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Daria Schmitt e o abismo ilustrado de Lovecraft: Sr. Providence (2025, Darkside)

Há quadrinhos que se leem, e há quadrinhos que se contemplam. Lovecraft: Sr. Providence , da francesa Daria Schmitt, pertence à segunda categoria — uma experiência visual e sensorial em que o traço é o verdadeiro protagonista. Publicado originalmente em 2022 sob o título Le Bestiaire du Crépuscule , o álbum chega ao Brasil pela DarkSide em uma edição luxuosa em capa dura com 128 páginas no formato 23x30 cm, com tradução de José Francisco Botelho e o acréscimo de um conto ilustrado de H. P. Lovecraft, O Estranho Casarão nas Brumas . Daria Schmitt constrói aqui uma homenagem ao universo lovecraftiano sem se limitar à simples adaptação. Seu trabalho ecoa mais o espírito do autor de Providence do que suas palavras — o fascínio pelo abismo, a beleza do incompreensível, a vertigem que nasce da imaginação. O resultado é um bestiário poético, povoado por criaturas e símbolos que transitam entre o sonho e o pesadelo, entre a razão e o delírio. Visualmente, o álbum é um espetáculo. O traço ...
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Stairway to Heaven / Highway to Hell (1989): quando o hard rock pregou a paz e quis mudar o mundo

Stairway to Heaven / Highway to Hell é um documento de época. Lançada em 1989 pela Mercury, a compilação reuniu algumas das maiores bandas de hard rock e heavy metal do planeta com um propósito nobre: arrecadar fundos para a Make a Difference Foundation, instituição criada para apoiar o tratamento de viciados em drogas em álcool.  As bandas participantes – Skid Row, Scorpions, Ozzy Osbourne, Mötley Crüe, Bon Jovi e Cinderella – tocaram todas no lendário Moscow Music Peace Festival, festival gigantesco que aconteceu na capital da então União Soviética em agosto de 1989 e apresentou o rock e metal ocidentais para milhões de jovens russos. Realizado durante a Glasnost, a abertura da URSS para o mundo sob a liderança de Mikhail Gorbachev, o festival se tornaria símbolo da aproximação cultural entre Estados Unidos e União Soviética no fim da Guerra Fria. O disco nasceu, portanto, de um contexto em que a música era vista como ponte entre mundos até então opostos. Idealizado por Doc Mc...

Além dos anos 1970: o Aerosmith no auge da sobrevivência em A Little South of Sanity (1998)

A Little South of Sanity é o retrato de uma banda que sobreviveu a todas as tempestades e emergiu das cinzas com fome de palco. Lançado em outubro de 1998, o álbum duplo ao vivo registra apresentações das turnês Get a Grip (1993–94) e Nine Lives (1997–98), condensando uma era de renascimento artístico e comercial para o Aerosmith — uma das mais improváveis segundas vidas do rock. Nos anos 1970, o grupo foi o equivalente americano dos Rolling Stones, misturando blues, sexualidade e caos com perfeição. Mas o colapso causado pelas drogas, as brigas internas e a decadência nos anos 1980 quase acabaram com tudo. O retorno com Permanent Vacation (1987), Pump (1989) e Get a Grip (1993) colocou a banda novamente no topo, abraçando o hard rock de arena e as baladas formatadas para tocar à exaustão nas rádios FM e na MTV, e abrindo portas para uma nova geração de fãs. A Little South of Sanity captura essa fase madura, quando Steven Tyler e Joe Perry já tinham passado pelo inferno e volt...

O universo paralelo do Voivod: Dimension Hatröss (1988) e a criação do metal de vanguarda

Dimension Hatröss é o ponto em que o Voivod transcende o metal e cria um universo próprio. Lançado em 1988, é o quarto álbum da banda canadense e o segundo da fase clássica que consolidou sua reputação como uma das formações mais inventivas do metal progressivo e experimental. Se Killing Technology (1987) já havia mostrado que o grupo não tinha interesse em seguir padrões, Dimension Hatröss levou essa ruptura ao extremo — um mergulho em um mundo conceitual onde ficção científica, caos sonoro e precisão matemática se fundem. O álbum gira em torno de uma narrativa conceitual: o cientista e anti-herói Korgull, mascote da banda, cria um universo paralelo em laboratório e observa sua evolução. É uma metáfora sobre controle, criação e destruição, temas que dialogam tanto com a paranoia da Guerra Fria quanto com reflexões filosóficas sobre o papel da humanidade na era tecnológica. A sonoridade reflete esse conceito: guitarras dissonantes, métricas irregulares, baixo pulsante e bateria qu...

Entre a honra e a loucura: a violência doentia de Shigurui – Frenesi da Morte Vol. 2 (2025, Pipoca & Nanquim)

Em Shigurui – Frenesi da Morte Vol. 2 , Takayuki Yamaguchi continua a construir um dos mangás mais brutais e hipnóticos já produzidos sobre a era dos samurais. Publicado no Brasil pela Pipoca & Nanquim em edição caprichada — com sobrecapa, marcados de página, papel de alta gramatura, extras e glossário histórico — o volume dá sequência à espiral de violência, honra e loucura que marcou o início da série. A história se passa durante o início do período Edo (1603-1868), quando a paz imposta pelo xogunato Tokugawa convive com a decadência moral e o fanatismo dos guerreiros sem guerra. Nesse cenário, o dojo Kogan-ryu é o palco da rivalidade entre dois discípulos: Fujiki Gennosuke, o herdeiro legítimo, e Irako Seigen, o forasteiro talentoso que desafia o mestre e ameaça toda a hierarquia. O volume 2 aprofunda essa disputa, mostrando o quanto o orgulho e o desejo de ascensão podem destruir o código de honra que sustenta o mundo samurai. E deixa ainda mais explícito o quão repulsivo é...

Opus Eponymous (2010): quando o Ghost fez o inferno soar pop

Opus Eponymous marcou a chegada de uma das bandas mais intrigantes e influentes do metal do século XXI. O Ghost surgiu na Suécia como um mistério envolto em teatralidade, ocultismo e melodia. Naquele momento, o metal extremo ainda dominava o cenário escandinavo, mas o Ghost ousou trilhar o caminho oposto: resgatar a sonoridade sombria, melódica e acessível do heavy metal dos anos 1970 e início dos 1980 — com influências que vão de Blue Öyster Cult e Mercyful Fate a Black Sabbath e Alice Cooper — e embrulhar tudo em uma estética satânica e litúrgica. O álbum é curto, com pouco mais de 30 minutos, mas cada segundo é calculado com precisão quase ritualística. A produção é cristalina, o som das guitarras é quente e vintage, e os vocais suaves de Papa Emeritus contrastam com o conteúdo blasfemo das letras, criando um efeito hipnótico. A abertura com “Deus Culpa” e “Con Clavi Con Dio” já define o tom: riffs elegantes, refrões melódicos e uma atmosfera de missa negra com refrões pop. “Rit...

O Vampiro que Ri: o clássico do ero-guro que desafia o leitor (2025, Pipoca & Nanquim)

Publicado originalmente entre 1998 e 1999, O Vampiro que Ri é uma das obras mais emblemáticas de Suehiro Maruo, artista japonês associado ao movimento ero-guro — uma vertente dos mangás que mistura erotismo, grotesco e horror psicológico, surgida na literatura japonesa dos anos 1920 e transposta para os quadrinhos nas décadas seguintes. É um universo em que a beleza e a perversão caminham lado a lado, e onde o choque não é gratuito: é uma forma de confrontar o leitor com os extremos da condição humana. A trama apresenta uma galeria de personagens distorcidos pela violência, pela exclusão e pelo desejo. A narrativa gira em torno de vampiros que vagam por uma sociedade degradada, onde a monstruosidade não é apenas física, mas moral e espiritual. Em meio a corpos dilacerados e sorrisos ensanguentados, Maruo constrói uma metáfora amarga sobre a perda da inocência, o fascínio pela destruição e a corrupção da pureza, temas recorrentes em sua obra e na tradição expressionista que o inspir...

Entre a escuridão e a luz: a viagem mística do The Cult em Love (1985)

O The Cult nasceu da transição. Entre o pós-punk e o hard rock, entre o gótico e o espiritual, entre a escuridão e a luz. Love , lançado em outubro de 1985, é o momento em que Ian Astbury e Billy Duffy encontram o ponto de equilíbrio entre o misticismo tribal que vinha do Southern Death Cult, como se chamava a primeira encarnação do grupo, e a ambição sonora de uma banda pronta para arenas. É o disco que definiu o som e a identidade do grupo. O Reino Unido ainda respirava a ressaca do pós-punk e da new wave, enquanto o hard rock americano começava a dominar as rádios. O The Cult surgiu no meio desse turbilhão, misturando a intensidade quase xamânica de Astbury com os riffs elegantes e poderosos de Duffy. Love foi o passo além de Dreamtime (1984), que ainda soava preso às sombras góticas de bandas como The Sisters of Mercy. Aqui, o som ganhou corpo, brilho e propósito. Produzido por Steve Brown, Love é uma tapeçaria sonora que mescla melodias etéreas com guitarras cintilantes e u...

Iommi (2000): o encontro do criador do heavy metal com o futuro que ele ajudou a construir

Em outubro de 2000, o nu metal dominava as paradas, o metal tradicional buscava novas formas de se conectar com o público e o Black Sabbath, embora respeitado, era visto mais como uma lenda do passado do que uma força ativa. Foi nesse cenário que Tony Iommi, o arquiteto das trevas, decidiu lançar seu primeiro álbum solo — um disco que não apenas reafirmava sua relevância, mas também mostrava o quanto sua guitarra seguia moldando o som pesado décadas depois da estreia do Sabbath. O projeto nasceu de colaborações pontuais, e o resultado é um álbum de duetos no sentido mais puro da palavra. Cada faixa traz um vocalista diferente, criando uma coleção de encontros entre o mestre dos riffs e vozes que marcaram diferentes gerações do rock e do metal. Há desde nomes lendários como o parceiro de crime Ozzy Osbourne (“Who’s Fooling Who”) e Brian May (“Flame On”, com vocais de Ian Astbury, do The Cult), até representantes da então nova geração como Billy Corgan (“Black Oblivion”) e Serj Tankian...

Ace Frehley: o Spaceman voltou para casa

Ace Frehley não era apenas o guitarrista original do Kiss. Era o Spaceman — o homem que veio do espaço para ensinar ao mundo que rock é energia, atitude e mistério. Agora, em 16 de outubro de 2025, ele partiu de volta para o cosmos, encerrando uma das jornadas mais icônicas e inspiradoras da história do rock. Nascido Paul Daniel Frehley em 1951, no Bronx, ele cresceu entre guitarras baratas, discos riscados e sonhos elétricos. Quando cruzou o caminho de Gene Simmons, Paul Stanley e Peter Criss, o destino se alinhou como uma constelação. Em 1973, nascia o Kiss — e com ele, um dos maiores espetáculos que a música já viu. Ace trouxe à banda algo que ninguém mais poderia oferecer: o som do espaço. Seus riffs cortantes, os solos que pareciam explodir em luz, o timbre inconfundível que misturava sujeira, melodia e carisma. Ele não era um virtuose clássico, mas era puro sentimento. Tocava com alma, com coração, com aquele toque imperfeito que faz a música respirar. “Shock Me”, “Cold Gin”, ...