mandá-lo embora do país.


Todo composto nesse ambiente, Some Time in New York City é, sem sombra de dúvida, o disco mais politizado de John. Todas as músicas do primeiro disco (gravado em estúdio) abordam temas políticos. Para acompanhá-lo nas gravações convocou os doidões da Elephant’s Memory. A produção ficou por conta de Phil Spector, que fez o mesmo bom serviço dos álbuns anteriores. Das dez músicas, três foram creditadas como sendo de Yoko, duas de Lennon e as outras cinco como parcerias de ambos. O fato é que, em todas as canções, fica difícil imaginar um trabalhando sem a interferência do outro. Isso porque Yoko não era capaz de compor sozinha, da mesma forma que John sempre dava ouvidos às sugestões da esposa. Um influenciava profundamente o outro, e isso é indiscutível.

Porém, justiça seja feita, existe algo em Some Time in New York City que é, sem sombra de dúvida, digno de nota. Ali, a Yoko até canta. Não é nada extraordinário, que se sobressaia sobre o resto, mas quem já ouviu outras coisas dela entende. A senhora Lennon possui uma voz tão desgrenhada quanto seus cabelos. Até mesmo John já havia comentado sobre a pouca perícia vocal da companheira: “Ela não sustenta!”. Mas aqui não é algo dissonante como em outros registros. Parte dessa “qualidade” se deve aos préstimos de Phil Spector, fazendo jus ao título de produtor lendário. Com um cuidado especial, ele usou alguns recursos nas faixas em que ela cantou: duplicação de vozes, eco, duas gravações de vozes diferentes ou, nos casos mais críticos, metendo a japa como backing vocal e deixando o resto por conta de Lennon mesmo.

Faixa-a-Faixa

Na análise de cada uma das faixas, de cara se percebe o caráter contestatório e politizado da obra. O disco abre com “Woman is the Nigger of the World” (“A Mulher é o Negro do Mundo”), uma tentativa de conscientizar as pessoas contra atitudes machistas. John canta: “A mulher é a escrava dos escravos / E é melhor gritar a respeito disso / Pense a respeito… faça algo sobre isso”. E na sequência vem “Sisters”, o “sisters” de Yoko, onde ela chama “suas irmãs” para “lutarem por liberdade” e assim “aprenderem a construir um novo mundo”. Ou seja, o álbum já abre com temas feministas.

Então, chega hora da rockeira “Attica State”. A canção protestava contra o que havia acontecido na Unidade Carcerária de Attica, em setembro de 1971. Os presos haviam tomado vários guardas como reféns e assumido o controle de várias partes do presídio. As negociações não avançavam e então Nelson Rockfeller, governador do estado de Nova York, ordenou a retomada do pavilhão D. Os guardas invadiram o presídio usando helicópteros, lançaram gás lacrimogêneo e dispararam indiscriminadamente contra a multidão de 1.281 detentos. Nas horas seguintes cometeram atos brutais, espancando, torturando e negando atendimento médico aos reclusos. John e Yoko responderam ao acontecimento com essa canção furiosa de refrão gritante.

A próxima é “Born in a Prison”, segunda canção creditada a Sra Lennon. Começa dizendo que somos mandados para uma prisão chamada escola, e segue mais leve do que a música anterior. Segue a tradição das músicas que criticam o sistema de ensino. Fechando o lado A temos mais um rockão de John. Aliás, todas suas canções nesse disco são basicamente rock (mas rock mesmo!), e como em suas outras composições solo, o refrão é arrebatador: “New York City … New York City ... New York City ... Que pasa New York? Que pasa New York?”. A letra é feita por relatos de situações do cotidiano do casal pela cidade.

O lado B começa com “Sunday Bloody Sunday”, feita pelos dois. Tanto essa quanto a próximo, a belíssima canção folk “The Luck of the Irish”, falam sobre a situação da Irlanda sob domínio do Reino Unido. O país possui até hoje um vasto histórico de manifestações sociais violentas, fruto de conflitos religiosos e políticos. É um lugar onde as pessoas fazem valer o que pensam e o que dizem, nem que seja no tapa.

A música seguinte é outro rock poderoso de Lennon. “John Sinclair” é o nome da faixa e de um dos maiores agitadores dos anos 60 e 70. Poeta, empresário do MC5, escritor, radical de carteirinha, dirigente do movimento Panteras Brancas e ferrenho defensor da legalização da maconha. Estava preso por vendê-la em público. A faixa apresenta um trabalho de steel guitar marcante, e o refrão reproduz o efeito de um disco riscado, o que dá uma personalidade própria à música. “Angela” é a canção seguinte, composta em homenagem a outra ativista política, Angela Davis. Encerrando o disco vem “We’re All Water”, bem mais agitada que as últimas, com a banda numa jam enlouquecida e Yoko fazendo o seu habitual gritedo. Acredite, tem quem goste!

O brinde (Live Jam)

O segundo LP, que vinha como brinde, fora convenientemente batizado de Live Jam. Apresenta dois momentos distintos. As duas faixas do lado A eram creditadas ao casal acompanhado “por um elenco de milhares”. Foram gravadas em dezembro de 1969 no Liceu de Londres. Reza a lenda que havia tantos músicos no palco que a jam foi a maior confusão (é possível notar os “atrapalhos” na gravação). Mas o destaque mesmo ficou por conta de Keith Moon (do The Who) na bateria, Eric Clapton e George Harrison nas guitarras.

Era a primeira execução pública de “Cold Turkey”, e mesmo críticos do álbum declaram se impressionar com o peso e a eloquência da interpretação. John já havia revelado na famosa entrevista para Jan Werner da Rolling Stone que possuía esse registro e tinha vontade de lançá-lo. Aproveitava para tentar explicar o papel de Yoko com as gritarias, justificando que os músicos tocavam com tesão, tentando acompanhar as intervenções bizarras da japonesa. Apesar de ser sensível a interação que se estabelece, poucos tem fôlego para aguentar os 16 minutos de gritaria da pacifista “Don’t Worry Kyoko”. Mesmo assim, a gravação dessas duas faixas não deixa de ser um belo documento desse happening musical com convidados tão especiais, que foi batizado de Plastic Ono Supergroup.

O lado B também guarda uma raridade. Numa apresentação de Frank Zappa e os Mothers, no dia 6 de junho de 1971, John e Yoko sobem ao palco durante o bis. Apesar da qualidade técnica não ser tão boa, o fato dessa ser a única reunião desses artistas num palco por si só já é um evento marcante. E a verdade é que o registro low fi tem seu charme. Juntos, começam tocando uma versão de “Well (Baby Please Don’t Go)”, de Walter Ward, e que os Beatles tocavam nos primórdios, no Cavern Club. Depois dessa, outras três improvisações são feitas em cima de temas que eram tocados mutuamente (tudo com acompanhamento vocal de Yoko). Destaque para “Scumbag”. É um momento raro, e incrível por estar num álbum oficial.

Tratamento gráfico primoroso

A parte gráfica do disco é fenomenal. A capa e contracapa trazem as letras do álbum, ilustradas por fotos e figuras. Tudo foi diagramado para parecer um jornal, o New York Times. Tanto que isso ajudou a complicar a permanência de John nos Estados Unidos.

Internamente, várias fotos da banda e dos eventos ao vivo presentes no disco dois decoram o álbum. O primeiro LP está envolto num envelope negro com as informações técnicas, etc.


O envelope do disco ao vivo é que ficou do caralho. No ano anterior, Zappa & The Mother haviam lançado o ao vivo Fillmore East: June 1971. A capa era totalmente branca, com as informações escritas a lápis. Como as gravações do lado B do segundo disco de John foram feitas no mesmo ano, com a mesma banda e no mesmo lugar, ele usou canetinha vermelha para apenas incluir as informações adicionais e riscar as antigas da capa original dos Mothers. Adicionou o nome dele e de Yoko, bem como os detalhes técnicos necessários. Fez uma riscaria, adicionou frases e brincadeiras e foi daquele jeito mesmo que o encarte ficou. Dá para ficar um tempo tentando se entender em meio aos garranchos e se divertindo. Genial!


Até o selo do disco foi trabalhado. Apresenta uma sequência de fotos de John e Yoko se metamorfoseando um no outro.

Dizem que a primeira edição americana do disco vinha com algumas coisas a mais encartadas. Seria um cartão postal e um envelope com uma carta, para ser assinada e remetida as autoridades americanas pedindo que o casal pudesse permanecer no país. Nunca vi, mas esse tipo de memorabilia tem seu valor hoje.

Reedição de 2005 é porca

Seguindo uma constante tendência de relançar os álbuns de Lennon em versões remasterizadas e, algumas vezes, com faixas bônus, Some Time in New York City ganhou uma reedição em CD em 2005. Entretanto, as três faixas provenientes da apresentação surpresa feita no Fillmore East com Frank Zappa e os Mothers of Invention FORAM LIMADAS!!! Isso aí: excluídas, apagadas, fora!!!

Dizem que a decisão foi da Yoko, visando editar um disco em formato simples, uma vez que a versão em CD duplo sairia com valor elevado. Assim, o lançamento parece capenga. Enquanto a tendência é das reedições saírem como documentos quase históricos, reproduzindo tudo quanto é possível da versão original, o disco saiu com três faixas a menos. Praticamente todo o lado B do disco não existe nessa nova versão.

Em compensação, o som foi restaurado com uma nova masterização, e duas faixas bônus foram incluídas: “Listen the Snow is Falling” e “Happy Xmas (War is Over)”. Era o mínimo por terem limado Zappa e os Freaks. E para a alegria do pessoal do terceiro mundo, essa nova edição foi lançada aqui no Brasil também. Entretanto, além dela, você precisa do vinil para ter todas as faixas. Coisas do rock. Ou melhor: coisas da indústria.

Protesto “Dylaniano”?

Some Time in New York City é o disco mais politizado de John. Os temas variam do feminismo radical ao ativismo negro, dos conflitos da Irlanda às rebeliões nos presídios, e sobra pedrada até para as escolas. Fruto do cenário radical e militante que era Greenwich Village naquele início dos anos setenta (bairro onde o casal Ono Lennon estava morando), o disco remete automaticamente ao universo “dylaniano”. Naquele mesmo lugar, dez anos antes, Bob Dylan surgia para o mundo como um cantor de protesto. Ainda que o ex-Beatle declarasse que há tempos o bardo não era um influência direta, uma obra recheada de canções contestatórias é facilmente vinculada ao poeta.

O fato é que John sempre exerceu uma postura rebelde. Sempre seguiu no sentido oposto ao status quo, ao establishment. Seja pela postura irônica (desde o princípio dos Beatles), pela atitude artística (promovendo happenings de protesto com Yoko), ou mesmo como o cantor de protesto que sempre fora (rockeiro autor de “Revolution”, “Give Peace a Chance”, “Come Together” e “Power to the People”, entre tantas outras). Nesse disco, Lennon apenas levou ao extremo uma faceta que sempre existiu na sua vida e arte.

Não fosse um senhor disco de rock, Some Time in New York City já mereceria crédito e atenção simplesmente por ser a cartada máxima de John em direção a contestação, a contracultura e a rebeldia. Que é o rock senão isso?

Malhado pela crítica, renegado pelos fãs

É dito que esse disco foi um fracasso comercial. Exagero. Ainda que tenha vendido “apenas” 1/3 da quantia que Paul McCartney ou George Harrison no mesmo período, 200 mil cópias é um quantia baixa para um ex-Beatle, mas longe de ser um desastre!

A crítica e a mídia em geral caceteava John de todo jeito, e muitos fãs iam na onda. Não admitiam a nova postura declarada do artista. E para completar, tinha a Yoko no meio. O casal aparecia constantemente nos jornais e na TV, seja por participarem de marchas de protesto ou por irem tocar em programas de auditório onde acabavam batendo boca com o público, que não concordava com a posição assumida em algumas letras. Era o conflito do senso comum que achava que os Beatles eram nada mais além de água-com-açúcar.

Entretanto, o que sem dúvida afetou Some Time in New York City foram Plastic Ono Band e Imagine. O dois discos anteriores, de 1970 e 1971 respectivamente, foram marcantes demais, verdadeiros clássicos do rock!!! Todo artista e banda, após atingir um ápice, acaba tendo o seu trabalho seguinte detonado. As pessoas esperam, no mínimo, outra obra tão relevante quanto a anterior, ou algo melhor. Triste ilusão. Os Beatles deveriam ter seguido gravando um Sgt Pepper’s atrás do outro? Absurdo! Outros exemplos: Wish You Were Here (do Pink Floyd, lançado em 1975) não é um disco ruim, mas foi lançado depois de Dark Side of the Moon (1973). O mesmo pode ser dito em relação a Living in the Material World (1973) de George Harrison, para pegar um exemplo mais próximo. Como colocá-lo ao lado do triplo All Things Must Pass (1970)? Não há comparação. Seria burrice! São momentos distintos.

Some Time in New York City é um ótimo disco de rock. Possui momentos antológicos: “Attica State”, “New York City”, “John Sinclair”. Talvez se tivesse sido um álbum simples, e não duplo, tivesse ajudado, mas até mesmo os mais murrinhas se surpreendem com a versão de visceral de “Cold Turkey”, ou rendem-se ao histórico encontro com Zappa e os Mothers.


Havendo exorcizado seus demônios nos trabalhos anteriores (que por isso são tão pungentes e marcantes), John Lennon pode seguir na direção em que sempre apontou. Entre tantas transformações, encontra a forma bruta da voz de protesto que sempre lhe fora peculiar. Uma evolução quase que natural, e que foi pouco entendida na época. O disco é grande não só pela sua duração, mas como o retrato de uma época em que um artista tão fundamental foi atuante como nunca.

(Re) ouça com a devida atenção!

Comentários

  1. Vc sabe se a nova reedição deste disco vem com estes bônus da Jam com Zappa?
    Nunca tinha ouvido este disco, mas vou escutá-lo com cuidado agora, pois o que mais me chamou a atenção foi o fato dele ser o mais roqueiro do cara! E ele fazendo rock era foda!!!

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