O Mestre das Armas: entre a espada e a fé (Xavier Dorison e Joël Parnotte, 2025, QS Comics)


Ambientada no final da Idade Média, às vésperas do Renascimento, O Mestre das Armas mergulha o leitor em um mundo às margens da transformação histórica — um tempo em que a espada ainda ditava as leis e o fanatismo religioso suprimia qualquer sopro de pensamento livre. A HQ é uma obra impactante que combina um roteiro sólido com um espetáculo visual de primeira linha.

Joël Parnotte, ilustrador francês que tem nessa HQ o seu primeiro trabalho publicado no Brasil, entrega um trabalho gráfico notável. Seu traço é detalhado, expressivo e profundamente atmosférico. Cada página parece respirar o frio das montanhas que formam a Cordilheira de Jura, na França, onde se desenrola boa parte da trama. A composição das cenas é cinematográfica, com enquadramentos precisos que conduzem o olhar do leitor como se ele estivesse assistindo a um grande filme de época. A narrativa gráfica é fluida e segura — não apenas ilustrando o texto, mas intensificando cada emoção, cada movimento, cada silêncio.

A paleta de cores exuberante colabora com esse efeito imersivo: tons frios e terrosos predominam, refletindo a dureza do inverno e o clima sombrio de uma Europa em tensão. A luz é usada com maestria, contrastando interiores austeros com a vastidão gelada da paisagem, e reforçando os dilemas morais enfrentados pelos personagens.


Xavier Dorison — autor de Undertaker, publicado no Brasil pela Pipoca & Nanquim, e de Red Skin – Bem-Vinda à América, lançado pela Mythos Editora — é um dos roteiristas mais respeitados do quadrinho europeu contemporâneo. Em O Mestre das Armas, ele constrói uma narrativa sólida e envolvente. A história acompanha Hans Stalhoffer, um antigo mestre de armas que é forçado a voltar ao combate para proteger um jovem herege — e, com ele, uma ideia perigosa: uma Bíblia traduzida para o francês. Em uma época em que o texto sagrado era impresso exclusivamente em latim, reservado à elite religiosa e nobre, essa tradução representava uma ameaça à ordem estabelecida. Esse cenário histórico, que viria a ser profundamente transformado com a Reforma Protestante liderada por Martinho Lutero, serve de pano de fundo para uma trama intensa sobre perseguição, honra e resistência, marcada por simbolismos e críticas contundentes à intolerância religiosa.

A grande virtude do roteiro é equilibrar ação e reflexão. Embora seja repleto de cenas tensas e combates intensos, o foco está nos conflitos internos dos personagens e no cenário histórico que os molda. A sociedade retratada é opressora, presa a dogmas e assustada com o novo — e é nesse contexto que a HQ discute o valor do conhecimento, da liberdade e da coragem de mudar.

O Mestre das Armas não é apenas uma aventura histórica bem contada. É uma crítica contundente ao obscurantismo, uma celebração da resistência intelectual e uma homenagem àqueles que ousaram pensar diferente. A força da HQ está justamente nessa fusão entre forma e conteúdo: a arte exuberante e a narrativa gráfica impecável não são apenas belos adereços, mas potentes veículos de uma mensagem atemporal.

Em suma, O Mestre das Armas é uma ótima HQ indicada para leitores que apreciam obras visualmente impactantes e narrativas com densidade histórica e filosófica. Trata-se de uma verdadeira joia do quadrinho europeu contemporâneo. 

A edição brasileira, publicada pela QS Comics, tem formato 22,8 x 29,6 cm, conta com 96 páginas impressas em papel couchê e tradução assinada por Alessandra Bonrruquer.


Comentários