Discografia comentada: The Black Keys

A história do Black Keys é cercada de improbabilidades. Executando um rock garageiro, áspero e imerso na tradição do blues, o duo formado pelo vocalista e guitarrista Daniel Quine Auerbach e pelo baterista Patrick J. Carney construiu uma carreira sólida e crescente ao longo dos anos graças a discos que mostram uma evolução notável e um aprimoramento - tanto sonoro quanto estético - inquestionável. Não abrindo mão da liberdade artística e fazendo exatamente aquilo que acreditam, Auerbach e Carney levaram o Black Keys rumo ao topo, e hoje são um dos principais nomes do rock em todo o mundo.

O primeiro encontro da dupla rolou quando os dois ainda eram meros garotos em sua cidade natal, Akron, no estado norte-americano de Ohio. Interessados em música, Dan e Patrick seguiram o conselho de um amigo em comum e resolveram tentar levar um som juntos. Ambos tinham apenas 8 e 9 anos e vinham de universos totalmente diferentes. Auerbach era capitão do time de futebol da escola e tinha bastante popularidade. Já Carney era o oposto, fechado e totalmente outsider. Mesmo assim, tornaram-se amigos e começaram a levar um som.

Já na adolescência, Dan, após uma breve e frustrada passagem pela universidade, resolveu que queria ser músico e tentou ganhar a vida tocando nos bares da cidade. Como Akron tem uma população de apenas 200 mil habitantes, o guitarrista percebeu que teria poucos lugares para mostrar o seu talento e que, para tocar na região, teria que gravar uma demo mostrando o seu talento. Nisso, lembrou-se que o amigo Patrick tinha um equipamento de gravação em casa e entrou em contato com ele. Carney cedeu o equipamento e também o porão de sua casa para que as sessões fossem realizadas, enquanto Daniel saiu atrás de outros músicos para a gravação. Acontece que ninguém apareceu e Auerback e Carney resolveram gravar como um duo alguns blues antigos e ideias que surgiram na hora.

A coisa deu certo, funcionou de imediato e demonstrou a forte química entre os dois. Enviaram a demo para algumas gravadoras e um pequeno selo de Los Angeles chamado Alive apostou na dupla. Para batizar a banda, se inspiraram em um artista esquizofrênico chamado Alfred McMoore que tinha o hábito de deixar recados em secretárias eletrônicas classificando os seus pais, quando estava chateado com eles, como “black keys” - “teclas pretas”.

The Big Come Up (2002)

O disco de estreia do Black Keys, The Big Come Up, chegou às lojas em 14 de maio de 2002. Gravado entre janeiro e março daquele ano no porão de Patric Carney - o baterista também foi responsável pela produção -, o álbum apresenta uma sonoridade propositadamente crua e áspera, sem maiores requintes. É um disco de blues em sua essência, já demonstrando a capacidade de Dan Auerbach em criar ótimos riffs e os andamentos peculiares criados por Carney. As treze faixas parecem saídas de algum disco perdido da década de 60 e honram a tradição do gênero desenvolvido por Robert Johnson, Muddy Waters e tantos outros. Destaque para a abertura com o blues tortíssimo “Busted”, os ecos de Bo Diddley em “Do the Rump” (do bluesman Junior Kimbrough, grande ídolo da dupla), a ótima “I’ll Be Your Man” (utilizada pela HBO como abertura da série Hung e também na trilha de Rescue Me, série do FX), “Countdown”, “The Breaks” e as competentes releituras de “She Said, She Said”, dos Beatles, e “Run Me Down”, de Muddy Waters. The Big Come Up é um trabalho bem tradicional, e sua produção básica torna essa característica ainda mais forte. O disco foi relançado em janeiro de 2012 em vinil, com o LP em 14 cores diferentes. Uma boa estreia (Nota 7,5)

Thickfreakness (2003)

Novamente produzido por Patrick Carney, Thickfreakness foi gravado também no porão do baterista em apenas uma sessão, que durou 14 horas. São onze faixas, sendo duas delas covers - para “Have Love Will Travel” de Richard Berry e “Everywhere I Go”, novamente de Junior Kimbrough. O disco marca a estreia do duo em uma nova gravadora, saindo da Alive e indo para a Fat Possum. Gravado em dezembro de 2002, Thickfreakness desembarcou nas lojas em 8 de abril de 2003. A recepção da crítica foi ótima, com o álbum sendo eleito pela conceituada revista norte-americana Time o terceiro melhor daquele ano. A sonoridade aqui é propositalmente abafada, com vocais meio distorcidos e estourados. Pesado e sujo, Thickfreakness é superior ao debut e rendeu três singles: “Set You Free” (primeira amostra do caminho que o grupo seguiria nos príximos anos), “Hard Row” (com um ótimo riff de Auerbach) e “Have Love Will Travel”. Além delas, destaque para a ótima faixa que dá nome ao álbum, “Hurt Like Mine”, a viajante “Everywhere I Go”, “No Trust” e a excelente “Midnight in Her Eyes”. Curiosidade: a banda recebeu uma gorda oferta no valor de 200 mil libras para licenciar uma das suas músicas para um comercial de maionese de uma marca inglesa, mas, aconselhados por seu manager, Dan e Patrick recusaram a oferta para não seram vistos como “vendidos”. Um passo bem dado à frente, que mostrava um futuro promissor (nota 8)

Rubber Factory (2004)

O terceiro trabalho do Black Keys marca várias mudanças na carreira do grupo. Em primeiro lugar, os caras precisaram abrir mão do estúdio caseiro onde gravaram os dois primeiros discos, já que o prédio que abrigava o cubículo foi vendido. A dupla resolveu então montar um estúdio em uma fábrica de pneus abandonada de Akron, alugada pelo preço de 500 dólares mensais e rebatizada como Sentient Sound. Um dos equipamentos utilizados na gravação foi comprado por Patrick no eBay diretamente de um dos técnicos de som do Foreigner! Além disso, apesar do sucesso de crítica, a turnê anterior havia dado prejuízo, e Dan e Patrick resolveram enfim ceder às dezenas de ofertas que recebiam para liberar suas músicas para comerciais de TV. A primeira foi “Set You Free”, usada em um comercial da Nissan, que deu início a um processo que já colocou sons dos caras em mais de 300 campanhas publicitárias. A produção agora era assinada pela dupla e não mais apenas por Patrick Carney. Gravado entre janeiro e maio de 2004, o disco chegou às lojas em 7 de setembro daquele ano e foi o primeiro álbum do Black Keys a figurar no Billboard 200, na posição 143. A capa é uma montagem criada por Michael Carney, irmão do baterista. Aqui temos treze faixas, sendo duas delas covers - “Grown So Ugly” de Robert Pete Williams e “Act Nice and Gentle”, composta por Ray Davies, dos Kinks. A sonoridade está sutilmente mais aparada em Rubber Factory, mas mantém a aspereza tradicional. A mixagem deixou tudo meio sem peso e com excesso de tons agudos, em um resultado bem diferente dos dois primeiros discos. Destaque para “All Hands Against His Own”, a malandra “The Desperate Man”, a bucólica “The Lenghts”, “Grown So Ugly” e “10 A.M. Automatic” (utilizada em um comercial da American Express). Alguns críticos classificaram o disco como “new indie rock blues”. Pessoalmente, acho um trabalho inferior a Thickfreakness (nota 7,5)

Magic Potion (2006)

O quarto álbum do Black Keys marca a estreia da banda na Nonesuch Records, gravadora onde permanece até hoje. Este trabalho é o elo de ligação entre a sonoridade fincada no blues dos três primeiros discos e o crescimento e desenvolvimento de uma personalidade cada vez mais forte e marcante que se daria nos trabalhos seguintes. Lançado em 12 de setembro de 2006 e novamente com produção da própria dupla, Magic Potion traz onze faixas, e dessa vez nenhum cover. A gravação foi feita novamente no porão da cada de Patrick, como nos dois primeiros LPs. Inspirados, Auerbach e Carney saíram de lá com o seu melhor registro até então. Abusando dos riffs e com a bateria sempre torta surpreendendo a cada faixa, Magic Potion emplacou quatro singles - a linda balada “You’re the One”, a pedrada “Your Touch”, “Strange Desire” e “Just Got to Be”. A rifferama de Dan conduz composições que transitam entre o mais puro rock garageiro - como “Just a Little Heat” e “Give Your Heart Away” - e o nascimento de uma sonoridade que seria depurada a fundo nos próximos anos - como ouvimos em “Your Touch” e “Just Got to Be”, por exemplo. Um excelente disco, e, como já dito, o melhor da carreira do Black Keys até então (nota 8,5)

Attack & Release (2008)

O disco da virada na carreira do Black Keys. Attack & Release marca a estreia da parceria entre a banda e o produtor Danger Mouse, responsável por todos os álbuns desde então. Com maestria e de maneira brilhante, Mouse aparou as arestas e formatou o som do duo para o grande público, dando início a um processo de crescimento na popularidade da banda que não tem data para acabar. São onze faixas inéditas, todas de autoria da dupla, gravadas entre 9 e 23 de agosto de 2007 e lançada em 1 de abril de 2008. A estreia do grupo em um estúdio de verdade, com um produtor profissional, fez bem demais à música do Black Keys. O resultado foi imediato, com o disco estreando na décima-quarta posição no Billboard 200. Mas todo esse banho de loja não descaracterizou o som do do Black Keys, muito pelo contrário. Foi justamente com a inclusão de Danger Mouse no processo que o grupo encontrou a sua cara definitiva e partiu para vôos cada vez mais altos. O play abre com a linda “All You Ever Wanted”, seguida pelo single “I Got Mine” - os outros dois foram para a ótima “Strange Times” e “Same Old Thing”. Há momentos absolutamente brilhantes em Attack & Release como “Psychotic Girl”, por exemplo, construída a partir de uma melodia de banjo. As composições são todas fortes e mostram uma banda pronta para conquistar o mundo (nota 9)

Brothers (2010)

A obra-prima do Black Keys. Novamente produzido por Danger Mouse, mas agora em parceria com Mark Neill e a própria banda, Brothers é um dos melhores discos de rock das últimas décadas. São quinze faixas inspiradas, um desfile de singles e hits que impressiona. O álbum alcançou a terceira posição na Billboard, e com justiça. Lançado em 18 de maio de 2010, Brothers caminhou rumo a topo puxado por excelentes singles como “Tighten Up”, “Howlin’ for You”, “Everlasting Light” e “Next Girl”. Soando mais pop do que nunca, mas, ao mesmo tempo, mantendo a sonoridade garageira, Dan e Patrick conquistaram crítica e público. O trabalho ganhou 4 estrelas na Rolling Stone, Q e Uncut, além de ter sido eleito o segundo melhor álbum de 2010 pela Rolling Stone, o sétimo pela Time e constar nas listas de melhores de 2010 da Paste e da Spin. Aqui o negócio é o seguinte: se você nunca ouviu o Black Keys, comece com Brothers. As músicas são hipnotizantes e feitas sob medida para conquistar novos fãs. Na minha opinião, Brothers, apesar da pouca idade, já pode ser considerado um clássico. Curiosidade: a capa do álbum homenageia The Howlin’ Wolf Album, lançado pelo blueman em 1969. Espetacular, e ponto final! (nota 10)

El Camino (2011)

Quando todo mundo pensava que seria impossível superar o disco anterior, o Black Keys retornou no final de 2011 com um álbum tão bom quanto. Novamente com Danger Mouse na produção, El Camino manteve a força do trabalho anterior e conseguiu soar ainda mais pop. Puxado pelo empolgante single “Lonely Boy”, o álbum chegou ao segundo posto do Billboard 200. Inspirados no rock, soul, rockabilly e glam, Dan Auerbach e Patrick Carney gravaram um dos melhores registros do novo milênio. Há detalhes desconcertantes em El Camino, como os backing vocals celestiais de “Dead and Gone” e a influência pesada de Led Zeppelin em “Little Black Submarines”. O riff de “Gold on the Ceiling” beira o genial, enquanto “Money Maker” resgata o clima dos primeiros trabalhos. Um bem sacado tempero western dá as caras em “Run Right Back”, enquanto a sensual “Sister” é perfeita para passar momentos iluminados em boa companhia. El Camino parece uma coletânea de grandes sucessos devido à sua enorme qualidade. De maneira justa, colocou o Black Keys no estágio em que se encontra atualmente, como uma das maiores e mais respeitadas bandas de rock do mundo. Outro disco excelente! (nota 10)

Além dos álbuns oficiais, o Black Keys lançou diversos EPs ao longo da carreira. O melhor deles, disparado, é Chulahoma: The Songs of Junior Kimbrouh (2006), com sete faixas compostas pelo bluesman que mais faz a cabeça da dupla. Há ainda The Moan (2004), The Live EP (2007) e Live From Suma (2008), além do ao vivo iTunes Session, de 2010. Mas Chulahoma é o auge desses disquinhos, um registro excelente de blues e que paga tributo a uma das maiores inspirações do grupo.

Se você ainda não conhece o The Black Keys, aproveite esta discografia comentada e mergulhe já na discografia da banda. Você vai emergir fascinada por uma das melhores bandas de rock surgidas nos últimos anos, pode ter certeza!


Comentários

  1. Já tinha ouvido falar da banda, mas nunca parei pra ouvir.

    Agora deu vontade, acho que vou começar com o Brothers.

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  2. Comecei a ouvir The Black Keys a pouco tempo, e com essa discografia comentada aumentou a vontade de conhecer o trabalho dos caras. Valeu Ricardo por mais essa dica.

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  3. Ótimo texto Ricardo, adoro os Black Keys ,para mim eles são a banda mais criativa atualmente,e concordo totalmente com você Brothers e El Camino ja podem ser considerados como Classicos.

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  4. O Black Keys é mais uma das provas que esse negócio de que "tudo que é feito hoje em dia é ruim" é cascata. Baita banda.

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  5. Otima matéria! Sou da turma que descobriu os caras a partir do Brothers, mas já tava afim de correr atrás dos outros discos, e essa discografia comentada só facilitou a minha vida...hehehe.

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  6. Conheci o Black Keys na trilha sonora de Sons of Anarchy, nem preciso dizer que casou muito bem com as cenas, depois fui atrás de alguns albums dos caras, e realmente é uma banda (ou dupla?) muito legal

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  7. Sou uma superfã do duo (tenho até uma página no Tumblr dedicada a eles - http://sinisterfangirl.tumblr.com) e, apesar de ter começado com Brothers, em 2010, meu álbum preferido
    é "Rubber Factory", simplesmente porque é notável a evolução vocal do Dan Auerbach, a presença de riffs magistrais e um entrosamento maior entre a guitarra e as batidas de Patrick Carney. Por mais que eu adore tudo que veio depois, "Rubber Factory" foi o álbum que me fez dizer "uou" assim que terminei de escutá-lo - embora "El Camino" também tenha me provocado a mesma reação.

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  8. A melhor banda surgida nos últimos tempos sem a menor sobra de dúvida!!! Puta som, digno dos clássicos do rock!

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